BLOG ORLANDO TAMBOSI
No nosso apartheid educacional, o governo entrega ensino de menor qualidade e quem tem dinheiro migra para o setor privado. Os mais pobres ficam sem opção. Fernando Schüler para a revista Veja:
“Ele
vai voltar”, diz a mãe de Caio, 16 anos, que largou o ensino médio,
durante a pandemia, para trabalhar. “Não tava dando.” Internet ruim,
celular pequeno, dificuldade para entender a matéria, em especial
matemática. “No fim desisti”, diz ele. Sua história é a crônica quase
infinita desta pandemia. Com 3,8 bilhões de reais, diz o IPEA,
poderíamos ter garantido tablets e acesso digital a todos os alunos. Mas
não fizemos. O resultado é que a evasão explodiu. O secretário de
Educação de São Paulo, Rossieli Soares, diz que a aprendizagem dos
alunos regrediu em até catorze anos, e usa a palavra “tragédia” para
definir o que se passou na nossa educação.
Minha
tese é que ninguém, no fundo, se preocupa muito com isso. E a razão
básica é que o Brasil do andar de cima soube se proteger bem, na
pandemia. As escolas particulares levaram um baque, no início, mas
rapidamente se reorganizaram. A maioria dos bons colégios voltou,
on-line, duas ou três semanas depois do cancelamento das aulas, e não
parou mais. No setor público foram meses. Símbolo disso é o Colégio
Pedro II, no Rio de Janeiro. Colégio criado no Império, antigo símbolo
de excelência no ensino brasileiro. Neste ano triste de 2021, decidiu
não voltar. “Só em 2022.” Não o fez por uma decisão judicial.
O
setor público ficou para trás pelas razões de sempre. Falta internet,
alunos sem computador, professores sem treinamento, corporação
resistindo a voltar. E sem pressão de mercado. Sem os pais se queixando,
na secretaria, e ameaçando a trocar de escola. O que temos, na prática,
é uma confissão de derrota. De um sistema que deveria fazer exatamente o
que não fez: prover o acesso, garantir os equipamentos, treinar
professores. Dinheiro não faltou. Uma parcela mínima do gasto extra com a
pandemia teria dado conta do problema. Não o fizemos porque os pais de
escola pública não têm força política, nem de mercado. “Vão fazer o
que”, me diz um secretário, “mudar de escola?”. Por que raios, ele diz, a
burocracia pública teria senso de urgência? Alguém acha que perderia o
emprego, se as coisas não funcionassem?
É
assim que funciona nosso apartheid educacional. A pandemia foi apenas
seu striptease. Sua lógica é simples: o governo entrega um ensino de
menor qualidade e quem tem dinheiro migra para o setor privado. Os mais
pobres ficam sem opção. Criam-se dois mundos: um, feito de escolhas,
maior renda e majoritariamente branco; outro, estatal, de menor renda e
majoritariamente negro. Nada disso produto da “loteria natural”, como
por vezes escuto, por aí, mas de um mundo excludente que nós mesmos
desenhamos.
Os
resultados disso são conhecidos. Quem teve a chance de escolher terá
ainda mais chances no vestibular e no mercado de trabalho. Os demais,
pouco mais de 80% de nossos alunos, ficam para trás. O Estado, que
deveria produzir maior igualdade de oportunidades, torna-se ele mesmo
gerador de desigualdade.
Nossa
educação estatal tem má performance exatamente pelo mesmo motivo que
nossos presídios estatais não recuperam os apenados e nossos aeroportos
eram (e alguns ainda o são) obsoletos. O nó da questão está nas amarras
da burocracia, corporativismo e ingerência política. É para mudar essas
coisas que hoje fazemos concessões de parques nacionais e redes de
saneamento. E é por isso que, um a um, nossos aeroportos vão passando à
gestão privada. Porque queremos que eles funcionem. E estamos com
pressa.
Só
na educação pública parecemos não ter pressa nenhuma. E a principal
razão disso, suspeito, vem do fato simples de que quem toma decisões,
por aqui, precisa mais de bons aeroportos do que de boas escolas. Uma
elite feita de políticos e especialistas em educação decidindo, no
Congresso, que “o Fundeb só pode financiar escola estatal”. Sempre com o
cuidado, por óbvio, de matricular os próprios filhos em boas escolas
privadas.
Deveríamos
parar de jogar nas costas dos mais pobres o peso da ineficiência
estrutural de nossa máquina estatal. De um lado, apostar na melhora das
redes públicas tradicionais; de outro, não ter medo de inovar. Trocar a
fixação ideológica por uma exigência ética: assegurar aos mais pobres
uma educação de qualidade similar à que tem acesso nossa classe média.
As
possibilidades de inovação estão aí. O governo de Minas acaba de fechar
uma parceria para a gestão privada de três escolas, num modelo muito
próximo ao das escolas Charter. O modelo é simples: em vez de gerenciar
diretamente as escolas, o governo passa à condição de regulador e
financiador. Assina um contrato de gestão e fiscaliza a qualidade do
serviço. Em Porto Alegre, a prefeitura firmou contratos com diferentes
perfis de escolas privadas. Uma delas é confessional e atende alunos
bolsistas e não bolsistas. Ganha-se diversidade. Alunos de maior e menor
renda convivem em um espaço plural. Outra é com uma escola com o método
Lumiar, baseado em projetos, até então inacessível a alunos de menor
renda.
Nos
últimos anos, cresceu o uso de PPPs para administrar desde parques até
programas de universalização da internet, como se fez no Piauí. Por que
isso não poderia ser feito na educação? Já há uma experiência nessa
linha, na gestão de uma rede de cinquenta escolas infantis em Belo
Horizonte. O parceiro privado constrói a escola em um tempo médio de
onze meses (contra vinte meses do setor público) e faz a gestão
operacional. Os diretores têm, em média, 25% a mais de tempo para se
dedicar aos temas educacionais. Em vez de “apagar incêndios”, como
escutei de uma diretora da rede.
Outra
alternativa é financiar os alunos, em vez de o sistema. O Brasil possui
um incrível exemplo disso, criado no governo Lula: o ProUni. O programa
tem baixa burocracia e dá ao aluno o direito de escolha. O custo é
baixo e os resultados, surpreendentes. Pesquisa do IPEA mostrou que os
bolsistas obtiveram, no Enade, nota média 10 pontos acima dos alunos não
bolsistas. “Políticas de ajuda financeira aos alunos de baixa renda”,
conclui o estudo, “são capazes de conjugar inclusão e qualidade”. A
pergunta óbvia: se o programa funciona no ensino superior, por que não
poderia funcionar no ensino básico?
Nova
York foi uma das primeiras metrópoles americanas a implantar em maior
escala o modelo das escolas Charter. Hoje são perto de 300 escolas
públicas gerenciadas em redes de alta performance, como a Kipp, Success
Academy e Achievement First. Pesquisa de Stanford mostrou que seus
alunos têm um ganho de 63 dias, mais de um terço, de aprendizagem de
matemática em relação aos alunos de escolas públicas tradicionais, e que
é ainda maior para alunos negros, que são a maioria nas Charters.
Anos
atrás visitei uma dessas escolas, a Kipp Infinity Charter School, no
Harlem. Me lembro do silêncio, da concentração dos alunos, 70% negros,
naquela escola com jeito de startup californiana. Lembro das listas com o
desempenho dos alunos, nas paredes, e de uma miniatura da Casa Branca,
com direito a um bonequinho do Obama, que os alunos visitariam no fim do
ano. “Nossa obsessão”, me disse a diretora, “é não perder nenhum
deles”. Em uma sala com alunos pré-adolescentes, leio “classe 2028”.
Pergunto o porquê daquele número. “É quando eles vão se formar na
universidade”, me diz a diretora.
Imediatamente
me lembrei do Brasil, e confesso que me bateu alguma coisa. Era
impossível não ligar alguns pontos tão evidentes, e com aquela sensação
fui caminhando em direção ao metrô da Martin Luther King Boulevard, na
manhã fria do Harlem.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765
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