Cena do filme "A despedida", de Roger Michell. |
Negar às pessoas essa possibilidade é um abuso em nome de um bem que já não existe, a saber, a vida como horizonte. Luiz Felipe Pondé via FSP:
Eu acho que uma pessoa adulta nos usos das suas faculdades mentais e numa situação de sofrimento terminal deveria, sim, ter o direito de morrer. Negar às pessoas essa possibilidade é um abuso em nome de um bem que já não existe, a saber, a vida como horizonte.
Sei
que o tema é delicado. Alguns podem interpretá-lo como uma defesa do
suicídio como direito. Aqueles que assim o fizerem, que o façam. Não
podemos nos defender de toda forma de interpretação, coisa que nos dias
atuais muita gente parece se esquecer. Pensar publicamente não é uma
atividade feita para agradar —inclusive aos patrocinadores, que, aliás,
desejo que se danem no seu poder de limitar o uso da palavra pública.
Aborto é outro tema espinhoso. Já tive muitas opiniões sobre ele. Hoje as tenho em muito menor quantidade e qualidade.
Sei
que existem pessoas que não comem carne nem usam proteína animal de
qualquer tipo, mas que são a favor do aborto. Para muitos haveria uma
contradição nessa atitude. Ou hipocrisia. Eu suspeito que, no caso de
não comer carne, a pessoa acredita que isso será saudável para ela.
Já
no caso do aborto, está em jogo a liberdade de ela transar e, se algo
no processo der errado, por assim dizer, poder resolver o problema com o
menor sofrimento físico possível, apesar de essa solução nunca ser de
forma fácil do ponto de vista moral.
Óbvio
que existe a dimensão da saúde pública. Óbvio também que em uma etapa
lógica anterior, se pressupõe a ideia de que o feto não é um ser humano
ainda. Penso que, em meio a um mundo em que a desumanização corre solta,
a dificuldade em desumanizar o feto parece uma afetação de virgens no
bordel.
Mas
voltando ao que me interessa hoje, o tema da escolha pela morte
assistida e legítima me parece significativo. Antes de tudo porque a
população envelhece a olhos nus, e muita gente faria uso de uma saída de
cena com classe se lhes fosse dada essa opção. Aliás, o filme “A Despedida”, de 2019, com Susan Sarandon e Kate Winslet, é excelente sobre o tema.
Alguns
poderão considerar essa afirmação um absurdo moral. Alguém escolher
essa opção não implica que você seja obrigado a escolhê-la. Talvez, um
dia, vivendo uma situação semelhante, você venha a entender a opção do
outro.
Óbvio
que há sofrimento. Mas é justamente em nome dele que se deve dar às
pessoas o direito de morrer quando elas querem e quando a vida já não
aparece como um horizonte fisiológico viável. Obrigar a uma pessoa no
uso da sua inteligência a existir num corpo que já não mais é seu me
parece uma violência moral muito maior.
Se
há hipocrisia no vegetariano a favor do aborto —o que não me parece
totalmente evidente—, aqui há com certeza. Se quero manter a pessoa viva
porque eu a amo, mesmo que ela sinta que o melhor é repousar na pedra, o
meu amor, sim, é de alguma forma impróprio.
A
ideia de que a vida pertence a Deus me parece irrelevante. Se não
acredito em Deus, entendo que a vida pertence apenas a mim, mas se sou
terminal, ela já pertence à pedra.
Mas,
mesmo que eu seja um crente, posso sê-lo de forma ousada e desafiar a
afirmação religiosa institucional de que só Deus pode tirar a vida.
Posso
escolher encará-lo, inclusive para perguntá-lo, afinal de contas, por
que sou obrigado a ficar em agonia se poderia já descansar.
Detalhes
jurídicos são o menor aqui. Em termos de lei, tudo pode, uma vez
decidido que pode. Quanto ao fato de que médicos só podem salvar vidas,
também é algo que se pode ajustar. E nem me falem sobre a possibilidade
de uma descoberta milagrosa de cura: a ciência, nesse caso, está a favor
de quem se sabe terminal. Não existem milagres na ciência.
O centro do problema é a possibilidade de se decidir que basta. Esse passo não significa o aniquilamento da
agonia moral. Significa a escolha de uma certa agonia moral em
detrimento de outra, sendo a diferença capital a que quem quer sair de
cena —que é quem deve decidir a qualidade da agonia moral que pretende
enfrentar.
À medida que a humanidade envelhece, há que nos prepararmos para um mundo em que pessoas desistam dele.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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