O acadêmico de classe média que está desesperado por emprego só tem uma coisa a fazer: ceder à patrulha e bajular orientador e figurões acadêmicos; mostrar-se bom menino e obediente. Bruna Frascolla via Gazeta do Povo:
Ia
eu contando ontem como era o ambiente intelectual baiano pré-PT, e
nisso me referia a uma mudança promovida por Fernando Haddad em todo o
território nacional, em vez das presepadas de Rui Costa ou Jaques
Wagner. Foi o Reuni, do qual tantas vezes já falei neste espaço.
Com
o Reuni, as federais multiplicaram as vagas, aumentaram o número de
cursos, substituíram-se os vestibular locais pelo ENEM de Brasília e
apareceram cotas pra burro. Paralelo a isso, houve a expansão da pós.
Quanto mais pós-graduandos um programa tivesse, mais alta seria a sua
nota e mais recursos ele receberia. As graduações se multiplicaram, os
professores começaram a chamar os alunos para fazer mestrado
prometendo-lhes uma bolsa de 1.200,00 reais.
No
caso de cursos em que a carreira docente é quase compulsória – tenho em
mente a filosofia por oposição ao direito, ou a física por oposição à
engenharia, ou a biologia por oposição à enfermagem –, é frequente a
evasão nos cursos de graduação. Então na prática isso significou pegar o
alunado todo da graduação e tratar o mestrado, depois o doutorado, como
o rumo natural de todo graduando bem sucedido.
As opções de trabalho para o licenciado
Houve
uma completa descoordenação entre a Universidade e as escolas públicas.
Nestas reina uma bagunça; raramente o professor de física é licenciado
em física, ou o professor de filosofia é licenciado em filosofia.
Então
o licenciado nessas disciplinas, que em geral fez o curso por gostar da
matéria e topar levar uma vida modesta de professor, descobre que não
tem emprego, mesmo que ele seja uma mão de obra qualificada num cenário
de escassez. Os governos estaduais vão ficar com a mão de obra
não-qualificada mesmo, que é concursada, e pronto. E, ao menos no caso
da Bahia, não vão abrir concurso: vão fazer uma coisa provisória que
aqui se chama REDA (mas em outros estados tem outro nome), que é um
contrato provisório, sem possibilidade de renovação contínua e salário
de fome. Daí resulta que na zona rural, no interior, não tem quem queira
ir e o REDA contrate jovenzinhos egressos do ensino fundamental para
dar aula ao ensino fundamental. Aliando os males tradicionais da escola
pública à falta de concursos, o governo petista da Bahia conseguiu
colocar o estado na rabeira do PISA, à frente apenas das Alagoas do
herói da CPI.
Mas
voltemos ao ensino superior. O jovem licenciado que nunca sonhou em ser
rico e queria apenas ser um professor de filosofia ou biologia vê as
portas das escolas fechadas e, ao mesmo tempo, seus professores da
federal estão à cata de gente para fazer mestrado com bolsa e agradar o
governo federal. O licenciado então acha que 1.200 reais por mês por
dois anos é melhor que coisa nenhuma, ou que o REDA, e topa. Como as
vagas para as escolas não aparecem, o aluno começa a aventar a
possibilidade de seguir a carreira docente superior, que é onde tem
concurso. E durante o Reuni, o que não faltava era concurso, mesmo.
Nisso, descobre que o mestrado sozinho não serve de nada e precisa fazer
o doutorado também.
Naturalmente,
as ambições variam conforme a origem socioeconômica. Logo que entrei no
curso, com 18 anos incompletos, me chamou a atenção a quantidade grande
de pobres. Eu não entendia por que eles queriam fazer um curso que dá
salário de fome.
Quanto
a mim, também nunca sonhei em ser rica, mas não toparia virar
professora de escola pública estadual — virar professora universitária
era o plano inicial. Existiam mais colegas de origem social idêntica à
minha, com as mesmas aspirações. Tendo todos nós recebido bolsas
idênticas, eu enfim pude entender que 1.200 na mão da classe média são
mesada e poupança forçada, pois não permitem sair da casa da família. Na
mão do pobre que mora em favela, significa que você pode se casar e
começar sua própria família, numa casa às vezes mais arejada e
confortável do que os caixotes caros com condomínio que precisam de
ar-condicionado. Então a aspiração inicial deles de virar professor do
estado era muito sensata.
Além
disso, perto dos primos, o pobre estava muito bem na fita, fazia gosto à
mãe etc. Já o de classe média estava na casa dos pais ganhando uma
merreca, enquanto que o primo que fez direito passou num concurso
escalafobético e foi passar as férias em Paris, ou então se tornou
empresário e vai bem, obrigado. A família tende a medi-lo pelo sucesso
material e ele, rancoroso, vai tentar convencê-la de que sua pesquisa
hiperespecífica sobre a asa da joaninha é a coisa mais importante do
mundo, vai sacralizar a Ciência etc. Já a família do pobre sabe que
dinheiro não é um bom medidor de êxito e quem fica mal na fita é a mãe
do traficante, por mais dinheiro que ele tenha.
Desespero num setor da classe média
Nisso,
os colegas com o meu perfil socioeconômico perceberam que teriam um
montão de concorrente nos concursos. Se tiverem sido sensatos, começaram
a se perguntar se haveria vaga para tanta gente assim. Quando ficou
claro que não haveria, até porque o festival de concursos aconteceu
quando estávamos em formação, a inflação de doutores estava consumada.
Mesmo que os colegas pobres não existissem, não teria tanta vaga pra
tanta gente de classe média ainda assim. Afinal, o problema era ainda
mais grave no Sudeste, e os egressos de lá já inundavam concursos de
universidades federais e estaduais em cada rincão do país. O que tinha
de uspiano desempregado doido para se mudar pra Jequié no começo dos
anos 10 já não estava no gibi.
E
se simplesmente não houver emprego? O que fará o acadêmico que investiu
uns 10 anos de sua vida na carreira e, ao fazê-lo, foi coagido pela
CAPES e pelos programas a não ingressar no mercado de trabalho formal?
Nisso,
os pobres se saem mil vezes melhor do que os de classe média. Se o
pobre virar pedreiro, não vai ser vergonha nenhuma para a família. E
mais: sua família numerosa e a vizinhança são uma espécie de LinkedIn de
nascença. Vai encontrar emprego não-escolarizado com facilidade. Já se o
letrado de classe média tiver a coragem de ir contra os próprios
preconceitos e virar um trabalhador braçal, ele não vai ter nem
experiência, nem contatos. E ainda vai ter de lidar com preconceito
vindo de empregadores.
Tive
um colega que não conseguia emprego em telemarketing porque as empresas
cruzavam os dados dos candidatos com o do alunado da UFBA, presumindo
erroneamente que estes logo arrumariam um emprego melhor. Em época de
pleno emprego deve ser fácil alguém de classe média virar peão; em época
de desemprego, não é.
No
frigir dos ovos, os colegas pobres estavam até bem na fita, em sua
situação de universitários da família. Alguns passaram nos raros
concursos para escola lá onde Judas perdeu as botas e foram. Como a vida
no interior é mais barata do que em favela da capital, o poder de
compra do salário magro é maior ainda.
O diferencial em meio à inflação de diplomas
Concurso
de professor universitário é política de departamento; não é
meritocrático nem impessoal. (Já expliquei aqui como é.) Assim, o
acadêmico de classe média que está desesperado por emprego só tem uma
coisa a fazer: bajular orientador e figurões acadêmicos; mostrar-se bom
menino e obediente.
E
como a parcela do professorado que galga posições de poder costuma ser
petista ou satélite do petismo, resta ao acadêmico tornar-se mais
realista que o rei e ficar aderindo a cada slogan, a cada hashtag, a
cada filtro de perfil, para anunciar ao mundo acadêmico que ele será um
conformista submisso caso passe num concurso. Se todo mundo tem diploma,
resta procurar outros meios pra se destacar.
No
fim, uma consequência muito triste é que os acadêmicos que não estão
dispostos a se sujeitar à bajulação acabam se autocensurando. É o meio
termo prudente adotado, creio eu, pela maioria: nem bajular, nem falar o
que pensa. Eu penso que essa seja uma má estratégia, porque as vagas de
concurso estão predestinadas aos bajuladores, e o silêncio dos bons
acadêmicos acaba os colocando na invisibilidade. Eles não vão conseguir
passar num concurso, nem serão enxergados pela iniciativa privada.
Questão
No
caso da academia, eu estou segura para estabelecer uma correlação entre
lacração e inflação de diplomas. Se há uma demanda lacradora vinda de
cima – no caso da academia, dos figurões petistas e quejandos que tomam
conta da distribuição de financiamento à pesquisa e dos concursos –, uma
corja de inescrupulosos saberá o que fazer para passar na frente da
multidão de doutores.
Hoje
há lacração no mundo corporativo, e, se a demanda não vem sempre de
cima, vem pelo menos do RH, que é responsável nada menos que pela
contratação.
Enquanto
eu estava me deliciando com as consequências do Reuni, é provável que o
povo de direito, engenharia, jornalismo, administração etc., que não
depende da carreira docente, estivesse se deliciando com as
consequências do Prouni. Que promoveu uma inflação de diplomas também.
Será que isso não explica o surto de lacração e de autocensura no mundo
corporativo?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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