A sobrevivência da civilização dependerá de muita lucidez, tirocínio e poder militar. Bolívar Lamounier para o Estadão:
Não
consigo conceber a humanidade convivendo com um país que submete as
mulheres a rigorosa escravidão, impondo-lhes um tratamento atrocíssimo
do nascimento à morte. Mas de agora em diante, com o Afeganistão
dominado pelo Taleban e disputado pelo Estado Islâmico (EI), a realidade
será essa.
O
erro político do governo norte-americano foi deveras impressionante,
pois não só deixou ao deus-dará um aliado que dele dependeu durante 20
anos, como saiu do país atabalhoadamente, entregando de mão beijada ao
radicalismo islâmico grande quantidade de armas. É lógico que o
Afeganistão, com sua população de apenas 39 milhões e sua enorme
pobreza, não tem, sozinho, condições de se abalançar a uma aventura
bélica. Mas aí, paradoxalmente, é que reside o perigo: uma teocracia
totalitária, de inspiração claramente fundamentalista, poderá
superestimar suas forças, agindo como uma faísca, tentando atiçar
conflitos entre outros países, ou se engajando em alguma alucinação
terrorista como a empreendida por Bin Laden 20 anos atrás. Nesse quadro,
o Irã também precisa ser levado em conta, não obstante ser o seu poder
também limitado.
Entendam-me:
estou expondo uma hipótese e nem de longe pretendo generalizá-la para
todo o universo islâmico. O islamismo não é um conjunto homogêneo.
Compreende cerca de 60 países e a maioria não se encaixa no modelo de
regimes totalitários. A vertente fundamentalista a que pertencem o
Taleban e o EI, essa, sim, é capaz de perpetrar todo tipo de crueldade
contra a sociedade e claramente propensa à expansão geográfica. O Estado
Islâmico consegue ser muito pior que o Taleban. Destroçado na Síria,
transferiu-se para o Afeganistão. A guerra entre ambos é um cenário
altamente provável. Com a sobriedade que o caracterizava, o grande
historiador Otto Hintze definiu movimentos como o EI como aqueles cujo
objetivo último é se tornarem “impérios universais”. Em linguagem
caseira, são culturas ou religiões que trazem em seu DNA um afã de
ocupar e dominar militarmente outros países, a começar pela unificação
de todo o mundo islâmico sob um só governo. Seguindo essa linha de
raciocínio, não descabe afirmar que o horizonte do Taleban seja estender
seu modelo de teocracia totalitária até o limite do possível.
O
Ocidente demorou a perceber o risco da ascensão de Hitler na Alemanha,
mas cumpriu, ao fim e ao cabo, junto com a URSS, seu dever de destruir a
máquina de guerra responsável por todo tipo de atrocidades, culminando
no frio extermínio de judeus, exemplificado por Auschwitz. Mas as lições
da História nem sempre são assimiladas na devida proporção. Finda a 2.ª
Guerra Mundial, o mundo acomodou-se à precária paz a que a vitória
militar deu ensejo, aceitando-a como relativamente “normal”. Aceitando-a
sem atentar para o fato de que ela continuava a se basear numa
gigantesca desumanidade – com menos conflitos armados, é certo –, paz
que não mantém sequer uma pálida semelhança com a paz perpétua cogitada
por toda uma linhagem de filósofos utópicos. No mundo atual, essa
desumanidade está corporificada em quase 8 bilhões de seres humanos, a
maioria em estado famélico. O desafio de construir uma paz segura,
assentada em fatores de realidade é, pois, simplesmente hercúleo. Mas a
humanidade não tem como abrir mão sequer desse precário ideal. Os países
democráticos e todos os outros que preferem a ordem à desordem e a
civilização à barbárie têm o dever de colaborar na construção de uma paz
manejável e duradoura, que assegure a cada nação a conservação de sua
identidade e a possibilidade de prosperar e se beneficiar comercialmente
de suas complementaridades com o resto do mundo.
Como
sonhar com tal objetivo, mesmo na escala modesta a que me refiro, num
mundo onde bilhões de seres humanos mal e parcamente conseguem resistir a
seu miserável cotidiano, mundo no qual o terrorismo e o crime
organizado mudaram de escala, mercê do avanço tecnológico,
internacionalizando-se e beneficiando-se do efeito surpresa em escala
antes impensável?
Empreitada
hercúlea, sem dúvida. Muito maior que a visualizada pelos governos
ignorantes e corruptos que não cessam de se reproduzir em nossa triste
América Latina.
As
explosões da última quinta-feira (26/8) no aeroporto de Cabul,
provavelmente organizadas pelo Estado Islâmico, que causaram mais de 180
mortes, dão bem a medida do horror a que me refiro. Após o malfadado
episódio da tomada da capital pelo Taleban, salta aos olhos que o curso
dos acontecimentos será decisivamente determinado pelas grandes
potências. Entre estas se inclui a China, cujo regime interno é
declaradamente totalitário, mas precisa comerciar com o mundo inteiro,
em nada lhe interessando, portanto, um sistema internacional conturbado.
Com a Rússia, que nunca se desvestiu sinceramente de seu passado
autocrático, a situação é mais ou menos a mesma.
Em resumo, a sobrevivência da civilização dependerá de muita lucidez, tirocínio e poder militar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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