Em 2021, o abate de suínos no segundo trimestre foi o maior desde 1997: 13 milhões de cabeças abatidas, aumento de 8% em relação ao mesmo período de 2020. Evaristo de Miranda para a Oeste:
“Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo”
Dominguinhos e Gil
Presunto
ou pernil, costela ou lombo, salame ou mortadela, salsicha ou linguiça,
presunto cru ou cozido, paio ou salpicão, panceta ou carne de lata,
torresmo ou bacon, codeguim ou chouriço… A carne de porco, consumida in
natura ou processada, habita o cotidiano dos brasileiros. Ela é uma das
maiores marcas da Península Ibérica na cultura culinária nacional e gera
riquezas de Norte a Sul do Brasil.
A
carne de porco não oferece risco à saúde, como imaginado décadas atrás.
Nas granjas, o porco brasileiro está magro e saudável. A Embrapa até
desenvolveu o “porco light”, produzido na região de Passos, em Minas
Gerais. Ele tem 31% menos de gordura na carne e no toucinho e 10% a
menos de colesterol. A carne suína é a mais consumida no mundo. Supera a
bovina e a de frango, apesar da proibição de seu consumo pelo islamismo
e judaísmo.
De
onde vem essa proibição? Quando o Islã surgiu, no século 7, o porco não
era um animal abundante na Península Arábica. O livro sagrado dos
muçulmanos, o Corão, incorporou regras dietéticas da lei mosaica. A
proibição da carne de porco é mais marcada no Islã. Para alguns, a
decisão contra os suínos foi de ordem tática: dar ao Islã um ponto de
vista claramente distinto do cristianismo, seu principal adversário.
Isso lhe permitiria ganhar apoio dos vizinhos judeus do Oriente Médio. E
uma eventual conversão dos judeus ao Islã poderia ser encorajada pela
manutenção desse tabu.
Seja
qual tenha sido a razão, o porco na Bíblia é desvalorizado. No Antigo
Testamento, ele é tratado como animal impuro, símbolo do mundo pagão e
dos inimigos de Israel. No Novo Testamento, na parábola do filho
pródigo, o jovem, depois de dilapidar todos os seus bens, se torna
guardião de porcos, algo estritamente proibido aos hebreus, imagem da
sua decadência suprema (Lucas 15:11-32). Em outro episódio, sobre uma
vara 2 mil de porcos (sic), Jesus lança uma legião de demônios,
atendendo ao pedido dos mesmos (Marcos 5:12). E mata por afogamento,
demônios e porcos. Uma tragédia, sem falar do impacto ambiental: 2 mil
porcos apodrecendo nas águas (Mateus 8:28-34).
Seguindo
suas raízes gregas e romanas, os cristãos reabilitaram os suínos. E
deles fizeram uma arma para combater o Islã, sobretudo na Península
Ibérica. Em Espanha e Portugal, os cristãos atacaram os mouros com a
espada numa mão e um presunto, ibérico, na outra. De 711 a 1492, as
fronteiras sempre se moveram entre a Espanha cristã e a muçulmana. Nada
de grandes explicações teológicas para diferenciar os cristãos. Nessa
disputatio bastava dizer: “Criamos e comemos porcos!”. Presuntos,
linguiças e pernis eram pièces de résistance. Alguns atribuem essa
adesão profunda da culinária ibérica aos suínos e cochinillos a uma
identidade cultural de resistência à expansão moura, na qual le plat de
résistance foi o suíno. Como os suínos nunca decepcionaram, chegaram aos
altares. Na iconografia cristã, um simpático e róseo porquinho é
representado ao lado de Santo Antão Abade. Como esse leitão foi parar
ali, ao lado do Pai de Todos os Monges? Outra história.
Na
Terra de Santa Cruz, os porcos trazidos pelos lusitanos sentiram-se em
casa. Produção, consumo e exportação de carne suína vão muito bem,
obrigado. O abate em 2020 foi de 49,3 milhões de suínos, um aumento de
6,4% (mais 3 milhões de cabeças) em relação a 2019. O agro brasileiro
não improvisa: cria e abate quase 50 milhões de porcos por ano!
Em
2021, o abate de suínos no segundo trimestre foi o maior desde 1997: 13
milhões de cabeças abatidas, aumento de 8% em relação ao mesmo período
de 2020, segundo a Estatística da Produção Pecuária
do IBGE. O Sul respondeu por 66,5% dos abates, seguido por Sudeste
(18,2%) e Centro-Oeste (14,1%). Sul e Sudeste garantem cerca de 85% da
produção suína do Brasil. Santa Catarina é líder nacional, com 28,5% dos
abates.
Já
se foi o tempo de criar porco com restos de comida e lavagem, no fundo
do quintal. A produção de suínos do Brasil é uma das mais seguras,
sadias e tecnicizadas do mundo. Ela conta com melhoramento genético de
reprodutores e matrizes, cuidados rígidos na criação com a saúde e o
bem-estar animal, instalações adequadas, rações balanceadas nas várias
etapas da produção, destino adequado e reciclagem dos rejeitos, etc. Os
cuidados no setor chegam ao treinamento constante de caminhoneiros para
transportar os animais de forma adequada e segura, minimizando acidentes
e o estresse dos suínos. As localizações das criações, próximas a
centros consumidores de médio a grande porte e de frigoríficos,
minimizam o tempo de transporte.
A
criação de suínos possui ampla participação de pequenos produtores nas
diversas fases: criação de reprodutores e matrizes, produção de leitões,
criação para abate ou engorda, etc. Mesmo em pequena escala, a produção
exige cuidados semelhantes aos da criação comercial. Os produtores de
suínos estão entre os mais profissionalizados do Brasil. Os cuidados com
a saúde são extremos, diante da permanente ameaça da peste suína.
A
China produzia e consumia mais da metade da carne suína mundial. E foi
devastada pela Peste Suína Africana (PSA). Desde 2018, a doença dizimou
60% do plantel e desequilibrou o mercado global de carnes. Três anos
após os primeiros surtos, a situação segue delicada. De 2018 a 2021,
foram 11 surtos de PSA. Um quinto da produção da China era de “fundo de
quintal”, com alta exposição ao vírus e controle sanitário precário.
Isso levou a mudanças no modelo chinês de produção: maior controle
sanitário, escala e capacitação dos produtores, melhorias em genética,
manejo e nutrição. E favorecerá um maior consumo de farelo de soja. Bom
para o Brasil.
Com
a queda na produção de suínos, a China se abriu à importação de carnes.
Antes da crise, ela representava menos de 5% do consumo. O Brasil
ampliou a exportação de carne bovina para a China e Hong Kong. Com a
progressiva recuperação do plantel suíno chinês e as novas técnicas, a
produção foi retomada. Mas o povo chinês gostou do sabor incomparável da
carne bovina, mesmo em pequenas doses. O primeiro bife a gente nunca
esquece.
As
autoridades chinesas forçam a recolocação de sua carne suína no mercado
interno. Acharam pretextos e suspenderam a importação da carne bovina
do Brasil. Pedem atestados, rastreabilidade e procrastinam a reabertura.
E têm grandes estoques de soja para alimentar as “fábricas verticais”
de suínos. A novela segue. E aqui o prejuízo é grande: suspensão de
abates nos frigoríficos, pecuaristas mantendo bovinos em confinamento
além do tempo, e o mesmo ocorre com o boi no pasto. A queda de preço aos
produtores não aparece nos supermercados, talvez os mais felizes com
tudo isso.
No
Brasil, cuidados sanitários e modernização na produção de suínos e aves
até agora evitaram duas pragas gravíssimas: gripe aviária e peste
suína. É necessário investir e manter esse status de sanidade
excepcional. Novas cepas da PSA apareceram na Europa, África e China. Na
União Europeia, dez países proibiram a importação de carne suína da
Alemanha, maior produtor do continente. E um caso foi apontado no Haiti.
Um fantasma ronda a produção de proteína animal.
Além
da carne suína, produtos como colágeno, gorduras e outros seguem
presentes na vida dos brasileiros em gelatinas, pães, lasanhas, recheios
de raviólis, marshmallow, chocolates, iogurtes, artefatos de couro,
cosméticos, cremes dentais e medicamentos. E, ao lado da produção
intensificada, cresce a criação rústica de suínos, com certificação
orgânica e outras.
Essa
criação “caipira” atende a novas demandas de consumo e a uma
restauração sofisticada e valoriza raças orgulhosamente brasileiras
(Canastra, Caruncho, Pereira, Piau, Sorocaba…) e outras, como o Serrano,
em Mato Grosso. De fazendas no Araguaia a sítios de agricultores em São
Paulo e Minas Gerais, os suínos são criados soltos, se alimentam de
capins, leguminosas e raízes, em piquetes com lagoas de lama e áreas
para procurar insetos e minhocas. Recebem cuidados sanitários e
complementos de alimentação natural: soro de leite, frutas, rações
vegetais, silagens, castanhas (baru, jatobá, buriti, macaúba e de outras
palmeiras). Sua carne é especial.
Restaurantes
famosos, como a Casa do Porco em São Paulo, integram a oferta da carne
suína — em embutidos, curada, defumada, preparada no forno, na brasa ou
na fritura — com vários tesouros da produção artesanal: queijos,
cachaças, cafés, doces e outras iguarias. Bares focados em variações do
torresmo ao joelho de porco, como o do Bigode e do Fortão em Campinas,
para dar exemplo perto de casa, não param de surgir, e oferecem cervejas
artesanais e muita comida de boteco. Em Guarulhos, já tem até um
Festival Anual do Torresmo. É tempo de deixar a picanha um pouco de lado
e focar na carne suína. Entre esses bares famosos, estão os de Minas
Gerais, com seus nomes criativos: Pé de Porco ou ainda o The Tudo um
Porco, de Pouso Alegre. É para pousar e se alegrar mesmo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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