Vilma, Bari e Ayaan fizeram-nos o favor de iluminar as trevas. Luzes na tal escuridão onde a democracia, realmente, pode morrer. Leonardo Coutinho para a Gazeta do Povo:
A
ex-editora executiva e colunista de VEJA, Vilma Gryzinski, fez uma
pergunta no título de um de seus textos publicados no site da revista.
“E se fosse Trump? Como seria tratada a derrocada no Afeganistão?”. Ela
mesma responde no subtítulo: “o ex-presidente provavelmente estaria
sofrendo um novo processo de impeachment e ataques sem comparações com
os feitos a Joe Biden”. A coluna descreve o pior momento da aprovação de
Biden, que caiu junto com os pobres afegãos que, pendurados, tentaram
fugir de Cabul na fuselagem de cargueiros americanos. E descreve como,
mesmo com a tragédia, o democrata goza da boa vontade dos críticos e da
imprensa que pegam leve com ele, quando comparado com o tratamento dado
ao seu antecessor. Uma comodidade que pode evaporar “se o desastre
afegão não piorar” ou se “houver um atentado de última hora”.
As
afirmações acima foram publicadas horas antes de um terrorista da
filial afegã do Estado Islâmico se explodir em meio às pessoas
aglomeradas nos portões do Aeroporto de Cabul, a única porta de saída da
capital. Todos os dias milhares de pessoas tentam uma vaga nos aviões
que estão resgatando pessoas em situação de risco com o retorno do
Talibã ao poder. Um atentado era apenas uma questão de tempo. Os números
oficiais mais recentes falam na morte de doze militares americanos e de
dezenas de afegãos mortos.
A
diferença na relação da imprensa americana com Trump e Biden em crises
cabeludas como esta do Afeganistão remete à carta de demissão que Bari
Weiss, a ex-editora de Opinião do The New York Times apresentou em julho
do ano passado. O texto – infelizmente apenas em inglês – é atualíssimo
e serve de diagnóstico não só para o comportamento dos jornalistas nos
Estados Unidos, mas, também, das redações subtropicais.
Bari
conta como é difícil, ou praticamente impossível – pensar, ou se
manifestar qualquer coisa que seja dissonante ao comportamento do
rebanho que emergiu na imprensa e em diversos setores da sociedade
americana que juravam que a democracia morreria antes do raiar do sol do
dia seguinte, pelas mãos do facínora que havia sido eleito e ocupou a
Casa Branca entre 2017 e janeiro de 2021.
Podem
ser publicados 4 mil artigos de opinião com a mesmíssima história
antifascista e blá... blá... blá... Mas um, apenas um, que pudesse
desgostar as redes sociais imediatamente era barrado. “O Twitter não
está no expediente do The New York Times. Mas o Twitter tornou-se seu
editor final”, escreveu Bari.
O resultado é uma cobertura quase uníssona. Portanto empobrecedora da sociedade, mas, sobretudo da própria imprensa.
A
ativista de direitos humanos Ayaan Hirsi Ali, somali que denunciou os
abusos do islã radical contra as mulheres, escreveu um artigo
perturbador. Para ela, a imprensa é, simplesmente sócia do colapso
afegão. Algo que pode parecer exagerado.
Mas
a euforia com a atual administração criou um clima de adesismo
incompatível com o trabalho para o qual a imprensa é paga pelos leitores
para fazer.
Ayaan
encerra dizendo: “‘A democracia morre na escuridão’ foi um dos muitos
slogans fáceis adotados pela imprensa anti-Trump em 2017, como se apenas
sua reportagem destemida estivesse entre a América e uma distopia
fascista estilo anos 30.” Ela arremata dizendo que estamos testemunhando
que governos competentes morrem quando se apagam as luzes para
lisonjeá-lo. “Quando jornalistas e editores suspendem suas faculdades
críticas, a tragédia é certa.”
Donald
Trump desfiou um rosário de erros. Mas não só. Em nome do
anti-trumpismo qualquer coisa, ideia, pessoa ou ação conectada com ele
vinha com o selo da suspeição ou do erro. A China, por exemplo, avançou
em seus planos de consolidação de influência em uma velocidade jamais
vista. Todos fecharam os olhos, para não parecerem trumpistas.
O
despertar para as ameaças da China, violações aos direitos humanos só
se deu depois que Trump estava fora do jogo. Algo terrivelmente igual no
Brasil.
Na
semana passada, o ex-ministro da Justiça e da Defesa, Raul Jungmann
disse, uma entrevista, que tinha um depoimento de que o presidente Jair
Bolsonaro havia consultado um comandante de uma das três forças (que por
razões óbvias só poderia ser o da FAB) sobre a disponibilidade
operacional dos “jatos” Gripen. “Com a resposta positiva, determinou que
(os caças) sobrevoassem o STF acima da velocidade do som para estourar
os vidros do prédio. Bolsonaro mandou fazer isso”, disse ele.
A
história foi repetida um milhão de vezes. Mas será possível que ninguém
parou para melhorar a descrição tão impressionante do golpismo
bolsonarista? A conversa é datada de março deste ano e teria sido o
estopim que levou à demissão dos comandantes das três forças.
Vamos
lá. Bolsonaro pode ter feito a pergunta? Pode. Mas fica o dito pelo não
dito. Mas tem algo esquisito no ar, além da cena estilo Top Gun. Como
um comandante militar poderia dizer que os jatos (no plural) estavam
operacionais? O Brasil recebeu apenas um Gripen. Apenas um. E ainda que o
problema na história do ex-ministro possa ter sido provocado por uma
questão de plural indevido, o caça sueco é um protótipo que está em
testes na Embraer. Sequer é operado pela FAB.
Jungmann
– que é ex-ministro da Defesa e divide com o general da reserva Sergio
Etchegoyen o comando do tentáculo de defesa de uma organização que prega
a regulamentação do lobby no Brasil – tem as melhores fontes possíveis
dentro das Forças Armadas. Mas, mesmo assim, a história não chegou
direito para ele.
Os
jornalistas não se sentiram na obrigação de averiguar a informação.
Afinal, para quê? A imagem de caças atacando o STF casou direitinho com
“golpe nosso de cada dia”.
Aliás,
checar isso é um problema. Quem se atrevesse a fazer o trabalho, por
sinal, viria imediatamente passador de pano, bolsonarista, fascista,
genocida, gado. É o tal clima de autocensura que Bari Weiss descreveu no
The New York Times.
Trump foi embora. Bolsonaro também irá um dia. As deformações autoinfligidas pela imprensa ficam.
Não
são casos isolados. Vilma, Bari e Ayaan fizeram-nos o favor de iluminar
as trevas. Luzes na tal escuridão onde a democracia, realmente, pode
morrer.
No
Brasil há uma espécie de prece para rupturas democráticas. A religião
do golpe. Há um pessoal que reza por ele. Virou divindade – a única
capaz de, por meio do caos, abrir as portas do paraíso.
Trump
se lascou aos 45 minutos do segundo tempo pela ação de uma horda de
débeis mentais que invadiram o Capitólio e pelo seu comportamento
leniente diante da barbárie. Bolsonaro é acusado de seguir o roteiro do
americano. Mas, ao que parece, ele é mais vulnerável a seguir um roteiro
que vem sendo desenhado para ele.
Quando o pensamento crítico é abandonado, tudo que vem em sequência é tragédia.
BLOG ORLANDO TAMBOISI
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