Há 200 anos nascia em Moscou o escritor que se dedicou obsessivamente a explorar as comoventes contradições da condição moderna. José Andrés Rojo para o El País:
Fiódor
Mikhailovitch Dostoiévski nasceu há 200 anos em Moscou, e sua obra,
desproporcional e marcada pela comovente profundidade das grandes
palavras, continua ao alcance dos leitores de uma sociedade como a atual, descrente, longe da transcendência, volátil. Têm hoje relevância os temas que um dia obcecaram o escritor russo?
Continuam vigentes seu estilo fogoso e essa ânsia de colocar em cena os
assuntos mais diversos, vistos sempre de perspectivas diferentes,
discutidos, espremidos ao máximo? A culpa, os açoites de uma consciência
que não encontra lugar num mundo que se transforma, as velhas perguntas
pelo sentido da vida, os infindáveis flagelos da injustiça, a tentação
do jogo e da bebida e de se perder, o niilismo:
todos esses imponentes assuntos foram encarnados por Dostoiévski em
distintos personagens que, pouco a pouco, ganharam importância pela
enorme tensão das questões às quais eram arrastados, pelo peso do mundo,
que os confrontava com suas contradições, que os empurrava em direção
ao mal ou exigia que procurassem algum caminho de salvação. “Agora o
homem ama a vida porque ama a dor e o terror, e aí está todo o engano”,
diz um personagem de Os Demônios. “Agora o homem não é ainda o que será.
Haverá um homem novo, feliz e orgulhoso. Para esse homem, será igual
viver ou não viver; esse será o homem novo. Aquele que conquistar a dor e
o terror será, por isso mesmo, Deus.
Viver
ou não viver, ter a coragem suficiente para tirar a própria vida,
conquistar a dor: por esse terreno Dostoiévski transitava. Em 22 de
dezembro de 1849, ele esteve a ponto de ser colocado diante de um
pelotão de fuzilamento, e faltava pouco para que que deixasse este
mundo, quando chegou o indulto que o czar Nicolau I finalmente concedeu a
um grupo de prisioneiros condenados à morte. O escritor fora detido
meses antes com outros intelectuais do Círculo Petrashevski:
compartilhavam ideias reformistas para acabar com as injustiças na
Rússia e estavam próximos das ideias dos socialistas utópicos.
Dostoiévski foi enviado a um presídio na Sibéria, em Omsk, para passar
cinco anos, e depois precisou servir outros cinco numa fortaleza do
Cazaquistão. “Chegavam ao presídio aqueles que, em liberdade, tinham
perdido todas as medidas e ultrapassado todos os limites, a tal ponto
que davam a impressão de terem acabado cometendo seus crimes, não por
vontade própria, mas sem saber por quê, numa espécie de delírio ou de
embriaguez; muitas vezes, por uma vaidade muito elevada”, escreveu ele
em Memórias da Casa dos Mortos. Quando o condenaram, perdeu seu título
de nobre, seu posto militar de tenente de engenheiros e seus direitos
civis. De volta daquele inferno, abandonou sua ânsia de mudar tudo,
tornou-se conservador, refugiou-se na religião e na velha Rússia.
Nascera
em 11 de novembro de 1821. Seu pai era médico, sua mãe lhe inoculou o
gosto pela leitura. Teve uma excelente formação em São Petersburgo, mas
não se interessou pela disciplina militar e acabou se debruçando sobre a
literatura. Seu primeiro romance, Gente Pobre, foi lançado em 1846 e
teve certo sucesso, de modo que ele continuou publicando e revelou já na
época seu interesse pelos conflitos psicológicos, o olhar social, a
reflexão filosófica. Gastava mais do que podia e se endividava com
frequência. A ferida profunda que seu exílio na Sibéria provocou
foi uma das muitas que ele teve ao longo da vida. Casou-se em 1857 com
Anna Dmitrievna quando era apenas um soldado raso do sétimo batalhão em
Semipalatinsk. Pouco depois, recebeu o diagnóstico de epilepsia como
doença crônica. Regressou finalmente a São Petersburgo na véspera de
1860. Alguns anos mais tarde, quando seu casamento dava sinais de
desgaste, viajou sozinho pela Europa. Descobriu o jogo, perdeu grandes
quantias na roleta e se apaixonou por Apolinaria Suslova, uma mulher
muito mais jovem que ele, com quem teve uma relação explosiva. Em 1863,
já em casa, perdeu sua primeira mulher. Voltou a se casar em 1867 com
Anna Grigorievna, a quem ditou O Jogador, o romance que resgatava sua
tumultuada paixão anterior. Ainda seria atingido por outras desgraças:
perdeu um filho de seu primeiro casamento, uma filha do segundo, e seu
irmão Mikhail morreu em 1864.
Foi
esse homem dilacerado e endurecido por tantas penalidades que
originaria, a partir desse momento, suas maiores obras, escritas muitas
vezes de forma desajeitada, arrastado por uma poderosa torrente que o
empurrava a mergulhar nos subterrâneos da consciência e que o levava a
fazer explodir os dilemas e medos do ser humano. Crime e Castigo,
O Idiota, Os Demônios e Os Irmãos Karamázov são romances com
personagens que se sentem oprimidos pelo enorme peso de serem
conscientes do que significa viver. Dostoiévski morreu em 9 de fevereiro
de 1881. Agora, por ocasião dos 200 anos de seu nascimento, apareceram
alguns títulos que recuperam sua obra ou que a iluminam. É o caso da
biografia Dostoiévski, do romeno Virgil Tanase, que soube restituir com
tensão e eficácia as peripécias do escritor e as circunstâncias que
alimentaram suas obras. Assim também o fazem Tamara Djermanovic em sua
aproximação pessoal, resumindo em El Universo de Dostoiévski (O universo
de Dostoiévski) uma longa relação com o escritor, e Nicolás Caparrós,
em Dostoievski en Las Mazmorras del Espíritu (As masmorras do espírito).
A editora espanhola Galaxia Gutenberg publicou o segundo volume de sua
obra completa, que inclui O Sonho do Tio, Aldeia de Stepánchikovo e Seus
Habitantes, Humilhados e Ofendidos e Memórias da Casa dos Mortos, todos
eles escritos ou concebidos na fase final de seu longo desterro. Já a
editora espanhola Páginas de Espuma apresentou as mais de 2.000 páginas
de Diário de um Escritor.
Sem meias palavras
Não
tem nada a ver com um diário. São artigos de jornal que ele começou a
escrever sob esse rótulo porque neles falaria, segundo suas palavras,
“para mim mesmo e por puro prazer (...) de tudo o que me ocorrer, ou do
que me fizer pensar.” Paul Viejo, responsável pela edição, explica na
nota que prefacia os dois volumes, que a equipe acabou reunindo todas as
peças jornalísticas de Dostoiévski, não apenas as que em três momentos
diferentes ele publicou sob esse título: em 1873, em 1876 —como livreto
mensal editado, redigido e financiado pelo próprio escritor— e em 1891. É
a sua última época, e Dostoiévski se pronuncia a respeito de tudo, do
menor detalhe à questão mais relevante, com a maior liberdade, sem meias
palavras e questionando sempre. Em O Jogador, um cavalheiro britânico
diz ao protagonista durante uma conversa: “Somente os russos são capazes
de reunir tantas contradições ao mesmo tempo. De fato, os homens gostam
de ver seus melhores amigos humilhados diante de si. A amizade se baseia,
em grande parte, na humilhação. É uma velha verdade conhecida por todas
as pessoas inteligentes no mundo.” Dostoiévski completa hoje 200 anos, e
quem sabe observações como essa ainda possam ter eco numa sociedade
pacata como a atual, que se afasta das nuances e quer tudo em branco e
preto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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