Pieter Bruegel, o Velho, ‘Dulle Griet’, 1563 |
Do Primeiro Capítulo de Nas sombras do amanhã, de Johan Huizinga, Leiden, 1935, com tradução de Sérgio Marinho - publicado pelo Estado da Arte:
Vivemos
em um mundo possesso. E estamos cientes disso. Não seria surpresa para
ninguém se o louco tivesse de repente um ataque de fúria, após o qual
ficaria esta pobre humanidade europeia atônita e embrutecida, os motores
ainda girando, as bandeiras tremulando ao vento, mas o espírito
ausente.
Por
toda parte, pairam dúvidas quanto à solidez da estrutura social em que
vivemos, um vago receio do futuro próximo, sentimentos de declínio e
esgotamento da civilização. Não se trata meramente de ansiedades das que
nos assaltam na calada da noite, quando a chama da vida queima mais
baixo. São antes expectativas nascidas da reflexão, fundadas na
observação e no juízo. Os fatos são estarrecedores. Diante dos nossos
olhos, quase tudo o que fôra um dia sagrado e inabalável começa a
tremer: verdade e humanidade, razão e justiça. Vemos formas de governo
que já não funcionam, sistemas produtivos à beira do colapso. Vemos
forças sociais atuando de modo frenético. A ruidosa máquina destes
tempos espantosos dá sinais de que vai enguiçar.
Mas
de repente eis que o contrário disso é sugerido. Jamais houve um tempo
em que os homens fossem tão conscientes do imperativo de colaborar entre
si, a fim de manter e aperfeiçoar o bem-estar e a civilização. Jamais o
trabalho foi tão venerado. Jamais esteve o homem tão disposto a
esforçar-se e a dedicar continuamente as suas energias e todo o seu ser
ao bem comum. Não se perdeu a esperança.
Para
esta civilização ser salva, para não submergir em séculos de barbárie,
mas sim poder, mantendo os valores supremos que lhe foram legados,
passar a um novo e mais sólido estágio, — para tanto é necessário que os
homens presentes compreendam claramente a gravidade do processo de
decomposição em curso.
Foi
só recentemente que o sentimento de um colapso iminente e de uma
deterioração progressiva da civilização vieram a generalizar-se. Para a
maioria foi a crise econômica, sentida na pele (a maioria tem a pele
mais sensível que o espírito), o que abriu os olhos para a realidade.
Escusado dizer, por outro lado, que aqueles que costumam refletir de
modo sistemático e crítico sobre a sociedade e a civilização —
sociólogos, filósofos —, já há muito sabiam que, na tão louvada
civilização moderna, nem tudo andava bem. Para estes está claro desde já
que os transtornos econômicos constituem apenas um aspecto de um
processo cultural de alcance muito maior.
Na
primeira década do século, os temores pelo futuro da civilização eram
ainda pouco difundidos. Atritos e ameaças, abalos e sobressaltos também
então havia, como em qualquer tempo. Porém não apareciam como um
horizonte apocalíptico, exceto talvez pelo perigo da revolução que o
marxismo prometia ao mundo. (E mesmo a revolução, em todo caso, era tida
por seus opositores como perigo possível de ser evitado, ao passo que
seus apoiadores a viam, naturalmente, não como um precipício, mas como
tábua de salvação.) O decadentismo dos anos 90 do século passado, por
sua vez, não passara de um modismo literário, enquanto o anarquismo,
depois do assassinato de MacKinley, parecia ter se exaurido, e o
movimento socialista dava sinais de se encaminhar na direção do
reformismo. A Primeira Conferência da Paz, malgrado a guerra dos bôeres e
a guerra russo-japonesa, podia ainda ser vista como o prenúncio de uma
era de harmonia internacional. A nota dominante na cultura seguia sendo a
de uma inabalável confiança de que o mundo, dominado pela raça branca,
marchando por largas, direitas vias rumo à concórdia e à prosperidade,
estava assegurado, em toda a sua liberdade e humanidade, por uma ciência
e uma técnica quase no auge de seu desenvolvimento. Concórdia e
prosperidade! — Contanto que a política se portasse bem. Mas já isto ela
não quis fazer.
Mesmo
a eclosão da guerra mundial não acarretou mudanças. O olhar de todos,
durante o período, via apenas o problema imediato: — Superaremos isto,
com todas as forças, e depois, quando isto for parte do passado,
corrigiremos as falhas, e tudo ficará bem para sempre! — Os primeiros
anos depois da guerra também foram marcados pelo otimismo e a crença em
um internacionalismo capaz de garantir a paz no mundo. Pouco depois, foi
o aparente reflorescimento da indústria e do comércio, antes de
desmoronarem em 1929, o que relegou ao segundo plano, por mais alguns
anos, um pessimismo geral a respeito da civilização.
Hoje
em dia a noção de que nos encontramos em meio a uma grave crise
civilizacional, potencialmente destruidora, penetra em amplas camadas da
sociedade. O livro A decadência do Ocidente, de Oswald Spengler, soou o
alarme para muita gente em diversos países. O que não quer dizer que
todos os leitores do célebre volume se converteram às ideias ali
transmitidas. Mas pelo menos familiarizaram-se com a possibilidade de um
declínio da civilização moderna, ao passo que antes ainda acalentavam
uma crença irrefletida no progresso. O otimismo inabalável por enquanto é
privilégio ou daqueles incapazes de enxergar o que há de errado com a
cultura, tendo sido eles mesmos afetados pelo mal, ou daqueles que, com
sua doutrinação salvacionista, julgam possuir a receita da civilização
futura, prontos para despejá-la sobre as cabeças da humanidade
sofredora.
Entre
o pessimismo empedernido de um lado e, do outro, a certeza de uma
iminente redenção terrestre, encontram-se todos aqueles que reconhecem a
gravidade dos males presentes, e que, embora não saibam exatamente como
saná-los ou revertê-los, trabalham e confiam, esforçam-se por
compreender e estão dispostos a resistir às provações.
Seria
algo muito esclarecedor, se pudéssemos representar num gráfico a
velocidade com que a expressão “o Progresso” vem desaparecendo do uso
linguístico corrente.
Pieter Bruegel, o Velho, ‘O Triunfo da Morte’, c. 1562 |
Publicado originalmente n’O Grande Teatro do Mundo.
Edição: Caminhos, 2017.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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