Os gritos de “liberdade” e “Abaixo a ditadura comunista” são um testemunho de que o espírito de resistência está vivo e ativo. Vilma Gryzinski:
A partir do decreto-lei 35, os cubanos não poderão falar nem bem nem mal do governo. Mal é desprestígio e bem é fake news”.
O
senso de humor dos cubanos, praticamente a única válvula de escape na
vida de um regime que controla tudo, sobrevive. O decreto número 35 foi
baixado em agosto para apertar mais esses controles, principalmente nas
redes sociais. Tem até uma cláusula sobre posts que possam prejudicar o
“prestígio do país” – categoria que inclui praticamente tudo.
Não
funcionou, embora as manifestações pacíficas de ontem estado muito
longe das proporções que tanto assustaram a cúpula comunista, em julho.
Surpreendido
pelas dimensões e a disseminação dos protestos de quatro meses atrás, o
regime se preparou com todos os recursos das ditaduras, desde a tática
da inundação – forrar os pontos principais de Havana com policiais
antidistúrbios com equipamentos que muitos cubanos nunca tinham sequer
visto antes de julho -, até os métodos mal disfarçados com uma mãozinha
de tinta, para dar a impressão de que existe uma reação popular de apoio
ao sistema.
O
mais visado de todos, nada surpreendentemente, foi Yunior García, o
ator e dramaturgo de 39 anos que emergiu como a liderança mais visível
de um movimento bem horizontalizado de reivindicação de liberdades
democráticas ancorado na plataforma Arquipélago.
A
casa muito modesta onde mora foi ontem cercado por “populares”, as
brigadas populares do regime. As janelas cobertas por grandes bandeiras
cubanas deixaram entrever García, atrás de persianas, com um cartaz
escrito à mão: “Minha casa está bloqueada”.
Desmoralizar
García virou um projeto existencial para o regime, que encomendou um
vídeo para retratá-lo como um “operador” a serviço dos Estados Unidos.
Como ocupa todos os espaços da comunicação pública, exceto pelas
incontroláveis redes sociais, o regime cubano provavelmente acha que fez
um bom serviço, uma obra de propaganda que os antigos mestres
soviéticos da inteligência cubana aprovariam.
“Que
coisa ridícula esse vídeo, 62 anos enganando o povo cubado com mentiras
deslavadas”, foi uma das reações provocadas pela peça de
contrainformação.
Ser
classificado de ridículo é talvez a maior das ofensas. Com um único
adjetivo, o leitor que fez esse comentário simplesmente desmoralizou o
monumento erguido pelo regime.
E
o monumento é baseado no princípio de que todos os opositores são
contrarrevolucionários, operadores a serviço dos Estados Unidos,
cooptados por organizações “neoliberais”, vendidos, traidores. Um desses
centros irradiadores de maldades, segundo os donos do poder, é a
Universidade de Saint Louis, uma instituição jesuíta – como o papa
Francisco, tão sensível ao regime cubano, tão insensível aos cubanos que
penam sob seu jugo.
Yunior
García participou em 2019 de um evento da Saint Louis em Madri, com a
presença do perigosíssimo Felipe González, o primeiro-ministro
socialista da época da transição da Espanha para a democracia.
Para
comprovar a natureza pérfida do debate, o regime deu um tiro no pé:
mostrou o depoimento de um dos dois agentes de segurança enviados para
seguir García em suas atividades na Espanha. O agente “Fernando” , nome
verdadeiro Carlos Leonardo Vásquez, aparece no tal vídeo afirmando que
no seminário foi discutido o papel das Forças Armadas em processos de
transição. Uau, a coisa deve ter sido perigosa mesmo.
A pergunta para a qual todos, à esquerda e à direita, querem uma resposta clara, obviamente não a tem.
Qual
a capacidade de mudança que essa nova dissidência traz em relação a um
regime que detém todos os instrumentos do poder e sabe que não existe
algo como uma abertura democrática parcial?
Um
dos mais batidos argumentos dos conservadores é que ditaduras de
direita caem, mas as de esquerda se eternizam. O desmoronamento do bloco
soviético comprovou o lado fraco dessa tese, mas a capacidade de
resistência do autoritarismo de esquerda é notória.
Tal
como está hoje a situação, a fortaleza criada por Fidel Castro parece
inexpugnável. As condenações a penas pesadas de manifestantes que
simplesmente foram às ruas no 11 de julho com toscos cartazes escritos à
mão (um exemplo comovente: “Era tanta a forme que comemos o medo”)
cumpriu seu papel de intimidação..
Muitos
cubanos comuns, submetidos literalmente a um regime de fome, desconfiam
da doutrinação oficial, mas também não se arriscam a pegar dois ou três
anos de cadeia por se manifestar contra esta situação insuportável.
A
verdade é que sempre dá para suportar mais um pouco quando a
alternativa é uma repressão impiedosa. O fenômeno da nova dissidência,
no entanto, foi criado e está implantando.
As redes sociais criaram um espaço que não existia, conectando pessoas e dando vazão a expressões que mal eram sussurradas.
“O
governo cubano perdeu o monopólio na criação de mensagens hegemônicas”,
escreveu no site La Jovem Cuba a historiadora Alina Bárbara López
Hernández. “Novos agentes políticos podem se comunicar diretamente com
os cidadãos”.
Com
pedaços de pau e bastões de beisebol na mão, a “tropa” civil do regime
foi para as ruas, o acesso à internet foi cortado, líderes como Junior
García e outros viram-se sitiados em sua próprias casas.
“Queremos
liberdade”, gritaram pessoas que pretendiam participar da Marcha Cívica
pela Mudança e depararam com os cordões humanos que os impediam de se
locomover.
Em
outra cena, filmada à distância, uma van para numa rua da cidade de
Holguin e arrasta manifestantes para o veículo. Vozes desesperadas – e
também desafiadoras – de homens e mulheres gritam: “Abaixo a ditadura
comunista”.
“Abaixo a ditadura”. Como qualquer pessoa que tenha ouvido isso em outros países pode não se solidarizar com este brado?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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