Responsáveis pelos atentados em Cabul são dissidentes de grupos terroristas. Acusam os talibãs de serem fantoches e por isso querem derrubá-los e impor um califado. José Carlos Duarte e Pedro Bastos Reis para o Observador:
Para
justificar a saída das tropas norte-americanas a 31 de agosto, Joe
Biden invocou a ameaça colocada pelo ISIS-K, a fação do autoproclamado
Estado Islâmico no Afeganistão. Os alertas foram dados ao longo dos dias
e a tragédia que se temia aconteceu, perante a impotência ocidental e
dos talibãs — com os ataques terroristas desta quinta-feira em Cabul
causarem a morte de dezenas de pessoas.
O
Estado Islâmico reivindicou entretanto os ataques, tirando qualquer
dúvida sobre a ameaça que o ISIS-K — um grupo ainda mais extremista do
que a Al-Qaeda — representa não só para o Afeganistão, como para o resto
do mundo. E que beneficiou com o anúncio da saída das tropas
norte-americanas do Afeganistão.
“A
tomada do Afeganistão pelos talibãs no meio da retirada das tropas
norte-americano criou um vazio que, embora talvez não tenha sido
propositado, permitiu o ressurgimento do ISIS-K no Afeganistão”, explica
ao Observador Ashley Rhoades, analista da área da defesa do instituto
RAND. “Os objetivos do ISIS-K espelham os objetivos do ISIS, que procura
estabelecer um califado do Estado Islâmico no Médio Oriente e em muitas
regiões do mundo. Sendo um braço do ISIS, procuram impor a jihad no
mundo ocidental e posicionar-se contra os valores ocidentais, espalhando
o terror com ataques contra aqueles que não aderem a valores
extremistas”, acrescenta a analista.
Com
o objetivo de transformar o Afeganistão na sede do califado islâmico, o
grupo ISIS-K vê na saída das tropas estrangeiras uma oportunidade para a
sua expansão e para recrutar mais membros, apresentando-se como a única
organização verdadeiramente jihadista no Afeganistão e acusando os
talibãs de terem sucumbido às imposições do Ocidente, aceitando negociar
a chegada ao poder em hotéis no Qatar em vez de o assumirem pela força e
sem quaisquer cedências.
“Os
membros do ISIS-K querem desafiar e provar que os talibãs não têm o
monopólio na insurreição jihadista e que os talibãs já não são
insurgentes, porque estão no governo. Além disso, querem dizer que os
islamistas já não apoiam os talibãs, porque estes abandonaram a sua
ideologia, já não são o grupo de outros tempos.
A
chegada dos talibãs ao poder foi celebrada por vários movimentos
jihadistas, entre eles a Al-Qaeda, e mais particularmente a rede
Haqqani, com ligações ao grupo outrora chefiado por Osama bin Laden, que
assumiu, inclusive, missões de segurança sob ordens dos talibãs, desde
que estes tomaram o poder em Cabul.
Mas,
se a Al-Qaeda celebrou a queda do governo do Presidente Ashraf Ghani e o
regresso ao poder do grupo que os protegeu nos anos que antecederam os
ataques terroristas contra as Torres Gémeas, nem todos os grupos
jihadistas se congratularam com o regresso dos talibãs ao poder. Dias
depois de os islamistas tomarem Cabul, o ISIS-K, através de um editorial
nas suas redes de propaganda, afirmou que os talibãs não representam o
movimento jihadista global e acusou-os de fazerem parte de uma
conspiração orquestrada pelos Estados Unidos, uma tentativa de marcarem
posição no movimento jihadista global.
“O ISIS-K é dominado por salafistas e opõe-se aos talibãs, acusando-os de serem fantoches dos Estados Unidos e dos serviços secretos paquistaneses. São muito mais radicais na militância islâmica”, afirma ao Observador Abdul Sayed, analista especializado em grupos jihadistas no Afeganistão e no Paquistão.
“Em
termos ideológicos, há diferenças mínimas entre os dois. A mundivisão
islamista radical assente na sharia é igual. O que os diferencia são as
lutas no poder e as miudezas ideológicas. Cada um diz que traiu os
princípios ideológicos do islamismo. Mas ambos lutam pelos mesmos
recursos”
“Os
membros do ISIS-K querem desafiar e provar que os talibãs não têm o
monopólio na insurreição jihadista e que os talibãs já não são
insurgentes, porque estão no governo. Além disso, querem dizer que os
islamistas já não apoiam os talibãs, porque estes abandonaram a sua
ideologia, já não são o grupo de outros tempos. O ISIS-K quer
apresentar-se como único grupo jihadista no Afeganistão”, remata Sayed,
sublinhando que os membros deste grupo jihadista são “muito mais
extremistas na interpretação da religião”.
No
que diz respeito às diferenças entre o ISIS-K e os talibãs, Diogo
Noivo, mestre em Segurança e Defesa pela Universidade Complutense de
Madrid e especialista em risco político, defende, no entanto, que “a
dimensão política é a mais relevante” — mesmo quando comparada com as
diferenças na interpretação do Islão.
“Em
termos ideológicos, há diferenças mínimas entre os dois. A mundivisão
islamista radical assente na sharia é igual. O que os diferencia são as
lutas no poder e as miudezas ideológicas. Cada um diz que traiu os
princípios ideológicos do islamismo. Mas ambos lutam pelos mesmos
recursos”, sublinha o analista ao Observador, reiterando que, nas
diferenças entre ambos os grupos, “a dimensão política é verdadeiramente
a mais relevante”.
No
meio desta disputa, os talibãs procuram consolidar o poder, e o grupo
jihadista rival pode ser um entrave. “Os talibãs veem o ISIS-K como uma
ameaça para o novo regime no Afeganistão e querem reprimir a ascensão do
grupo, mesmo que tenha fornecido um refúgio seguro para outras
organizações terroristas”, sublinha Ashley Rhoades.
Independentemente
de quem é mais extremista, ISIS-K e talibãs têm-se defrontado nos
últimos anos, e os islamistas que agora assumiram o poder no Afeganistão
impuseram várias derrotas ao braço do Daesh, conquistando-lhes
território.
Com
a presença dos Estados Unidos e da NATO no Afeganistão — e sobretudo
após os bombardeamentos contra infraestruturas do grupo — o ISIS-K
perdeu algumas capacidades de organização, e, ao longo dos anos, vários
dos seus militantes foram parar a prisões afegãs. Mas, conforme nota
Abdul Sayed, com as cenas caóticas que resultaram da tomada do poder por
parte dos talibãs, a maioria dos prisioneiros conseguiu escapar, e
entre eles podem contabilizar-se centenas de militantes do ISIS-K, um
fator que terá feito soar os alarmes de que a capacidade de um ataque
terrorista poderia estar iminente.
Apesar das preocupações demonstradas por Joe Biden quando admitiu que cada dia a mais no Afeganistão constituía um risco acrescentado para as tropas norte-americanas
e dos avisos constantes da possibilidade de ataques terroristas, nem as
tropas ocidentais que ainda estão em Cabul nem os talibãs foram capazes
de impedir os atentados desta quinta-feira. Atribuindo os ataques ao
ISIS-K, os talibãs, através do seu porta-voz, Zabiullah Mujahid,
contudo, não hesitaram em responsabilizar os Estados Unidos, garantindo
que avisaram as tropas norte-americanas sobre possíveis atentados do
grupo afiliado ao Daesh.
A
grande questão é: qual o cenário após a saída ocidental? “Uma lógica de
guerra civil, com tribos, famílias, senhores de guerra, Al-Qaeda,
talibãs e o Estado Islâmico, que vai ser mais um elemento bélico num
contexto territorial fragmentado e que se baseia na lealdade entre
grupos flutuantes”
Se
atentados destes acontecem a poucos dias do fim da missão da NATO,
quando se consumar a retirada dos Estados Unidos, a incerteza será ainda
maior. A grande questão é: qual o cenário após a saída ocidental?
“Uma
lógica de guerra civil, com tribos, famílias, senhores de guerra,
Al-Qaeda, talibãs e o Estado Islâmico, que vai ser mais um elemento
bélico num contexto territorial fragmentado e que se baseia na lealdade
entre grupos flutuantes”, explica o analista Diogo Noivo, referindo que
existem especulações entre os analistas, que admitem a possibilidade de o
ISIS-K e a Al Qaeda virem a entender-se no futuro, tendo em conta que o
braço do Daesh no Afeganistão nasceu, precisamente, de uma cisão dentro
da Al-Qaeda.
Dando força a esta tese, o New York Times
nota que o líder do ISIS-K, Shahab al-Muhajir, foi operacional da rede
Haqqani, com ligações à Al-Qaeda, e que por isso não é de descartar que
ainda possam existir contactos e ligações entre os dois grupos
jihadistas.
Por
outro lado, uma ligação entre os talibãs e o ISIS-K parece algo
impossível, e muitos analistas consideram que, quando as tropas
norte-americanas saírem e os talibãs consolidarem o seu poder, os
confrontos entre os dois grupos deverão aumentar substancialmente. Abdul
Sayed considera que o objetivo principal do braço do Daesh no
Afeganistão vai ser derrubar o governo talibã.
“Querem
assumir o poder, definitivamente. Querem assumir o controlo [do
Afeganistão] e impor o seu sistema islâmico no país, ainda mais radical
do que o dos talibãs”, garante Sayed. “O ISIS-K não tem o apoio que os
talibãs têm no panorama do radicalismo islâmico, mas os seus membros
estão muito bem treinados e são sofisticados”, acrescenta.
Este
ano, antes de os talibãs tomarem o controlo do país, a Organização das
Nações Unidas (ONU) denunciava que, “apesar das perdas territoriais e de
liderança” do ISIS-K em comparação com anos anteriores, esta fação do
Estado Islâmico ainda continuava a “ser relevante” no Afeganistão, sendo
o seu foco o recrutamento de ex-membros dos talibãs.
Num
relatório publicado em junho, a ONU destaca que o ISIS-K ainda mantinha
algumas células nas províncias de Kunar e Nangarhar, junto à fronteira
paquistanesa. Após a derrota do Estado Islâmico na Síria e no Iraque,
uma das grandes prioridades do ISIS-K fora transformar o Afeganistão na
sede do Califado, principalmente após “a decisão dos Estados Unidos e da
NATO de retirar todas as tropas”.
“O
Afeganistão transformou-se na Las Vegas dos terroristas, dos radicais e
dos extremistas”, sublinha Ali Mohammad Ali, antigo oficial de
segurança afegão ao The New York Times, indicando que a vitória dos talibãs é um terreno fértil para que “mais extremistas venham para o Afeganistão”.
Liderados
pelo emir Shahab al-Muhajir, os membros do ISIS-K têm levado a cabo
ataques terroristas pelo Afeganistão — só entre janeiro e abril de 2021 a
ONU contabilizou 77 — uma grande subida face a 2020, em que houve
apenas 21 ataques terroristas.
Uma
mais violentas ofensivas reivindicadas pelos ISIS-K aconteceu numa
maternidade da capital, pertencente à organização Médicos Sem
Fronteiras, na qual o ISIS-K matou 16 mulheres que tinham acabado de dar
à luz e dois bebés. Outro ataque aconteceu na Universidade de Cabul, na
abertura da feira do livro iraniana, onde um tiroteio matou 35 pessoas.
Segundo
Adbul Sayed, após “a perda de muitos dos seus bastiões”, o modus
operandi do ISIS-K passa por “levar a cabo ataques complexos e
sofisticados” e também por recrutar membros em “centros urbanos, em
Nangahrar e em Cabul”.
As
origens do Estado Islâmico remontam ao final da década de 90, quando
houve uma cisão entre membros da Al-Qaeda. Ganhando preponderância ao
longo dos anos e após controlar partes significativas da Síria e do
Iraque, o ISIS anunciava, em 2015, a expansão para a região do Khorasan,
uma região da antiga Pérsia e que engloba partes do Afeganistão, do
Irão, do Turcomenistão e do Paquistão.
“Trazemos
as boas notícias de que o Estado Islâmico se vai expandir para o
Khorasan. Por isso, incentivamos a todos a juntarem-se à caravana do
califado e a abandonarem a desunião e o sectarismo”, anunciou o ISIS em
comunicado na altura. A letra K passava a designar a fação do grupo
extremista, uma vez que a região, em inglês, tem o nome de Khorasan.
A
chegada ao Afeganistão não foi, contudo, pacífica, tendo o grupo ISIS-K
se envolvido em conflitos com os talibãs, com os quais mantêm uma
histórica rivalidade. Adicionalmente, o ISIS-K queria a retirada das
tropas estrangeiras do país, vendo-as como movimentos das “cruzadas”,
que tentavam “converter” os muçulmanos a outra fé.
O
primeiro líder do ISIS-K foi Hafiz Saeed Khan, um antigo combatente dos
talibãs paquistaneses a que se juntaram “talibãs afegãos”, “desertores
da Al Qaeda” e “militantes de centros urbanos, com estudos superiores”,
explica Adbul Sayed.
O
primeiro emir e líder do ISIS-K, Hafiz Saeed Khan, ajudara o exército
talibã a lutar contra as tropas norte-americanas após a invasão do 11 de
setembro. Com o passar do tempo, foi solidificando a sua posição dentro
dos talibãs e sucedeu a Baitullah Mahsud à frente do grupo com sede no
Paquistão.
Em
2014, oficializa a saída do grupo dos talibãs do Paquistão — um ano
depois, torna-se o emir do ISIS-K, trazendo alguns dos seus homens de
confiança com ele.
Hafiz
Saeed Khan foi morto a 26 de julho de 2016 pelo exército
norte-americano. Destino idêntico tiveram os três emirs que lhe
sucederam: Abdul Hasib — que morreu em abril de 2017, após o lançamento
da arma de destruição em massa, a “Mother of All Bombs” (MOAB) —, Abu
Sayed e Abu Saad Orakzai.
Mas
o grupo não chegou ao fim e a adesão de novos membros ao ISIS-K
continuou. Juntamente ao facto de o Estado Islâmico estar a a começar a
perder territórios na Síria e no Iraque, os extremistas pensaram tornar o
Afeganistão como a sede do califado global, devido ao seu governo
frágil e às redes de recrutamento bastante eficientes. A partir daqui, o
próprio ISIS começa a investir recursos e a deslocar operacionais da
Síria e do Iraque para a a zona do Khorasan, refere o Centro de Estudos
Estratégias e Internacionais (CSIS, sigla em inglês).
“Não
há dúvidas de que Alá nos abençoou […] desde há muito tempo para lutar
contra qualquer descrente que entrou na região do Khorasan”, declarou em
2015 o ISIS-K, acrescentando que “o Califado Islâmico não se iria
limitar a um determinado país”. Outras das aspirações territoriais do
grupo terrorista, numa altura em que o Afeganistão tinha em seu
território tropas estrangeiras, consistia em “colocar a fita de al-Ubaq
em Jerusalém e na Casa Branca”.
Quanto
à possibilidade de o ISIS-K vir a seguir o exemplo do Daesh no que diz
respeito a atentados no Ocidente, o analista especializado em grupos
jihadistas crê que, nesta fase, o grupo pretende limitar os seus ataques
ao Afeganistão e não acredita que o mesmo tenha capacidades para mais
além. “Se tivessem essas capacidades, certamente que também estariam a
fazer ataques no Ocidente”, diz.
A
possibilidade de ataques jihadistas no Ocidente, no entanto, é uma
preocupação dos vários governos ocidentais, que têm na memória uma série
de ataques no passado atribuídos ao Daesh e à Al-Qaeda.
Apesar
de retirarem as tropas do Afeganistão, os Estados Unidos garantem que
vão continuar a dar elevada prioridade ao combate a atentados
terroristas que sejam organizados a partir do Afeganistão — essa é mesmo
uma das linhas vermelhas impostas aos talibãs, que têm garantindo que
não vão permitir que tal aconteça.
Quanto à possibilidade de tal acontecer, no início do ano, conforme nota a CNN,
o diretor da CIA William Burns — que se encontrou em Cabul com o líder
talibã Abdul Ghani Baradar — afirmou perante o Congresso norte-americano
que nem o Daesh nem a Al-Qaeda tinham capacidade para lançar ataques
contra os Estados Unidos a partir do Afeganistão. Contudo, advertiu que
“quando chegar a altura de as tropas norte-americanos se retirarem, a
capacidade do governo para identificar e agir perante as ameaças vai
diminuir”.
Essa
data chega já na próxima terça-feira, assombrada por dois atentados que
não conseguiram ser evitados, apesar dos vários alertas. O futuro
depois de 31 de agosto é uma incógnita, mas todos os indícios apontam
para cenários complexos e perigosos. Os olhos do mundo estão postos no
Afeganistão e muito atentos ao ISIS-K. E Biden deixou isso claro esta
quinta-feira, na sua reação ao ataque em Cabul: “Não vamos perdoar, não
vamos esquecer. Vamos perseguir-vos e fazer-vos pagar”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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