Nem todos enxergam a mesma paisagem em ruínas. Os militares, tão ciosos da segurança nacional, veem com complacência bonachona a dilaceração do tecido institucional. Fernando Gabeira para O Globo:
Umas
coisas estranhas estão acontecendo no Brasil de hoje, e tenho até certa
dificuldade de descrevê-las. Em muitos artigos, renascem as citações de
alguns grandes intérpretes do país, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo
Faoro, Victor Nunes Leal.
São
quase sempre destinadas a enfatizar os velhos defeitos do Brasil que,
apesar dos tempos, reaparecem com força: o conluio das elites políticas
para transformar o Tesouro nacional em patrimônio de alguns, a
associação com as elites regionais para preservar seu poder.
Parece
que o Brasil ficou velho de repente e que não se deu conta. A jovem
democracia se olha no espelho como Dorian Gray, personagem de Oscar
Wilde, que vê no retrato as deformações da idade, de seu súbito
envelhecimento. É tão perturbador que, às vezes, me pergunto se é apenas
o velho ou o eterno Brasil que se revela diante de nós.
O
fantástico exemplo do orçamento secreto é um sintoma de como viajamos
para o passado. Foi denunciado há alguns meses, mas só agora as
instituições brasileiras se dão conta de que quase R$ 20 bilhões de
dinheiro público são gastos sem a necessária transparência. Como foi
possível um mecanismo tão perverso durar tanto tempo?
A
explicação mais direta é a que aponta para o enlace de Bolsonaro com o
Centrão. É preciso lubrificar com muito dinheiro as engrenagens de apoio
ao governo e, sobretudo, a disposição de se sentar em cima de tantos
pedidos de impeachment.
Mas
é curioso como Bolsonaro se declara conservador, mas, na prática,
revive apenas os grandes erros do passado, conserva o que deveria ser
ultrapassado. Se não é conservador, é apenas um reacionário, mas ainda
assim a descrição ficaria incompleta.
Quando
assumiu o governo, Bolsonaro disse uma frase enigmática: há muito o que
destruir. Sua grande investida foi contra as estruturas de fiscalização
e as próprias leis do meio ambiente. Desorganizou um trabalho de anos,
restabeleceu um ritmo de desmatamento e queimadas que parecia sepultado.
Ao
deparar com a pandemia, Bolsonaro iniciou a demolição do Ministério da
Saúde, a ponto de entregá-lo a um general que não distingue um vírus de
um rinoceronte e a curandeiros que propagam a cloroquina. O resultado se
expressa no grande número de mortos pela Covid-19.
Na
Cultura, Bolsonaro fez deliberadamente uma política de terra arrasada,
fiel à frase do oficial franquista na Guerra Civil Espanhola: quando
ouço a palavra cultura, tenho vontade de sacar minha arma.
Com
a demissão em massa dos funcionários do Inep, tornou-se evidente que o
processo destrutivo também avançou na educação, o que já era visível
pelo nível dos ministros que escolhe para a pasta.
O
que acontece com um país que regride à falta de transparência nos
gastos públicos, devorados por vorazes quadrilhas parlamentares? O que
acontece com um país, neste momento da História planetária, que estimula
a destruição de seus recursos naturais e, consequentemente, aumenta o
perigo de extinção da espécie humana?
Bolsonaro
ainda tem apoio de muitos, não tantos como no passado. Mas ainda tem
apoio, mesmo entre jornalistas que racionalizam suas loucuras, não tanto
por admiração, mas por uma espécie de teimosia ideológica.
Nem
todos enxergam a mesma paisagem em ruínas. Os militares, tão ciosos da
segurança nacional, veem com complacência bonachona a dilaceração do
tecido institucional.
Os
generais no governo associavam o Centrão a um bando de salteadores.
Agora são cúmplices silenciosos e, possivelmente, sorridentes do grande
assalto aos cofres públicos.
Por
tudo isso, o grande número de pessoas que podem salvar o Brasil dessa
destrutiva regressão precisa compreender a gravidade do sentimento de
perder um país, relevar disputas e rivalidades eleitorais e se dar conta
do buraco em que nos metemos. É um perigo compreender tarde demais a
dimensão da nossa crise.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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