Uma alface sem agrotóxicos é tão orgânica quanto uma peste ou um câncer. Luiz Felipe Pondé via FSP:
A
natureza é objeto de muita falação boba hoje em dia. O adjetivo
“natural” acompanha todo tipo de equívoco. Como exemplo clichê, o uso do
adjetivo em questão visa, comumente, dizer que algo é bom ou orgânico,
confiável ou saudável. Aqui já reside a ignorância crassa —câncer é tão natural quanto uma bela praia deserta. Pestes são tão naturais quanto alfaces criadas sem agrotóxicos.
Existem
duas concepções de natureza egressas da filosofia e religião gregas que
marcam o Ocidente. A obra “Le Voile d’Isis” (O véu de Isis), Gallimard,
2004, do filósofo francês Pierre Hadot (1922-2010), narra essa história
para quem quiser saber um pouco o que se quer dizer quando se diz
“natureza” para além do senso comum banal. O combate à banalidade é da
natureza da filosofia.
A
primeira concepção é chamada por Hadot de prometeica, sendo fiel à
interpretação consensual entre especialistas no assunto. Claro que esta
nomenclatura está vinculada à peça “Prometeu Acorrentado” ,de Ésquilo
(525 a.C.– 456 a.C), na qual Prometeu rouba o segredo do fogo dos
deuses, dá aos homens e é punido por Zeus por isso. O fogo aqui é a
grande metáfora da técnica, e os homens não seriam vistos pelos deuses
como capazes de manipular tanto poder técnico —nem as mulheres, aviso as
afoitas de gênero.
Nesta
linhagem, o termo mais preciso é uma relação mecânica com a natureza,
em que “mechané”, termo grego para contenda ou luta, descreve nossa
atitude para com a natureza, a fim de obrigá-la a nos revelar seus
segredos. E aqui temos um detalhe fundamental na concepção de natureza
dos gregos.
O
pré-socrático Heráclito de Éfeso (540 a.C – 470 a.C) nos deixou um
fragmento em que ele afirma que a natureza ama se esconder de nós. A
natureza permanece sob um véu que nunca podemos atravessar plenamente. A
imagem normalmente associada na arte figurativa à de uma mulher que se
esconde ou se desvela, relevando ou não os segredos do seu corpo
feminino, é enormemente poética.
Para
os prometeicos, como os cientistas modernos —e, à época, já havia
experimentos próximos do que hoje chamamos de ciência moderna—, trata-se
de torturar a natureza, via experimentos calculados, para fazer com que
ela nos releve seus segredos para que vivamos melhor.
É
evidente a linhagem direta entre o segredo do fogo de Prometeu e
vacinas, aviões, computadores, construção de casas, transplantes,
engenharia genética, e outras invenções científicas similares. Francis
Bacon (1561-1626), grande organizador do método indutivo na ciência
moderna, usava essa metáfora da tortura da natureza para a ciência
nascente.
Na
verdade, a pergunta que separa a linhagem prometeica da órfica —nos
termos de Hadot— é se temos ou não o direito de torturar a natureza para
que ela revele seus segredos, como no ato de rasgar as roupas de uma
mulher e, assim, destruir seu pudor e acessar os recantos do seu corpo.
Seria esse ato uma desmedida?
A figura do mítico poeta Orfeu
representa aqui o ato de contemplar a natureza, nos deixando encantar
por ela ou encantá-la com nossa poesia, arte e música, dedicando a ela
nosso amor e respeito, em oposição à atitude prometeica de violá-la. Há
uma oposição clara entre usar a natureza como recurso ou contemplá-la
como divindade.
Na
antiguidade grega e romana, muitos filósofos de peso que você conhece
—Platão, estoicos, epicuristas, entre outros— foram contra o viés
mecânico de invasão dos segredos da natureza. Mesmo entre os românticos
modernos, como Goethe e Schelling, ambos vivendo entre os séculos 18 e
19, ecos da atitude órfica são encontrados, como na medicina
antroposófica.
A
crítica aos excessos da ciência na lida com o planeta ou com a natureza
carrega claros traços da ideia de contemplação como forma de respeito
aos limites do pudor da natureza. Diante do sucesso da ciência
prometeica ao longo dos séculos, hoje em dia a atitude contemplativa
órfica nos parece quase a afetação de uma doce ignorância. Pergunte-se
quando você tiver um ataque cardíaco se você prefere um médico
prometeico ou órfico no pronto-atendimento do hospital.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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