Uma análise honesta da história não precisa mistificar ou endeusar figuras como Goulart ou carregar nas tintas ao descrever os governos militares para dar aos eventos do passado, mais presentes do que nunca, o seu verdadeiro nome: golpe, ditadura militar e todas essas palavras que se tornaram tabu no governo Bolsonaro. Diogo Schelp para a Gazeta do Povo:
Um debate sério a respeito da recente polêmica envolvendo as acusações de interferência política nas questões do Enem
(Exame Nacional do Ensino Médio), realizado neste domingo (21), não
deveria ser feito sem a leitura de um livro recém-publicado pelo
historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e um dos maiores estudiosos da ditadura militar do
país.
"Passados
Presentes" (Zahar; 336 páginas; 69,90 reais) foi escrito justamente com
a finalidade de desfazer os atuais mitos em torno do regime político
que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Regime militar ou ditadura
militar? Revolução ou golpe de 1964? Até que ponto a "ameaça comunista"
era real? Os militares no poder tinham apoio majoritário da população? A
repressão do Estado era proporcional à violência de esquerda? Havia
menos corrupção? Qual foi o legado do chamado milagre econômico? Esses
são alguns dos temas abordados pelo historiador.
O
autor começa com um alerta para o perigo de se reduzir o debate
histórico a uma questão de opinião. Historiadores, como cidadãos de
qualquer outra profissão, têm suas preferências políticas e ideológicas,
mas, ao produzir "conhecimento sobre as ações humanas no tempo",
precisam coletar e analisar as evidências documentais com base em
métodos científicos de maneira equilibrada e dentro de limites éticos.
Não
se pode, por exemplo, pegar evidências a dedo e ignorar o contexto
geral ou o conhecimento acumulado sobre aquele tema, como muitas
avaliações "opinativas" disseminadas nas redes sociais costumam fazer.
"Passados
Presentes" tem o mérito de lançar luz sobre as polêmicas que a
polarização política atual no país fabricou, desfazendo mitos com base
em fatos e no relato objetivo dos acontecimentos, sem paixões
ideológicas ou maniqueísmos.
A
começar por um dos pontos centrais da polêmica envolvendo o Enem deste
ano. Servidores do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira) que pediram exoneração afirmam terem sido
pressionados para substituir, nas questões da prova, a expressão
"ditadura militar" por "regime militar".
Motta
afirma em seu livro que "ditadura" é a "definição mais precisa", mas
ele também se vale de "regime militar" e "regime autoritário" para se
referir ao período, ainda que alguns historiadores considerem essas
expressões mais brandas. "Regime militar", portanto, não está incorreto,
mas o que se viveu entre 1964 e 1985 foi mais do que isso.
Negar
o caráter ditatorial dos governos militares iniciados em 1964 tem como
objetivo conceder uma imagem mais positiva às lideranças políticas (o
presidente Jair Bolsonaro, por exemplo) que "se apresentam como herdeiras do legado de 1964", explica Motta.
Como
se pode verificar pela discussão levantada na semana passada com a
visita de Bolsonaro às monarquias árabes do Oriente Médio, o governo
atual, por mais nostálgico que seja do período militar, não quer ser
visto como afeito a ditaduras — a ponto de o presidente, em sua última
live semanal, ter sentido necessidade de relativizar o autoritarismo dos
governos dos países que ele visitou, afirmando que não são tão ruins
quanto as ditaduras de esquerda, como a de Cuba. (Enquanto isso, no
outro extremo, Lula relativiza a ditadura cubana.)
A
configuração política do regime iniciado em 1964 e a maneira como foi
instaurado não deixam dúvidas de que se tratava, sim, de uma ditadura,
como demonstra Motta de maneira minuciosa e didática em seu livro.
O
autor define uma ditadura moderna como um regime em que "uma pessoa ou
grupo mantém-se no comando estatal por meios essencialmente coercitivos,
o poder é concentrado de maneira autoritária e são criados meios para
bloquear regras sucessórias democráticas".
O
regime instaurado em 1964 nasceu da ruptura da ordem constitucional,
pois o presidente João Goulart, gostando-se ou não dele, havia sido
legitimamente eleito, teve o poder presidencial reafirmado em plebiscito
e viu-se forçado a seguir para o exílio para evitar o "derramamento de
sangue" que poderia ocorrer em reação aos tanques nas ruas. Voltaremos
ao tema golpe ou revolução mais adiante.
Além
disso, a nova ordem política suspendeu eleições para presidente e
governadores e recorreu à violência estatal (torturas, desaparecimentos e
censura) para garantir o status quo, ou seja, o poder na mão de
militares, sempre generais de quatro estrelas. Vemos aí a tríade da
definição de ditadura: uso de meios coercitivos, poder concentrado e
eliminação de regras de sucessão democráticas.
O
autor destaca, porém, uma particularidade da ditadura brasileira: ela
manteve alguns preceitos das democracias liberais e tratou legitimar
seus atos por meio de leis. Com isso, procurava atribuir-se legitimidade
política e ter argumentos para rechaçar a classificação de ditadura.
São as mesmas justificativas usadas até hoje, aliás.
Assim,
os Poderes Legislativo e Judiciário foram mantidos em funcionamento,
assim como os partidos políticos. Os presidentes tinham mandatos fixos,
passando uma falsa ideia de alternância de poder, pois apenas militares
de alta patente ocupavam o posto, pelo qual outros cidadãos não podiam
concorrer livremente, como ocorre em uma democracia.
Essa
dualidade, ou melhor, a necessidade de manter o verniz de instituições
liberais como fachada para o regime, fez com que a ditadura deixasse
"alguns espaços à oposição que serviram, em certos momentos, de
contrapeso às ações do Estado", descreve o autor do livro.
O
governo Bolsonaro também é acusado de pressionar para que as questões
do Enem não tratassem a queda de Goulart em 1964 como um golpe de
Estado, e sim como uma revolução para conter o "perigo vermelho", ou
seja, a ameaça comunista.
Revolução
não foi, demonstra Motta. Primeiro porque, nas revoluções, as
transformações na ordem políticas são impostas de fora para dentro. Em
1964, a ruptura foi promovida de dentro, ou seja, por integrantes do
"próprio aparelho do Estado" — no caso, por militares de alta patente.
Segundo,
Goulart não teria abandonado o posto e partido para o exílio se não
fossem as movimentações das tropas e a preocupação de se evitar uma
guerra civil.
Terceiro,
em um ato ilegal, o Congresso empossou o presidente da Câmara no
comando do país quando Goulart ainda estava em território nacional e,
nove dias depois, mais uma vez ao arrepio da Constituição, elegeu o
general Humberto Castello Branco para a presidência.
O
fato de terem tido apoio de uma parcela da população, como confirma
Motta, não faz com que os acontecimentos de 31 de março/1º de abril
mereçam menos serem chamados de golpe.
E
teria sido esse golpe realmente necessário para impedir que o Brasil se
tornasse uma ditadura comunista, um suposto mal menor para conter um
mal maior?
Motta
elenca uma série de dados concretos a respeito da real força dos
comunistas no país e conclui que esse risco não existia ou, pelo menos,
não era iminente. João Goulart estava longe de ser um líder comunista,
ainda que contasse com o apoio circunstancial e estratégico de uma parte
da esquerda mais radical. De linhagem trabalhista e caudilhista, Jango
na realidade buscou até o fim, apesar o ambiente absolutamente
polarizado do país, obter uma acomodação entre setores de esquerda e de
direita.
Ele
cometeu alguns erros que levaram à sua ruína política (e a graves
problemas econômicos), mas seu projeto não era a construção do
comunismo. Nem tinham os verdadeiros comunistas uma força política
significativa, influência ou mesmo planos revolucionários imediatos para
a implantação de um novo regime.
Ainda
que tivessem, como bem lembra o autor de "Passados Presentes"
respaldado pela experiência de outros países, isso não significa que um
golpe militar e a instauração de uma ditadura de direita fossem a única
alternativa para contê-los.
Na
realidade, a implantação da ditadura militar acabou por precipitar a
pegada em armas por alguns setores da esquerda radical. Algo que não
estava em seus planos antes.
O
temor do "perigo vermelho" era um sentimento em parte sincero, ainda
que infundado, de setores que apoiaram o golpe. Outros se valeram desse
medo como desculpa para tirar Goulart do caminho e chegar ao poder.
Uma
análise honesta da história não precisa mistificar ou endeusar figuras
como Goulart ou carregar nas tintas ao descrever os governos militares
para dar aos eventos do passado, mais presentes do que nunca, o seu
verdadeiro nome: golpe, ditadura militar e todas essas palavras que se
tornaram tabu no governo Bolsonaro.
Excluí-las do exame do Enem não vai melhorar a qualidade da avaliação dos alunos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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