Filme tenta reescrever a história do violento terrorista de esquerda, transformado em herói nacional pelas lentes de Wagner Moura. Silvio Navarro e Paula Leal para a Oeste:
Na
noite de 4 de novembro de 1969, o baiano Carlos Marighella foi apanhado
em uma emboscada pela equipe do delegado Sérgio Paranhos Fleury na
região dos Jardins, em São Paulo, e acabou morto por cinco tiros. O
prontuário de um dos maiores terroristas da esquerda armada no Brasil
incluía assaltos a bancos e carros-fortes, além do sequestro do
embaixador americano Charles Elbrick. A página 153 de A Ditadura
Escancarada (Companhia das Letras), o segundo dos cinco volumes escritos
pelo jornalista Elio Gaspari sobre os anos de chumbo, narra seus
momentos finais: Marighella portava uma pasta preta com um revólver
Taurus calibre 32, que usava em suas ações violentas, mas não teve tempo
de sacá-lo.
Meio
século depois, é neste ato final que a esquerda reinante na cena
cultural do país se concentra para reescrever a biografia do
guerrilheiro urbano virulento, que foi expulso do Partido Comunista e se
tornou líder da ALN (Ação Libertadora Nacional). Pelo menos é essa a
impressão de quem o viu tombar na tela do cinema, desarmado e solitário,
assassinado cruelmente à queima-roupa dentro de um Fusca azul antes de
ingerir uma cápsula de cianeto. Na nova narrativa, esse é o herói
nacional, escritor de poemas e defensor da liberdade retratado em
Marighella: o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, dirigido por Wagner
Moura. O filme foi baseado no livro do jornalista Mário Magalhães — que
faz questão de frisar na página 14 de sua obra: “Como sempre, estava
desarmado”.
Não
se trata aqui de uma crítica ao texto de Magalhães, mas à maneira como
Wagner Moura enxerga e defende seu personagem-título. “Quando eu faço um
filme sobre Marighella, evidentemente estou fazendo um filme que parte
da minha admiração por Marighella e pelas pessoas que, no olho do
furacão de uma ditadura militar, resolveram fazer alguma coisa contra
aquele regime”, disse Moura em entrevista recente ao programa Roda Viva,
da TV Cultura. Talvez as lentes do ator-diretor estejam embaçadas. Ele
busca a redenção depois de ter vestido a pele do Capitão Nascimento,
personagem de Tropa de Elite, alvo de um massacre da imprensa e dos
colegas intelectuais de esquerda. Trocando em miúdos: foi quase um
pedido de desculpas de Moura para ser reincluído no grupo de WhatsApp e
voltar a frequentar a patota do Leblon.
A manchete de 1969 |
O caixa da Cultura
A
chegada do filme às telas do país na semana passada ocorreu mais de
dois anos depois de estrear em vários festivais internacionais, como o
de Berlim. E chegou fazendo barulho. Moura culpou o governo Jair
Bolsonaro e a Agência Nacional de Cinema (Ancine) pela demora na
exibição do longa-metragem. Foi além e chegou a dizer que se tratava de
“censura e boicote”.
Vamos
aos fatos: o atraso se deu porque a O2, produtora do filme, estava
inadimplente com a prestação de contas de outra produção. Segundo a
Ancine, o projeto só passou a cumprir todos os requisitos no último mês e
por isso foi liberado. Assim como tantas outras produções artísticas,
Marighella se beneficiou do Fundo Setorial do Audiovisual, um dos
mecanismos (legais) para financiamento público do setor, que investiu
quase metade do orçamento do filme, avaliado em R$ 10 milhões.
Moura,
contudo, partiu para o ataque: se a intenção do personagem do filme era
“incendiar o mundo”, a dele era botar fogo nas redes sociais. Disse em
um programa de televisão, por exemplo, que “não respeitava” os
dirigentes da Secretaria de Cultura. Referia-se ao secretário nacional,
Mário Frias, e ao responsável pelas verbas da Lei Rouanet, André
Porciúncula. Ambos têm afirmado que a pasta era um duto para atender um
grupo de proponentes escolhido a dedo. Por exemplo: segundo Frias, do
passivo de R$ 13 bilhões que estava à espera de um clique, 70% dos
recursos estavam sendo destinados a apenas 10% dos pretendentes. “Muita
gente que acusa a gente é ingênuo, diferentemente do diretor do filme,
que conhece a estrutura a fundo”, disse Mário Frias na segunda-feira.
Românticos de Cuba
Embora
o filme esteja repleto de tiroteios, a versão light do terrorista
confesso não faz jus ao discípulo de Stalin, que celebrava “a beleza que
há em matar com naturalidade”. No seu Minimanual do Guerrilheiro
Urbano, publicado em 1969, Marighella se orgulhava de afirmar que “ser
‘violento’ ou ‘terrorista’ é uma qualidade que enobrece qualquer pessoa
honrada na luta contra a ditadura militar”. Ele ainda reserva um
capítulo para ensinar ações aos camaradas: “Assaltos, invasões,
execuções, sequestros, terrorismo, sabotagem, guerra de nervos”. Tudo é
permitido em nome da luta armada.
A
tentativa de humanizar o personagem com a história do seu filho cheira a
pieguice e não convence. E a balela de que os comunistas eram
defensores da democracia e que se viram obrigados a pegar em armas para
salvar o Brasil da ameaça de ditadores fascistas convence menos ainda.
“Ele era um patriota, ele amava o Brasil”, repete uma personagem devota
em cena.
Se
ainda estivesse vivo, o verdadeiro Carlos Marighella provavelmente não
se reconheceria na pele do cantor Seu Jorge, que o interpreta no cinema.
A escolha do ator para encarnar o guerrilheiro é, no mínimo, curiosa.
Na vida real, Marighella era filho de uma negra baiana com um imigrante
italiano. No máximo, um moreno claro. Na ficção, foi representado pelo
ator e cantor negro Seu Jorge. Wagner Moura ergueu ali também a bandeira
racial e do “racismo estrutural”? Sim, claro. O passado do pai italiano
anarquista não é mencionado, nem sequer para justificar o sobrenome do
terrorista.
A
propósito, na esteira do tema étnico, um padre aparece explicando que
Jesus só poderia ter sido negro. O padre justifica: quando Herodes
mandou matar todas as crianças com menos de 2 anos, Jesus ainda bebê foi
escondido no Egito e só conseguiu passar despercebido porque no deserto
fazia parte da maioria esquecida pelo sistema. Para completar, um apelo
ufanista: nos créditos finais, o público é brindado por uma cantoria do
Hino Nacional Brasileiro realizada pelos atores abraçados em roda.
A
velha imprensa já elegeu o longa sobre a versão do guerrilheiro
travestido de herói como a melhor bilheteria nacional do ano. Com a
concorrência minguada depois de um jejum forçado por conta da pandemia,
com salas fechadas e medidas restritivas que afugentaram espectadores,
não é difícil chegar ao topo do ranking. Além de contar com a torcida da
mídia e da militância de esquerda, Moura também recebeu apoio das redes
de cinema.
Esse
apoio não foi dado ao cineasta pernambucano Josias Teófilo. Ele é
diretor do documentário Nem Tudo se Desfaz, que estreou em setembro
deste ano, sobre os impactos das manifestações de junho de 2013 no
cenário político nacional, que culminaram na ascensão do presidente Jair
Bolsonaro. “Boa parte dos cinemas que procuramos para exibir o Nem Tudo
se Desfaz se recusou a passar o filme, inclusive a alugar as salas,
porque disseram que não queriam apresentar um filme com conteúdo
político. Entretanto, passaram Marighella, que é um filme não só com
conteúdo político, mas com discurso político e partidário atrelado”,
afirmou. “Uma coisa são filmes que produzem polêmicas, como O Jardim das
Aflições [documentário de Teófilo sobre a vida de Olavo de Carvalho] e
Nem Tudo se Desfaz. Outra coisa são filmes que produzem factoides de
polêmicas, como Marighella.”
Marighella,
o filme, não será capaz de reescrever a história. Amanhã, não teremos
jovens deslumbrados desfilando com camisetas estampando o bigode do
guerrilheiro baiano. Isso é coisa para a geração do esperto Wagner
Moura. Ele sabe ganhar dinheiro tanto com a boina preta do capitão do
Bope quanto com a vermelha do comandante Che Guevara.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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