Por que a sigla MPB virou uma espécie de grife e não é aplicada à música sertaneja? Se eu fizesse manchetes, escreveria assim: Morre astro da MPB Marília Mendonça. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Dormimos
no dia 4 de novembro de 2021 nos queixando do péssimo estado da música
brasileira e, no dia 5 de novembro de 2021, dormimos lastimando a morte
de um gênio da música brasileira. Curioso é que não se tenha grafado (ao
menos eu não vi) música popular brasileira, ou MPB, para se referir a
Marília Mendonça. Afinal, o que ela fazia era música e era brasileira.
“Popular” tem duas acepções relevantes: uma em contraposição ao erudito e
outra cujo antônimo é “impopular”. Sem dúvida a música de Marília
Mendonça estava longe de ser impopular. E sem dúvida ela não era uma
cantora de música erudita.
Como
expoentes da música erudita brasileira temos Carlos Gomes e Heitor
Villa-Lobos, ainda que ninguém tenha inventado a sigla MEB. Quando
chamamos Chico e Caetano de expoentes da MPB, música popular brasileira,
estamos dizendo apenas que não são expoentes da hipotética MEB. Por
que, então, a sigla MPB virou uma espécie de grife e não é aplicada à
música sertaneja? Se eu fizesse manchetes, escreveria assim: Morre astro
da MPB Marília Mendonça.
MPB por oposição ao rock
O
que significa MPB, na prática? Incontrovertido é ela designar, hoje, os
grandes medalhões surgidos nos Festivais de Música Popular Brasileira
da TVs Excelsior e Record nos anos 60. Chico, Caetano, Gil, Nara Leão,
Elis Regina são dessa leva. O nome do festival é compreensivo; abarca
qualquer gênero musical brasileiro não-erudito. A maior controvérsia aí
era o “brasileira”: se uma música tivesse guitarras elétricas, poderia
ser considerada legítima música brasileira? Ora, guitarra elétrica é
coisa de rock, rock é música estrangeira; por isso, se tem guitarra, não
é MPB.
A
questão das guitarras foi acalorada à época. Em 1967 houve até uma
Marcha Contra a Guitarra Elétrica em 1967, encabeçada por ninguém menos
que Elis Regina. Gil foi, mesmo gostando da guitarra, porque gostava de
Elis e porque Gil é Gil. A ideia era defender o que é nosso contra algo
que poderia ser chamado de imperialismo ianque, embora, até onde eu
saiba, eles não tenham usado essa expressão nesse contexto. Mas o fato
era que as guitarras representavam um apocalipse musical brasileiro.
A
Marcha Contra a Guitarra Elétrica, ou Passeata da MPB, tinha sob sua
mira a chegada do rock e, por tabela, a possível degeneração da música
brasileira com a introdução desse novo instrumento. Vocês sabem como são
os esquerdistas com os norte-americanos; eles na certa deviam achar que
Roberto Carlos e a Jovem Guarda eram agentes da CIA a serem combatidos
com modinhas de viola.
Antes
de se encantar com um certo mulatão pernambucano estalinista na
terceira idade, Caetano era conhecido por ser mais cabeça aberta que a
esquerda da época. Em 67, ele apresentara no Festival de MPB “Alegria,
Alegria”, em que ele cantava com roqueiros argentinos residentes em São
Paulo (os Beat Boys). Foi a primeira vez que se usou guitarra numa
música brasileira sem pretensões de fazer rock.
Outro
evento marcante, também em 67, foi a entrada de Gil com os Mutantes
para cantar “Domingo no Parque”, misturando berimbau com guitarra
elétrica e violino. A letra jamais passaria hoje, porque tem
“feminicídio” e masculinidade tóxica. Talvez os feminicídios de 67
possam ser todos imputados a Gil e considerados imprescritíveis.
No
ano seguinte, Caetano cria com Gil um movimento que é quase um PMDB
musical: a Tropicália. O LP “Tropicália, ou Panis et Circenses”, reúne
desde Os Mutantes até Nara Leão, e, em meio a tantas inovações, fecha
com um Hino do Senhor do Bonfim (que toca em rádio em Salvador todo
dia). Caetano fez shows com Os Mutantes e tomou vaia por causa da
guitarra. Foi nesse contexto que ele disse, contra a juventude
esquerdista antiamericana: “Se vocês em política forem como são em
estética, estamos feitos!”
Mas
Caetano e Gil são inequivocamente reconhecidos como artistas da MPB, ao
passo que Os Mutantes, marcados como roqueiros, costumam ficar de fora.
Em princípio, por causa do B de MPB.
MPB por oposição à era do rádio
Se
Caetano e Gil eram estranhos no ninho no começo, quem seria um expoente
ideal para retratar aquilo que se entende por MPB ontem e hoje? Ao meu
ver, Chico Buarque.
Exceto
pela convergência na MPB, Chico tem um perfil completamente diferente
de Caetano em seu trajeto musical. A MPB surgiu televisiva; antes dela,
havia uma musicalidade mais tradicional transmitida pelo rádio e um
movimento inovador chamado Bossa Nova, liderada por João Gilberto e Tom
Jobim. A Era do Rádio tinha grandes divas de voz potente que cantavam
músicas muito bem arranjadas por músicos sofisticados. Na Bossa Nova, a
música se tornou ao mesmo tempo mais simples e mais autoral. Você via
João Gilberto só com seu banquinho e seu violão, com uma voz que não era
lá grande coisa, tocando suas próprias composições. Saem de cena
grandes arranjos, o foco vai para a melodia da voz. E essa melodia é
altamente cantarolável ou assobiável.
Chico
Buarque era um compositor bonito de voz fraca que na era da TV virou
cantor. Quem gostava muito dele era Jacob do Bandolim, grande músico de
chorinho. E sua intérprete favorita era Elizeth Cardoso. Vocês podem
ouvi-la cantando Carolina, de Chico Buarque, acompanhada por Jacob do
Bandolim, e comparar com o próprio Chico cantando a música.
Deu
uma joãogilbertizada. Saem o vozeirão e os instrumentistas virtuose,
entram um arranjo mais simples e a voz autoral modesta. O arranjo não é
tão simples quanto o da Bossa Nova nem tão complexo quanto o da Era do
Rádio.
A
questão de ser ou não ser autoral é mais maleável, pois existiam
coautorias e nem sempre João Gilberto cantava músicas próprias. Por
outro lado, cantoras como Elis Regina, Maria Bethânia e Gal Costa
imprimem sua personalidade marcante a músicas que elas não compuseram. E
Gal Costa mostra que a questão da personalidade é tão importante que dá
para uma cantora não-compositora continuar cantando mesmo quando a voz
já foi pro saco há muito tempo.
Agora
vamos focar nisso de você poder cantarolar ou assobiar MPB. Caetano
Veloso já contou, certa feita, que compôs “Beleza Pura” por não
conseguir cantar “O Violeiro”, de Elomar. O violeiro do semiárido baiano
tinha amplitude vocal para cantar “Viola, forria, amor, dinheiro não”.
Caetano, de fôlego mais curto, criou o versinho, “Dinheiro não, beleza
pura”. Ainda que Elomar também possa cantar só com voz e violão, como
João Gilberto (que aliás também é do semiárido baiano), ainda que sua a
voz paute a melodia, como a de João Gilberto, Elomar compõe músicas que
não dá pra cantarolar – ao contrário de João Gilberto e dos músicos da
MPB.
No
mais, cabe destacar que essa voz melódica é de matriz ibérica. Quem
quiser ver uma música tradicional pautada pela percussão pode ouvir o
samba original, o do Recôncavo (terra de Caetano). Tem voz, mas é
monótona, não melódica. O próprio cavaquinho se empenha em acompanhar o
compasso dado pela percussão. Não dá pra cantarolar direito porque é
monótono e feito pra dançar. Chegando ao Rio, o samba mudou.
Então
fiquemos assim: embora “música popular brasileira”, por extenso,
abarque tudo o que é música brasileira não-erudita, a sigla MPB ganhou
vida própria nos anos 60 por designar um estilo musical brasileiro novo.
As marcas desse estilo são a voz comandando uma música melódica, porém
simples o suficiente para poder ser cantada. Os instrumentos são os mais
variados; a guitarra elétrica veio pra ficar. Pode ser voz e violão,
pode ter instrumentos de música clássica, pode ter teremim e até um
remix ao fundo.
MPB como grife?
Com
essa descrição acima, dá para darmos conta até dos anos 90 ou 2000,
pelo menos, quando fizeram sucesso figuras como Zélia Duncan, Adriana
Calcanhotto, Marisa Monte, Jorge Vercillo… Ouvíamos “MPB” e éramos
capazes de pensar em cantoras em plena atividade – embora compositores
marcantes já estivessem em baixa, em comparação com as cantoras.
Outra
vez, Marília Mendonça atende a todos os pré-requisitos. Compositora de
músicas que o povo sai cantarolando a torto e a direito, era capaz de
cantar com “um banquinho, um violão” tocado pela própria, era uma
cantora autoral como Chico Buarque. “Alô Porteiro” se parece mais com
música de fossa cantada por alguma diva da MPB do que com música
caipira. Se me mostrassem a letra de “O que falta em você sou eu”, eu ia
achar que era do repertório de Paula Toller.
Aí,
eu creio que só esnobismo explica. Se alguém começou no sertanejo, vem
de Goiás e faz sucesso à revelia da TV, só pode ser chinfrim, e se é
chinfrim, não é MPB, porque MPB é coisa chique, de gente fina, elegante e
sincera. As pessoas pensam essas coisas sem nem tentar caracterizar a
MPB. Eu tentei; quem discordar, dê seus parâmetros.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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