MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 13 de novembro de 2021

Medroso? O outro lado da "fuga" de D. João VI para o Brasil.

 



Ideólogos trabalham pela manutenção da verve maniqueísta que marca quase tudo o que é lido e ensinado sobre a presença portuguesa no Brasil, retratada como estritamente exploratória e nociva. Maria Clara Vieira para a Gazeta do Povo:


"Prefiro ser conhecido como o rei fujão do que como o rei morto", brada o príncipe-regente português gorducho, de bochechas flácidas lambuzadas em coxinhas de frango, em resposta ao questionamento de sua impetuosa e detestável esposa, nascida princesa da Espanha: “queres ser reconhecido como João, o Rei Fujão?”.

Mais de 25 anos após sua estreia, o filme “Carlota Joaquina, a Princesa do Brazil”, dirigido por Carla Camurati, ainda retrata a forma como o imaginário nacional imortalizou uma de suas figuras mais relevantes. Primeiro monarca europeu a viver e governar em terras coloniais, Dom João VI, o príncipe-regente do Reino de Portugal, Brasil e Algarves, entrou para a história como o personagem encarnado por Marco Nanini: o chefe de Estado inseguro e manipulável que covardemente abandonou o povo português à mercê de Napoleão Bonaparte enquanto fugia com a corte para o Rio de Janeiro.

Iniciada em 1808, a estadia de Dom João em terras brasileiras se estendeu até 1821 quando, por força da Revolução Liberal do Porto, o monarca teve que voltar à metrópole para defender a monarquia. 200 anos depois desta mal conhecida viagem, uma obra com documentos inéditos e ainda indisponível no Brasil detalha não apenas os 68 dias de travessia entre a capital imperial e Lisboa, mas a extensão das decisões tomadas pelo príncipe regente, além de acrescentar novas cores ao seu mal representado caráter. Em Portugal, o jornalista e pesquisador Armando Seixas Ferreira publicou, no mês passado, o livro “1821 - O regresso do rei”, no qual argumenta que a vinda da família real portuguesa para o Rio não foi uma manobra conveniente e amedrontada, mas astuta e imprescindível para a sobrevivência do reino.

"É uma injustiça resumir D. João VI a uma figura caricata. Existe uma espécie de negacionismo em relação a este monarca que é preciso rebater em nome da verdade”, afirmou Ferreira, em entrevista ao Diário de Notícias. “Essa visão do rei fraco e medroso que fugiu e abandonou o seu povo foi propagandeada pelos jornais de Napoleão para justificar o fracasso da captura da família real (...). É uma visão deturpada do seu reinado que chegou até nós, talvez também devido à fisionomia invulgar do rei, de lábio inferior saliente e mais obeso nos últimos anos de vida. Quando vamos aos fatos encontramos um político astuto e com caráter que fica para a história como o rei 'Clemente', porque não gostava de assinar penas capitais. Perdoa a todos, incluindo a mulher e os filhos que conspiraram contra ele. Era um rei do povo", disse o autor.

Ferreira tem como uma de suas principais fontes, além dos diários de bordo inéditos que relatam a viagem de volta, as pesquisas do diplomata e historiador Manuel de Oliveira Lima, que nasceu em Recife, em 1867 e morreu em Washington, em 1928, depois de ter ocupado o posto de professor visitante da Universidade de Harvard. Munido de farta documentação sobre o período conhecido como “joanino”, lançou em 1909 seu “Dom João VI no Brazil”. Após explicar em pormenores todo o contexto político do Reino de Portugal em 1807 - acossado entre a iminente invasão da França, em posse do acordo que previa a cessão de boa parte do território ultramarino português; com os vizinhos espanhóis recentemente depostos por Napoleão -, Oliveira Lima afirma (o trecho reproduz a forma da língua portuguesa utilizada pelo autor):

"Retirando-se para a America, o Príncipe Regente, sem afinal perder mais do que o que possuia na Europa, escapava a todas as humilhações soffridas por seus parentes castelhanos, depostos á força, e além de dispor de todas as probabilidades para arredondar á custa da França e da Hespanha inimigas o seu territorio ultramarino, mantinha-se na plenitude dos seus direitos, pretenções e esperanças. Era como que uma ameaça viva e constante á manutenção da integridade do systema nepoleonico. Qualquer negligencia, qualquer desaggregação seria logo aproveitada”.

A obra de Oliveira Lima não é de todo desconhecida no Brasil. Mas ainda que haja esforços pontuais para conferir nuances à personalidade do filho de D. Maria I, os textos mais populares - e que acabam por respingar nos currículos escolares e discussões acadêmicas - sobre a vida de Dom João acabam por reforçar a impressão dominante. Vide, por exemplo, o best-seller do jornalista Laurentino Gomes, “1808: Como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil” (Editora Globo).

Na apresentação, Gomes menciona as pesquisas de Oliveira Lima e rejeita a forma caricata que Camurati atribui ao príncipe-regente, mas privilegia vozes que lhe conferem o adjetivo, senão de covarde, de excessivamente pacífico, citando o historiador Tobias Monteiro: “Preferindo abandonar a Europa, D. João procedeu com exato conhecimento de si mesmo (...) Sabendo-se incapaz de heroísmo, escolheu a solução pacífica de encabeçar o êxodo e procurar no morno torpor dos trópicos a tranquilidade ou o ócio para que nasceu.”

Para Ferreira, contudo, a trasladação da corte para o Brasil (à qual Gomes opta por chamar de “fuga”) foi uma manobra inteligente. "Quando em 1807 decide embarcar a corte para o Brasil para salvar a independência do império, o filho de D. Maria I arriscava tudo naquela viagem. Nunca um soberano europeu tinha mudado de hemisfério, transportando cerca de 15 mil pessoas. É preciso ter um sangue frio enorme para tomar aquela decisão. Essa resolução fez ruir os planos de Napoleão na península ibérica”, explica o jornalista. Segundo o autor, o próprio vice-almirante de Portugal, Henrique Gouveia e Melo - líder da bem-sucedida campanha de vacinação no país - elogiou sua apuração, reconhecendo Dom João VI como um rei “astucioso e inteligente”.

“Gouveia e Melo explicou que o rei usou o oceano e o Brasil para defender a nação, usando toda essa profundidade e recuando para um ponto em que depois podia recuperar outra vez a independência, fazendo com isso, pela primeira vez, o estabelecimento de um reino europeu no Brasil. Quando chega a Lisboa em 1821, D. João VI regressa como o rei que libertou os seus vassalos e venceu Napoleão", diz Ferreira. O próprio imperador francês admitiria, do exílio, que o príncipe-regente fora o único a enganá-lo.

"Dom João gostava muito do povo brasileiro, vivia nas suas quintas no Rio e tinha uma relação muito afetuosa com o país. Volta muito contrariado para Portugal, por conta das revoltas liberais no Porto em 1921. Com as invasões napoleônicas, havia o risco de Portugal ser completamente absorvido pelas forças francesas ou pela coroa de Castela - algo que os portugueses temiam desde a Guerra da Restauração”, explica Alexandre Sugamosto, professor de Ética e Filosofia Corporativa e Doutorando em Ciências da Religião (PUC-Minas).

Os “cancelamentos” da monarquia

A propaganda napoleônica, contudo, não foi a única a moldar o imaginário brasileiro sobre Dom João VI e outras figuras do período colonial. Após o golpe de 1889, houve um esforço deliberado por parte dos republicanos de “desconstruir” a imagem do império, que ainda contava com ampla popularidade. “A proclamação da república foi um evento muito estranho no Brasil, passaram-se meses até que o povo soubesse que havia acontecido”, lembra Sugamosto, fazendo referência ao ensaio “A Formação das Almas”, do historiador José Murilo de Carvalho, que se debruça sobre a construção do imaginário nacional depois do exílio da família imperial.

"Aprofundando a investigação, verifiquei que (...) também houve entre nós a batalha de símbolos e alegorias, parte integrante das batalhas ideológica e política. Tratava-se de uma batalha em torno da imagem do novo regime, cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos. (...) A manipulação do imaginário é particularmente importante em momentos de mudança política e social é particularmente importante em momentos de mudança política e social, em momentos de redefinição de identidades coletivas", escreve Carvalho.

Quase trinta anos após a publicação do ensaio, novos ideólogos trabalham pela manutenção da verve maniqueísta que marca quase tudo o que é lido e ensinado sobre a presença portuguesa no Brasil, retratada como estritamente exploratória e nociva.

“Essas alas progressistas que percebem a monarquia como colonizadora esquecem que a relação da Coroa portuguesa com o Brasil é muito complexa e inédita - foi a primeira vez na história que a sede de um império passou para a colônia. É claro que a vinda da corte coloca outras questões em cheque - os novos impostos, o modelo de administração e da Coroa, os gastos que ela produz para os brasileiros que já estavam aqui. Com o tempo, tudo isso começa a fomentar o movimento independentista. A gente não precisa ter uma avaliação moral sobre essa manobra, mas ela foi, sob o ponto de vista diplomático e tático, inteligentíssima, a ponto de conseguir salvaguardar a unidade do império português”, defende Sugamosto.

Nada impede que na personalidade do filho de Dona Maria I tenham convivido o apreciador de coxinhas de frango um tanto inseguro e o estadista audaz que deu início a uma empreitada sem precedentes. Uma década após a proclamação da República, Oliveira Lima o descrevia como um “rei popular”, visto pela população com “uma certa dose de reconhecimento, um poucochinho de compaixão e uns toques de protecção”, insistindo que “é muito mais justo considerar a trasladação da côrte para o Rio de Janeiro como uma intelligente e feliz manobra politica do que uma deserção cobarde".
 
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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