MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 28 de agosto de 2021

O que é o Isis-K, a facção afegã do Estado Islâmico.

 



Responsáveis pelos atentados em Cabul são dissidentes de grupos terroristas. Acusam os talibãs de serem fantoches e por isso querem derrubá-los e impor um califado. José Carlos Duarte e Pedro Bastos Reis para o Observador:


Para justificar a saída das tropas norte-americanas a 31 de agosto, Joe Biden invocou a ameaça colocada pelo ISIS-K, a fação do autoproclamado Estado Islâmico no Afeganistão. Os alertas foram dados ao longo dos dias e a tragédia que se temia aconteceu, perante a impotência ocidental e dos talibãs — com os ataques terroristas desta quinta-feira em Cabul causarem a morte de dezenas de pessoas.

O Estado Islâmico reivindicou entretanto os ataques, tirando qualquer dúvida sobre a ameaça que o ISIS-K — um grupo ainda mais extremista do que a Al-Qaeda — representa não só para o Afeganistão, como para o resto do mundo. E que beneficiou com o anúncio da saída das tropas norte-americanas do Afeganistão.

“A tomada do Afeganistão pelos talibãs no meio da retirada das tropas norte-americano criou um vazio que, embora talvez não tenha sido propositado, permitiu o ressurgimento do ISIS-K no Afeganistão”, explica ao Observador Ashley Rhoades, analista da área da defesa do instituto RAND. “Os objetivos do ISIS-K espelham os objetivos do ISIS, que procura estabelecer um califado do Estado Islâmico no Médio Oriente e em muitas regiões do mundo. Sendo um braço do ISIS, procuram impor a jihad no mundo ocidental e posicionar-se contra os valores ocidentais, espalhando o terror com ataques contra aqueles que não aderem a valores extremistas”, acrescenta a analista.

Com o objetivo de transformar o Afeganistão na sede do califado islâmico, o grupo ISIS-K vê na saída das tropas estrangeiras uma oportunidade para a sua expansão e para recrutar mais membros, apresentando-se como a única organização verdadeiramente jihadista no Afeganistão e acusando os talibãs de terem sucumbido às imposições do Ocidente, aceitando negociar a chegada ao poder em hotéis no Qatar em vez de o assumirem pela força e sem quaisquer cedências.

“Os membros do ISIS-K querem desafiar e provar que os talibãs não têm o monopólio na insurreição jihadista e que os talibãs já não são insurgentes, porque estão no governo. Além disso, querem dizer que os islamistas já não apoiam os talibãs, porque estes abandonaram a sua ideologia, já não são o grupo de outros tempos.

A chegada dos talibãs ao poder foi celebrada por vários movimentos jihadistas, entre eles a Al-Qaeda, e mais particularmente a rede Haqqani, com ligações ao grupo outrora chefiado por Osama bin Laden, que assumiu, inclusive, missões de segurança sob ordens dos talibãs, desde que estes tomaram o poder em Cabul.

Mas, se a Al-Qaeda celebrou a queda do governo do Presidente Ashraf Ghani e o regresso ao poder do grupo que os protegeu nos anos que antecederam os ataques terroristas contra as Torres Gémeas, nem todos os grupos jihadistas se congratularam com o regresso dos talibãs ao poder. Dias depois de os islamistas tomarem Cabul, o ISIS-K, através de um editorial nas suas redes de propaganda, afirmou que os talibãs não representam o movimento jihadista global e acusou-os de fazerem parte de uma conspiração orquestrada pelos Estados Unidos, uma tentativa de marcarem posição no movimento jihadista global.


“O ISIS-K é dominado por salafistas e opõe-se aos talibãs, acusando-os de serem fantoches dos Estados Unidos e dos serviços secretos paquistaneses. São muito mais radicais na militância islâmica”, afirma ao Observador Abdul Sayed, analista especializado em grupos jihadistas no Afeganistão e no Paquistão.

“Em termos ideológicos, há diferenças mínimas entre os dois. A mundivisão islamista radical assente na sharia é igual. O que os diferencia são as lutas no poder e as miudezas ideológicas. Cada um diz que traiu os princípios ideológicos do islamismo. Mas ambos lutam pelos mesmos recursos”

“Os membros do ISIS-K querem desafiar e provar que os talibãs não têm o monopólio na insurreição jihadista e que os talibãs já não são insurgentes, porque estão no governo. Além disso, querem dizer que os islamistas já não apoiam os talibãs, porque estes abandonaram a sua ideologia, já não são o grupo de outros tempos. O ISIS-K quer apresentar-se como único grupo jihadista no Afeganistão”, remata Sayed, sublinhando que os membros deste grupo jihadista são “muito mais extremistas na interpretação da religião”.

No que diz respeito às diferenças entre o ISIS-K e os talibãs, Diogo Noivo, mestre em Segurança e Defesa pela Universidade Complutense de Madrid e especialista em risco político, defende, no entanto, que “a dimensão política é a mais relevante” — mesmo quando comparada com as diferenças na interpretação do Islão.

“Em termos ideológicos, há diferenças mínimas entre os dois. A mundivisão islamista radical assente na sharia é igual. O que os diferencia são as lutas no poder e as miudezas ideológicas. Cada um diz que traiu os princípios ideológicos do islamismo. Mas ambos lutam pelos mesmos recursos”, sublinha o analista ao Observador, reiterando que, nas diferenças entre ambos os grupos, “a dimensão política é verdadeiramente a mais relevante”.

No meio desta disputa, os talibãs procuram consolidar o poder, e o grupo jihadista rival pode ser um entrave. “Os talibãs veem o ISIS-K como uma ameaça para o novo regime no Afeganistão e querem reprimir a ascensão do grupo, mesmo que tenha fornecido um refúgio seguro para outras organizações terroristas”, sublinha Ashley Rhoades.

Independentemente de quem é mais extremista, ISIS-K e talibãs têm-se defrontado nos últimos anos, e os islamistas que agora assumiram o poder no Afeganistão impuseram várias derrotas ao braço do Daesh, conquistando-lhes território.

Com a presença dos Estados Unidos e da NATO no Afeganistão — e sobretudo após os bombardeamentos contra infraestruturas do grupo — o ISIS-K perdeu algumas capacidades de organização, e, ao longo dos anos, vários dos seus militantes foram parar a prisões afegãs. Mas, conforme nota Abdul Sayed, com as cenas caóticas que resultaram da tomada do poder por parte dos talibãs, a maioria dos prisioneiros conseguiu escapar, e entre eles podem contabilizar-se centenas de militantes do ISIS-K, um fator que terá feito soar os alarmes de que a capacidade de um ataque terrorista poderia estar iminente.

Apesar das preocupações demonstradas por Joe Biden quando admitiu que cada dia a mais no Afeganistão constituía um risco acrescentado para as tropas norte-americanas e dos avisos constantes da possibilidade de ataques terroristas, nem as tropas ocidentais que ainda estão em Cabul nem os talibãs foram capazes de impedir os atentados desta quinta-feira. Atribuindo os ataques ao ISIS-K, os talibãs, através do seu porta-voz, Zabiullah Mujahid, contudo, não hesitaram em responsabilizar os Estados Unidos, garantindo que avisaram as tropas norte-americanas sobre possíveis atentados do grupo afiliado ao Daesh.

A grande questão é: qual o cenário após a saída ocidental? “Uma lógica de guerra civil, com tribos, famílias, senhores de guerra, Al-Qaeda, talibãs e o Estado Islâmico, que vai ser mais um elemento bélico num contexto territorial fragmentado e que se baseia na lealdade entre grupos flutuantes”

Se atentados destes acontecem a poucos dias do fim da missão da NATO, quando se consumar a retirada dos Estados Unidos, a incerteza será ainda maior. A grande questão é: qual o cenário após a saída ocidental?

“Uma lógica de guerra civil, com tribos, famílias, senhores de guerra, Al-Qaeda, talibãs e o Estado Islâmico, que vai ser mais um elemento bélico num contexto territorial fragmentado e que se baseia na lealdade entre grupos flutuantes”, explica o analista Diogo Noivo, referindo que existem especulações entre os analistas, que admitem a possibilidade de o ISIS-K e a Al Qaeda virem a entender-se no futuro, tendo em conta que o braço do Daesh no Afeganistão nasceu, precisamente, de uma cisão dentro da Al-Qaeda.

Dando força a esta tese, o New York Times nota que o líder do ISIS-K, Shahab al-Muhajir, foi operacional da rede Haqqani, com ligações à Al-Qaeda, e que por isso não é de descartar que ainda possam existir contactos e ligações entre os dois grupos jihadistas.

Por outro lado, uma ligação entre os talibãs e o ISIS-K parece algo impossível, e muitos analistas consideram que, quando as tropas norte-americanas saírem e os talibãs consolidarem o seu poder, os confrontos entre os dois grupos deverão aumentar substancialmente. Abdul Sayed considera que o objetivo principal do braço do Daesh no Afeganistão vai ser derrubar o governo talibã.

“Querem assumir o poder, definitivamente. Querem assumir o controlo [do Afeganistão] e impor o seu sistema islâmico no país, ainda mais radical do que o dos talibãs”, garante Sayed. “O ISIS-K não tem o apoio que os talibãs têm no panorama do radicalismo islâmico, mas os seus membros estão muito bem treinados e são sofisticados”, acrescenta.

Este ano, antes de os talibãs tomarem o controlo do país, a Organização das Nações Unidas (ONU) denunciava que, “apesar das perdas territoriais e de liderança” do ISIS-K em comparação com anos anteriores, esta fação do Estado Islâmico ainda continuava a “ser relevante” no Afeganistão, sendo o seu foco o recrutamento de ex-membros dos talibãs.

Num relatório publicado em junho, a ONU destaca que o ISIS-K ainda mantinha algumas células nas províncias de Kunar e Nangarhar, junto à fronteira paquistanesa. Após a derrota do Estado Islâmico na Síria e no Iraque, uma das grandes prioridades do ISIS-K fora transformar o Afeganistão na sede do Califado, principalmente após “a decisão dos Estados Unidos e da NATO de retirar todas as tropas”.

“O Afeganistão transformou-se na Las Vegas dos terroristas, dos radicais e dos extremistas”, sublinha Ali Mohammad Ali, antigo oficial de segurança afegão ao The New York Times, indicando que a vitória dos talibãs é um terreno fértil para que “mais extremistas venham para o Afeganistão”.

Liderados pelo emir Shahab al-Muhajir, os membros do ISIS-K têm levado a cabo ataques terroristas pelo Afeganistão — só entre janeiro e abril de 2021 a ONU contabilizou 77 — uma grande subida face a 2020, em que houve apenas 21 ataques terroristas.

Uma mais violentas ofensivas reivindicadas pelos ISIS-K aconteceu numa maternidade da capital, pertencente à organização Médicos Sem Fronteiras, na qual o ISIS-K matou 16 mulheres que tinham acabado de dar à luz e dois bebés. Outro ataque aconteceu na Universidade de Cabul, na abertura da feira do livro iraniana, onde um tiroteio matou 35 pessoas.

Segundo Adbul Sayed, após “a perda de muitos dos seus bastiões”, o modus operandi do ISIS-K passa por “levar a cabo ataques complexos e sofisticados” e também por recrutar membros em “centros urbanos, em Nangahrar e em Cabul”.

As origens do Estado Islâmico remontam ao final da década de 90, quando houve uma cisão entre membros da Al-Qaeda. Ganhando preponderância ao longo dos anos e após controlar partes significativas da Síria e do Iraque, o ISIS anunciava, em 2015, a expansão para a região do Khorasan, uma região da antiga Pérsia e que engloba partes do Afeganistão, do Irão, do Turcomenistão e do Paquistão.

“Trazemos as boas notícias de que o Estado Islâmico se vai expandir para o Khorasan. Por isso, incentivamos a todos a juntarem-se à caravana do califado e a abandonarem a desunião e o sectarismo”, anunciou o ISIS em comunicado na altura. A letra K passava a designar a fação do grupo extremista, uma vez que a região, em inglês, tem o nome de Khorasan.

A chegada ao Afeganistão não foi, contudo, pacífica, tendo o grupo ISIS-K se envolvido em conflitos com os talibãs, com os quais mantêm uma histórica rivalidade. Adicionalmente, o ISIS-K queria a retirada das tropas estrangeiras do país, vendo-as como movimentos das “cruzadas”, que tentavam “converter” os muçulmanos a outra fé.

O primeiro líder do ISIS-K foi Hafiz Saeed Khan, um antigo combatente dos talibãs paquistaneses a que se juntaram “talibãs afegãos”, “desertores da Al Qaeda” e “militantes de centros urbanos, com estudos superiores”, explica Adbul Sayed.

O primeiro emir e líder do ISIS-K, Hafiz Saeed Khan, ajudara o exército talibã a lutar contra as tropas norte-americanas após a invasão do 11 de setembro. Com o passar do tempo, foi solidificando a sua posição dentro dos talibãs e sucedeu a Baitullah Mahsud à frente do grupo com sede no Paquistão.

Em 2014, oficializa a saída do grupo dos talibãs do Paquistão — um ano depois, torna-se o emir do ISIS-K, trazendo alguns dos seus homens de confiança com ele.

Hafiz Saeed Khan foi morto a 26 de julho de 2016 pelo exército norte-americano. Destino idêntico tiveram os três emirs que lhe sucederam: Abdul Hasib — que morreu em abril de 2017, após o lançamento da arma de destruição em massa, a “Mother of All Bombs” (MOAB) —, Abu Sayed e Abu Saad Orakzai.

Mas o grupo não chegou ao fim e a adesão de novos membros ao ISIS-K continuou. Juntamente ao facto de o Estado Islâmico estar a a começar a perder territórios na Síria e no Iraque, os extremistas pensaram tornar o Afeganistão como a sede do califado global, devido ao seu governo frágil e às redes de recrutamento bastante eficientes. A partir daqui, o próprio ISIS começa a investir recursos e a deslocar operacionais da Síria e do Iraque para a a zona do Khorasan, refere o Centro de Estudos Estratégias e Internacionais (CSIS, sigla em inglês).

“Não há dúvidas de que Alá nos abençoou […] desde há muito tempo para lutar contra qualquer descrente que entrou na região do Khorasan”, declarou em 2015 o ISIS-K, acrescentando que “o Califado Islâmico não se iria limitar a um determinado país”. Outras das aspirações territoriais do grupo terrorista, numa altura em que o Afeganistão tinha em seu território tropas estrangeiras, consistia em “colocar a fita de al-Ubaq em Jerusalém e na Casa Branca”.

Quanto à possibilidade de o ISIS-K vir a seguir o exemplo do Daesh no que diz respeito a atentados no Ocidente, o analista especializado em grupos jihadistas crê que, nesta fase, o grupo pretende limitar os seus ataques ao Afeganistão e não acredita que o mesmo tenha capacidades para mais além. “Se tivessem essas capacidades, certamente que também estariam a fazer ataques no Ocidente”, diz.

A possibilidade de ataques jihadistas no Ocidente, no entanto, é uma preocupação dos vários governos ocidentais, que têm na memória uma série de ataques no passado atribuídos ao Daesh e à Al-Qaeda.

Apesar de retirarem as tropas do Afeganistão, os Estados Unidos garantem que vão continuar a dar elevada prioridade ao combate a atentados terroristas que sejam organizados a partir do Afeganistão — essa é mesmo uma das linhas vermelhas impostas aos talibãs, que têm garantindo que não vão permitir que tal aconteça.

Quanto à possibilidade de tal acontecer, no início do ano, conforme nota a CNN, o diretor da CIA William Burns — que se encontrou em Cabul com o líder talibã Abdul Ghani Baradar — afirmou perante o Congresso norte-americano que nem o Daesh nem a Al-Qaeda tinham capacidade para lançar ataques contra os Estados Unidos a partir do Afeganistão. Contudo, advertiu que “quando chegar a altura de as tropas norte-americanos se retirarem, a capacidade do governo para identificar e agir perante as ameaças vai diminuir”.

Essa data chega já na próxima terça-feira, assombrada por dois atentados que não conseguiram ser evitados, apesar dos vários alertas. O futuro depois de 31 de agosto é uma incógnita, mas todos os indícios apontam para cenários complexos e perigosos. Os olhos do mundo estão postos no Afeganistão e muito atentos ao ISIS-K. E Biden deixou isso claro esta quinta-feira, na sua reação ao ataque em Cabul: “Não vamos perdoar, não vamos esquecer. Vamos perseguir-vos e fazer-vos pagar”.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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