Romance e história, através dos seus tão diferentes procedimentos, ajudam-nos a mobilar a nossa cela. E cada um dos gêneros permite-nos pôr no devido lugar os fantasmas carcereiros que nos gritam. Crônica do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Há
uma passagem do Ricardo II de Shakespeare que vive comigo desde que
primeiro a li. É no princípio da quinta cena, a penúltima da peça, do
acto V. Ricardo encontra-se na sua cela e em breve será assassinado.
Entretanto, vai tentando comparar a prisão onde vive com o mundo. Mas o
mundo é povoado por homens e na sua cela ele está sozinho. É, no
entanto, preciso convocar a presença humana. E, para isso, “o meu
cérebro tornar-se-á a fêmea da minha alma; a minha alma será o pai:
ambas engendrarão uma geração de ideias constantemente produtoras e
todas essas ideias povoarão este pequeno mundo, e povoá-lo-ão de
inconsequências, como é povoado o universo; pois não há pensamento algum
que se satisfaça”.
Em
circunstâncias menos trágicas, tal é a experiência do leitor, com a
diferença que o cérebro e a alma se encontram nos livros, nos quais a
procriação das ideias se oferece como espectáculo a quem os lê.
Dependendo daquilo que se poderia chamar a nossa energia de crença, as
personagens engendradas pela imaginação do autor vão preenchendo essa
particular cela que é a nossa mente. As personagens vão saindo da noite
do mundo e passamos a viver no meio delas, como se a prisão não
existisse, nem a nossa solidão.
Ando,
por razões profissionais, a reler aquelas que são talvez as duas
maiores obras de prosa do nosso século XIX, o Portugal Contemporâneo e
Os Maias. E, sem surpresa, constato mais uma vez que as personagens do
livro de Eça se imprimem na memória de um modo muito mais claro e
definido do que as de Oliveira Martins. Não me surpreendendo, como
disse, a coisa maravilha-me. Mesmo sabendo muito bem a razão de isto ser
assim: a diferença entre os géneros literários que são o romance e a
história.
É
que, no primeiro caso, as personagens são por inteiro, no que possuem
de mais relevante, uma criação do autor e os seus gestos e intenções
têm, tanto quanto possível, uma forma acabada que não apela, para a sua
compreensão inteira, a nada de exterior ao romance, pelo menos no que ao
prazer da leitura diz respeito. Para as conhecermos integralmente,
basta-nos a leitura do próprio romance. Se se quiser, por exemplo, saber
quem são João da Ega ou Dâmaso Salcede basta-nos ler Os Maias. Não é
preciso andar a buscar noutros livros características que nos ajudem a
identificá-los. Eles estão ali inteiros, de corpo e alma.
No
caso das personagens históricas, a situação não podia ser mais
diferente. Por mais efectivos que sejam o estilo, o saber e a visão do
historiador, por maior que seja o seu poder não só de persuasão, mas de
convicção, há sempre um resto que sobra, e esse resto temos de o ir
procurar noutros livros, que nos ajudarão eventualmente a corrigir a
imagem que o livro que lemos nos dá. Em Oliveira Martins, por exemplo,
D. Pedro. Será que o seu traço dominante era a vaidade, como Oliveira
Martins não se cansa de repetir? Para as personagens do Portugal
Contemporâneo, mesmo nos casos que nos aparecem dotados de uma maior
evidência, como o de Teles Jordão e do seu filho, “o menino”, que logo
se fixam na memória, temos de confrontar Oliveira Martins com outros
historiadores, como, limitando-nos aos nossos contemporâneos, Vasco
Pulido Valente, Maria de Fátima Bonifácio ou Rui Ramos. Mais, talvez,
até nos casos em que a caracterização de Oliveira Martins é
razoavelmente unívoca – a daqueles que escapam à sua crítica impiedosa
do liberalismo: Mouzinho da Silveira, Passos Manuel, Herculano e, em
parte (por causa do Frei Luís de Sousa), Garrett, quase todos “vítimas” –
do que quando – como D. Miguel ou Saldanha – ele usa de um estilo que,
para nos dar a imagem da vida, é feito de caracterizações
contraditórias, e que é, de resto, extraordinariamente conseguido.
Se
isto é assim, é por uma razão simples de perceber. É que a história
conhece um abismo que o romance ignora. O abismo é o da existência real
passada. É – vale a pena usar aqui o jargão filosófico – um abismo
ontológico. Lidamos, na história, com personagens que existiram
realmente no passado, e o puro facto dessa existência constitui um
resíduo que não é nunca inteiramente capturável pelo espírito. A
“revivescência” que Michelet procurava, e que Oliveira Marins buscava
também, deixa sempre margem para a pergunta ingénua, mas imprescindível,
porque nela se encontra a maravilha da história: terão sido realmente
assim? Uma pergunta que, obviamente, o romance não nos convida a fazer.
A
história mostra-nos incansavelmente, com um sucesso variável, que o
passado existe (não digo: existiu; digo: existe). Quando o consegue de
forma satisfatória, é um milagre maior, sobretudo nos nossos tempos, em
que tudo conspira para, por processos frustres ou subtis, o negar mais
ou menos selectivamente. No romance não é assim. Também por uma espécie
de milagre, embora de natureza muito diversa, tudo, mesmo que o romance
lide com um tempo distante do nosso, aparece dotado da evidência do
presente. Porque o romance não conhece o abismo que a história conhece.
Não há nele qualquer existência real passada que resista à captura do
nosso espírito. Os Maias comunicam directamente com o nosso presente,
sem necessidade de mediações ou explicações. Aristóteles, e depois dele
Schopenhauer, tinham razão em afirmar que a poesia (e é legítimo
acrescentar: o romance) é mais universal do que a história, que se
encontra presa ao contingente. Mas é preciso acrescentar que é o
contacto sempre precário com esse contingente, esse contingente cuja
existência é um enigma perpetuamente renovado, que torna a história um
dos mais fascinantes géneros literários.
De
qualquer maneira, romance e história, através dos seus tão diferentes
procedimentos, ajudam-nos a mobilar a nossa cela. E cada um dos géneros
permite-nos pôr no devido lugar os fantasmas carcereiros que nos gritam a
reivindicar a nossa atenção à sua dúbia existência. Por estes dias:
Costa, Marcelo e Rio. E, pondo-os no seu devido lugar, vamo-nos
protegendo, na medida do possível, do péssimo espectáculo que eles,
presenças humanas que não apetece convocar, nos dão. Não é pouco.
blog orlando tambosi
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