Sugiro que, nestes tempos em que muito se discute revolução e democracia, tenhamos em mente também Alexis de Tocqueville (1805 – 1859). Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
O
conservadorismo está na moda e, como seu pai intelectual é Edmund
Burke, tornou-se inevitável a reavaliação da Revolução Francesa, já que a
sua magnum opus são as reflexões sobre esse evento.
Burke
escrevia no calor dos acontecimentos. Suas previsões pessimistas sobre a
índole sanguinária dos revolucionários se mostraram corretas. Sua
pintura vívida da conduta bárbara dos revolucionários com a rainha serve
para dar revelar a dimensão nada romantizável da Revolução Francesa. No
entanto, a obra de Burke é melhor para compreender o conservadorismo do
que a própria Revolução. Se seguirmos somente o entendimento dele, não
conseguiremos dar uma explicação para o fenômeno.
Por
isso, sugiro que, nestes tempos em que muito se discute revolução e
democracia, tenhamos em mente também Alexis de Tocqueville (1805 –
1859), um nobre francês nascido já após a Revolução, cuja obra mais
famosa é “A Democracia na América” (“De la démocratie em Amérique”,
1835). Anos depois, ele publicaria também “L’ancien régime et la
révolution” (1856).
Tocqueville
é contemporâneo de John Stuart Mill, e até foi incentivado por ele a
escrever para o público inglês explicando a Revolução Francesa. Mas é
interessante notar como tudo nele parece de outro tempo: sua residência
era o Castelo de Tocqueville, usava seu nome de nobre e não um
sobrenome, sua imagem mais conhecida é uma pintura a óleo, sua análise
social é aparentada da crônica — bem ao contrário dos esquemas abstratos
e prescritivos que pipocavam pela Europa oitocentista.
Tendo
perdido parte da família na Revolução, ele passou anos fora da França
conturbada, justificando suas viagens iniciais com estudos de sistemas
carcerários na América do Norte. Nos Estados Unidos, prestou atenção a
cada detalhe da sociedade e pôs tudo no papel. Quando a França fica
outra vez conturbada demais para exercer atividades políticas, ele se
retira em seu castelo e fica escrevendo sobre a própria França, com base
nos arquivos consultados pela Europa.
A passagem do feudalismo para a modernidade
Tal
como Burke, e por motivos óbvios, Tocqueville não perde de vista o
barbarismo e a violência da Revolução. Mas ele crê que Burke perdeu
totalmente de vista os motivos da Revolução, já que incitava os
franceses a conservarem o mundo antigo. Tocqueville concorda com Burke
ao crer que a violência era evitável, mas discorda ao crer que uma
mudança profunda era inevitável.
A
tese de Tocqueville é que a Revolução Francesa representou na França um
golpe de misericórdia nas instituições feudais e a introdução da
modernidade. Leiamos um trecho em que ele chama a Inglaterra de país
mais adiantado da Europa e lista as características de uma sociedade
moderna:
“Se
quisermos esquecer os velhos nomes e descartar as velhas formas,
acharemos lá [na Inglaterra] desde o século XVII o sistema feudal foi
abolido em sua substância, as classes que se penetram, uma nobreza
apagada, uma aristocracia aberta, a riqueza transformada em poder, a
igualdade perante a lei, a igualdade de penas, a liberdade de imprensa, a
publicidade dos debates: todos princípios novos que a sociedade da
Idade Média ignorava. Ora, são precisamente essas coisas novas que,
introduzidas pouco a pouco e com arte nesse velho corpo, o reanimaram
sem correr o risco de dissolvê-lo, e o preencheram com um vigor fresco
enquanto deixaram as formas antigas. A Inglaterra do século XVII já é
uma nação toda moderna, que só preservou no seu seio e como que
embalsamadas alguns entulhos da Idade Média.”
Na
Europa feudal, o poder vinha da propriedade fundiária, não do dinheiro.
O poder era descentralizado, com os nobres servindo de instância
intermediária entre o topo (o rei) e a base (os servos). A punição de um
mesmo crime variava conforma o status de quem o cometeu. A nobreza era
uma classe guerreira que defendia a cristandade das invasões bárbaras e
combatia os mouros.
Nessa
sociedade, as pessoas nasciam ou nobres ou plebeias, e, se não
aderissem ao clero, se casavam com nobres (caso nascessem nobres) ou com
plebeias (caso nascessem plebeias), e morreriam na mesma condição em
que tinham nascido. Entre os plebeus, as profissões também costumavam
ser herdadas: o sapateiro era parte da corporação dos sapateiros e seus
filhos ingressariam na mesma corporação. Era um mundo social tão
estático quanto possível.
Nossos
ancestrais portugueses não participaram muito dele, já que a maior
parte da Península Ibérica integrava o Califado Omíada em um largo
período da Idade Média.
Nisso
tudo, inexistia um governo central. As leis, da França à Polônia, eram
todas muito parecidas, com hierarquias idênticas, mas (a acompanharmos
Tocqueville) não há nenhum registro histórico expondo uma decisão
unitária ou uma imposição vertical. O papado unia a Cristandade
centrando-se em Roma, mas sua autoridade era limitada pelas
prerrogativas da nobreza e dos reis.
A importância do dinheiro introduz uma reviravolta nesse quadro estático. A propriedade móvel é muito mais volátil e individual.
O trauma da Revolução se deve à centralização prévia
Para
Tocqueville, então, a verdadeira mudança política causada da Revolução
Francesa foi a modernização da França. A tirania em que ela desembocou é
um fenômeno ligado à centralização do poder.
Hoje
é quase lugar comum que a Revolução Russa terminou por consolidar o
centralismo, embora o poder tenha trocado de mãos. Derrubaram o Czar
tradicional, erigiram uma série de czares vermelhos em seu lugar.
No
século precedente, Tocqueville fazia um comentário análogo a respeito
da França: sublinhava que antes dos revolucionários, o país estava há
muito sob uma monarquia absolutista. A Revolução então teria recuperado
os traços políticos da França absolutista e transportado-a para novas
mãos.
A este respeito, ele traz a reveladora carta que Mirabeau escrevia ao Rei após o primeiro ano da Revolução:
“Comparai
o novo estado de coisas ao antigo regime; é daí que nascem as
consolações e esperanças. Uma parte dos atos da assembleia nacional, e é
a mais considerável, é evidentemente favorável ao governo monárquico
[sic]. Não é só ficar sem parlamento, sem províncias, sem clero,
privilégio e nobreza? A ideia de formar uma única classe de cidadãos
teria agradado Richelieu: essa superfície plana facilita o exercício do
poder. Vários reinos com governo absoluto não teriam feito o que só este
ano de Revolução fez pela autoridade real.”
Pus
um sic em monarquia porque hoje, para nós, monarquia está evidentemente
atrelada à ideia de rei. Mas é provável que na época a monarquia
estivesse tomada segundo o seu sentido clássico e etimológico, que é o
governo na mão de um só (mónos).
O século XXI
Tocqueville
considerava que a França era o país com o povo mais moderno da Europa
continental, e que a revolução pipocou ali, em parte, por causa do
descompasso entre plebeus modernos e uma nobreza alienada, que acumulava
dinheiro sem se importar nem com o povo, nem com o poder. A camada
intermediária do poder foi se corrompendo e isso resultou no
Absolutismo. Quando a Revolução veio o poder absoluto mudou de mãos e
arrasou o que ainda havia de contrapeso.
Ele
teve a felicidade de não viver para ver o Totalitarismo. Mas não deixa
de ser curioso que o Fascismo coincidiu com a modernização da Itália e o
Nazismo com a da Alemanha. Stefan Zweig, que fugiu para o Brasil na II
Guerra (e nos chamou então de país do futuro), revisitava a Revolução
Francesa como uma antecipação macabra do que ele vivia. Na biografia de
Fouché, comenta que foi a Revolução que inaugurou o assassinato em
massa, cavando grandes covas fundas para afogar camponeses de vilas
inteiras.
Será
que podemos concluir que a modernização tem uma horrenda tendência
centralizadora e genocida, capaz de ser freada apenas em sociedades
descentralizadas? A análise é insuficiente para batermos o martelo. Mas
serve para convencer de que vale a pena ler Tocqueville.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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