As palavras de Harold Bloom são uma oportunidade para se enfrentar o relativismo estético blasé de toda uma geração. Paulo Polzonoff via Gazeta do Povo:
“Mas
estou vivo”. É com essas palavras que Harold Bloom encerra a entrevista
dada a mim no remoto ano de 2006. Hoje Bloom não está mais vivo senão
na memória dos muitos que aprenderam com ele a ler as grandes obras da
Civilização Ocidental. Bloom morreu em 2019, aos 89 anos, depois de toda
uma vida em defesa de um espírito literário que infelizmente se perdeu.
Se
essa entrevista tem história? Ô, se tem. Às vésperas de me mudar para
os Estados Unidos, eu queria distância dos círculos literários e estava
decidido a desistir do jornalismo. E passava os dias entre a ansiedade
da viagem e planos mirabolantes de um futuro que nunca se concretizou –
ainda bem. Até que, por algum motivo que me escapa, recebi um convite de
um assessor de imprensa para entrevistar Harold Bloom.
Quando
disquei os últimos dos trezentos algarismos que compunham as ligações
internacionais daquela época, senti algo em meu espírito ruir. Agucei os
ouvidos. Bloom era, para mim, o Everest, e no caminho até o cume há
sempre traiçoeiras avalanches. Àquela altura da vida, começava a
desconfiar das premissas que me guiavam pelo faroeste da literatura
brasileira. Mas avançava com teimosia por esse deserto – até porque me
faltavam alternativas.
Bloom
fez as vezes de Virgílio e me conduziu por todos os círculos do inferno
editorial em não mais do que meia hora de conversa que me custaram mais
do que ganhei com a entrevista – que, aliás, nenhuma publicação quis
comprar. Ele falou de Stephen King e “Harry Potter” e ali eu já percebi
no velho e gordo mestre o mesmo cansaço que antevia em minha vida
cercada por livros, escritores e controvérsias vazias.
Muita
água passou por debaixo dessa ponte desde então. A tal ponto que, hoje,
reconheço a petulância do entrevistador provinciano ao recomendar ao
“grande crítico” que não lesse nada da literatura brasileira
contemporânea. Mas não só isso. Na última década e meia, eu e Harold
Bloom nos distanciamos por uma diferença espiritual irreconciliável: a
crença dele no gnosticismo como forma de interpretar a literatura e a
realidade.
Se
reproduzo hoje esta entrevista, contudo, é porque ela é praticamente
inédita (foi publicada num negócio chamado blog e que era moda na
primeira década do século XXI). E também porque vejo nas palavras dele –
que não tinha vergonha alguma de dizer que alguém lia mal – uma
oportunidade de enfrentar o relativismo estético blasé de toda uma
geração.
No
final do livro “Jesus e Javé – Os Nomes Divinos”, o senhor diz que, se
Javé é o Senhor da Guerra, Alá é um terrorista suicida. Não é uma
afirmação perigosa de ser feita nestes tempos de intolerância religiosa?
É
curioso você dizer isso. Não acho que seja uma afirmação perigosa, mas
acredito que vivemos uma época perigosa. Meu livro não pretende ofender
nem judeus, nem cristãos ou muçulmanos. Não falo sobre religião, mas
sobre personagens literários. Mas acredito que é realmente complicado.
Vivemos dias em que não sabemos quem é mais louco, se o presidente Bush
ou o presidente do Irã. E, no final das contas, ambos foram eleitos
democraticamente. O que é confuso, porque aprendemos desde sempre que a
democracia é o melhor sistema de governo que existe. Eu acredito muito
no que Churchill disse, que a democracia é o pior sistema de governo
existente, com a exceção de todos os outros. É engraçado, é estranho,
mas, se você pensar bem, é verdade.
Mesmo
pensando em cristão e judeus como tradições literárias distintas, o
senhor considera uma coexistência pacífica possível, até mesmo pela
existência da sociedade judaico-cristã que o senhor chama de “farsa”?
Eu
pensava que vivia um pesadelo durante a Guerra Fria, mas a Guerra Fria
acabou e agora temos as guerras religiosas. Acho muito difícil que seja
possível uma coexistência pacífica, não só entre judeus e cristãos,
porque temos os muçulmanos no meio disso tudo. E os muçulmanos desejam
que judeus e cristãos se curvem diante da lei de Alá. Realmente acredito
que uma guerra próxima é possível. Há muito ódio no meio disso.
Historicamente, acho que a paz é uma impossibilidade.
Como o livro, que faz críticas explícitas ao cristianismo, está sendo recebido pelos cristãos?
Meus
livros sempre geram alguma polêmica. Mas acho que eles são aceitos da
melhor forma possível. É claro que há reações exacerbadas. Outro dia uma
mulher me ligou – e eu não sei como ela conseguiu meu número, porque
ele não está na lista. Perguntou se eu era o professor Bloom. Eu disse
que sim. Daí ela começou a dizer que meu livro era um livro do inferno,
um livro que queria instigar a luta entre judeus e cristãos, que era um
livro que destilava preconceito contra os cristãos. Daí ela começou a
gritar comigo. Mas foi um caso isolado. Para minha surpresa, acho que o
livro tem sido muito bem aceito por aqui.
O
senhor faz declarações muito interessantes sobre as distinções entre
Javé, Jesus e Jesus Cristo, que seria um personagem distinto. Fico aqui
me perguntando: o leitor comum é capaz de compreender seus argumentos?
Será que este tipo de leitor, que cresceu lendo autores vulgares, está
capacitado para discutir suas ideias?
Realmente,
as pessoas não estão preparadas. Elas não querem... É complicado,
porque é um livro que exige educação. Não quero impor nada. É um livro
de ideias. Não sei como anda a educação no Brasil, mas tenho a impressão
de que a educação no mundo como um todo tem piorado. Vivemos na Era da
Informação, pessoas conseguem informação que querem a todo o momento,
vivem na frente do computador. Mas não tenho certeza se isso se traduz
em educação. Se elas estão abertas a discutir ideias, se conseguem
compreender. Vivemos tempos estranhos...
O
senhor é um crítico confessional, que se expõe muito em seus livros. O
senhor acredita que seja possível fazer uma crítica objetiva, quase
científica, ou a crítica é uma experiência essencialmente subjetiva?
Eu
acho que o que a maioria das pessoas chama de objetividade é na verdade
muito rasteiro, muito fácil de se atingir, muito estúpido. Enquanto a
subjetividade, a autêntica subjetividade, é muito profunda e difícil. É
uma relação forte com tudo o que foi pensado, dito e expresso com
beleza. É claro que temos, no Ocidente, 3000 anos de tradição literária,
espiritual e filosófica. Não é possível, de modo algum, conhecer tudo
isso. Mas insisto que prefiro uma subjetividade profunda, tanto quanto
for possível, a uma mera objetividade rasa.
Quando
do lançamento da coletânea “Contos e Poemas para Crianças Extremamente
Inteligentes de Todas as Idades”, o senhor parecia desesperançado quanto
ao futuro da literatura. O senhor ainda se sente assim?
Eu
estava deprimido. E não só por causa do frenesi quanto à internet ou
aqueles livros bobos da J.K. Rolling, e sim pela degradação da
literatura infantil em todo o mundo. Quero dizer, quantas crianças hoje,
em qualquer língua, leem “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis
Carroll, ou quantas crianças leem “O Vento nos Salgueiros”, de Kenneth
Grahame? Quantas leem Hans Christian Andersen? Houve uma queda horrível
na qualidade da leitura. Quantos brasileiros leem “Os Lusíadas”? Quantos
se debruçam sobre Shakespeare ou Cervantes? E por quê? Eu hesitaria em
dar uma resposta, porque a televisão e o cinema são capazes de assimilar
certos aspectos de Shakespeare ou Jane Austen. O problema é que as
pessoas se contentam com isso e acabam tendo apenas uma leitura de
segunda mão destes autores, o que é muito superficial.
Há alguma esperança?
Este
é meu 51º ano como professor. E minha visão do que é a leitura é a de
um jovem se apaixonando por livros. Eu o imagino saindo da sala de aula
com um livro realmente bom nas mãos, se sentando embaixo de uma árvore e
lendo em voz alta para si mesmo. Com que frequência isso acontece hoje?
Não sei...
Há quem diga que o fenômeno “Harry Potter” é uma esperança...
Não,
não, não. Eu discordo. Isso é um desastre. Geralmente as pessoas que
dizem isso argumentam que pelo menos as crianças estão lendo. E que no
futuro, se elas criarem o hábito, lerão coisas melhores. Mas a resposta
para este argumento já foi dada pelo “Harry Potter de adultos”, um
escritor horrível, deplorável: Stephen King, que resenhou um dos livros
de Harry Potter no Sunday Times Book Review e disse: “É maravilhoso!”.
Bem, se isso é o que as crianças estão lendo aos 9, 10, 11 anos, então
aos 12, 13 elas estarão lendo Stephen King. É o que elas estarão
preparadas para ler.
O
senhor é um grande comentarista da Bíblia, Shakespeare, Cervantes,
enfim, todos os autores canônicos. O senhor tem algum interesse na
literatura contemporânea?
Faço
o que é possível. A maior parte do que me chega é em inglês, mas também
recebo muita coisa em outras línguas. Bem, você deve saber que eu
conheço muito bem a poesia e os romances clássicos da literatura
brasileira. Mas, quem, dentre os autores brasileiros vivos, você diria
que eu deveria ler?
Acho que o senhor deva ler nenhum escritor brasileiro vivo. A literatura brasileira atual é muito pobre.
É, eu tinha essa impressão, mas esperava que estivesse errado.
Infelizmente, não.
Sei que há muitos poetas bons, mas eles estão mortos...
O senhor está em ótima companhia com os clássicos.
Se
você me perguntasse sobre os Estados Unidos, não há muita coisa por
aqui também. Bem, há Philip Roth. Mas no geral tudo é decepcionante. Não
vejo nos Estados Unidos hoje ninguém capaz de escrever contos tão bons
quanto os de Hemingway. A verdade é que nós não tivemos um escritor
realmente bom desde Faulkner. Temos um punhado de bons poetas, como
Wallace Stevens, mas ele já morreu... E você sabe, ocasionalmente temos
um bom poema ou um bom poeta ou um bom romance ou um bom conto, mas nada
como as obras-primas de Faulkner. Nenhum poeta tão abrangente e
poderoso como Whitman. A segunda metade do século XX foi marcada por uma
grande decadência, se comparada com a literatura da primeira metade do
século.
Seu livro “Onde Encontrar a Sabedoria?” é uma grande reflexão sobre a vida e a morte. O senhor teme a morte?
Não. Eu penso nela. Você não pode ter 75 anos e não pensar na morte.
Eu sei. Tenho apenas 28 anos e penso muito nela...
Eu
acho que eu aprendi a não pensar muito sobre isso, porque Dr. Samuel
Johnson, um dos meus heróis, apesar de ser cristão, temia realmente a
morte. E ele dizia que não há nada que possamos fazer, então não devemos
nos lamentar. E eu acho que ele está certo. Eu mantenho isso em mente o
suficiente para não me permitir ficar chateado sobre qualquer dia
específico em que eu não tenha me sentido muito bem. Eu fico cansado,
minhas pernas já não são como antes. Mas eu estou vivo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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