Mais do que uma inocente comédia de costumes, “Friends” consolidou a revolução sexual, substituiu família por amigos e tornou normais adolescentes tardios. Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff:
“Friends”,
uma das últimas produções da Era de Ouro das sitcoms, vai ter um
episódio especial de reunião dos personagens. A (minha) esperança é a de
que o programa, intitulado simplesmente “Aquele em que Nos Reunimos” e
que deve ir ao ar em junho, pela HBO, tire um pouco o foco da pandemia,
da política brasileira e do progressismo radical. Mas só porque sou um
otimista incorrigível mesmo.
De
uns tempos para cá, sobretudo entre meus contemporâneos mais ou menos
esclarecidos, virou moda dizer que “Friends” é ruim. Nada faz sentido,
diz um. Série com claque não dá, diz outro. Não suporto o personagem X, Y
ou Z. Idiossincrasias à parte, para mim a ojeriza a “Friends” parece
uma rejeição mais emocional do que estética de uma geração (a minha) que
não percebe como o enlatado ajudou a moldar nossa vida.
Não
que tenha sido uma influência boa. Longe disso. Hoje sem cabelos, com
uns quilos em excesso e muito mais bagagem do que gostaria, noto como
“Friends” levou toda uma geração a assimilar valores progressistas que
hoje nos soam naturais. Veja, por exemplo, a vida sexual dos
personagens. Tudo é fácil e descomplicado e descartável. Foi assim, com
uma piadinha aqui e outra ali, que “Friends” ajudou a consolidar a
liberalidade sexual dos anos 1960, mesmo tendo estreado logo depois da
epidemia de AIDS dos anos 1980.
Outra
instituição fundamental que a série sutilmente influenciou foi a
família. Em “Friends”, os pais, mães e irmãos dos personagens são quase
estranhos, quando não francamente antagonistas. É o caso, por exemplo,
dos pais de Chandler (um travesti e uma escritora de livros eróticos) e
de Mônica (mãe controladora).
A
própria forma como vemos o processo natural de amadurecimento foi
influenciada por “Friends”. Na série, pessoas com mais de 20 anos, que
já deveriam ter se descoberto na vida, estão com um pezinho existencial
na adolescência. E tudo isso é mostrado com tanta naturalidade que hoje
não vemos nada de muito revoltante na adolescência tardia, que em alguns
casos se estende aos 40 anos.
Por
fim, “Friends” influenciou profundamente a instituição que dá nome à
série ao mostrar, ao longo de dez temporadas, a amizade como um valor
inegociável (o que é bom), mas baseado num ideal inalcançável (o que é
ruim). Os amigos ocupam o lugar da família, dando origem a personagens
totalmente moldáveis pelo meio, porque precisam se mostrar o tempo todo
dignos de afeto. É cansativo, sim. Mas também é muito presente hoje em
dia.
Independentemente
dos valores morais da série, tanto conservadores quanto progressistas
têm algo a aprender com “Friends”: o poder da sutileza. As mudanças que
descrevi acima são todas de tendência progressista. Mas elas não nos
foram impostas por roteiristas militantes radicais. Bem pelo contrário,
as pessoas assimilaram a vida sexual libertina dos personagens aos
poucos. Não foram necessários slogans ou falas gritadas ou expressões de
ressentimento ou birrinha.
Que
a sutileza de “Friends” tenha sido usada para promover valores
progressistas não é surpresa para ninguém. A arte popular sempre foi um
instrumento de propaganda política admiravelmente sutil (e, por isso
mesmo, eficaz). E continua sendo, porque ninguém se convence de nada
quando afrontado. Daí a importância de aprender a inocular valores
conservadores também com paciência e sutileza. Uma piadinha por vez.
Mas
eu dizia que espero que o episódio de reunião de “Friends” seja um
momento de neutralidade na cansativa guerra cultural. Neste meu delírio
alienado, a dúvida sobre a traição de Ross quando estava dando um tempo
com Rachel voltará a figurar como questão de máxima importância. Riremos
da superficialidade de Chandler, do sexismo de Joey, dos transtornos
psiquiátricos de Mônica e das esquisitices de Phoebe. E, com alguma
sorte, nisso tudo veremos um pouco dos nossos erros e acertos também.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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