BLOG ORLANDO TAMBOSI
A
chamada Regra de Ouro da conduta moral — não faça aos outros o que não
quer que façam a você — enunciada nos Evangelhos e em formas semelhantes
em textos de outras religiões como o islamismo, budismo e hinduísmo,
retomada por pensadores ao longo dos anos, é uma espécie de régua,
referência do modo como nos relacionamos com as outras pessoas, na
medida em que estabelece um protocolo de não agressão, não coação, não
prejuízo àqueles com quem convivemos no cotidiano amplo de nossas vidas.
O ponto de partida, no entanto, não é o outro, mas o eu, porque por
receio de que alguém faça algum mal a mim, vou agir primeiro por
precaução, e não vou fazer mal a ninguém. O medo de ser alvo de algum
ataque, roubo, violência, será minimizado se eu não errar primeiro e não
fizer algo ruim ao outro, o que abriria caminho, criaria a
possibilidade, para que o outro fizesse algo contra mim. O pressuposto é
de que a reciprocidade é a norma moral. Sempre aumento os tipos de atos
prováveis dos outros em relação a mim se eu também agir de certo modo, o
que dá espaço e chance para que os outros me tratem de certa maneira.
Mas no espectro das relações sociais em geral, a ação ruim não precisa
partir necessariamente de mim. Se uma sociedade tolera atos maus sem
indignação e prontidão em coibi-los, esses atos entram para um rol de
ações reais e tornam-se vocabulário e prática à mão. Daí o perigo das
ações de personalidades públicas, políticos e governos, pois toda
resolução, ao se concretizar, torna possível e muito provável sua
repetição. Um mal realizado ganha uma chancela para se replicar, como o
assassinato sistemático de vítimas inocentes nos totalitarismos, o
assassinato estabelecido como possibilidade legal em ditaduras e o
descaso criminoso como falta de assistência mínima a cidadãos no
enfrentamento de uma pandemia.
A
Regra de Ouro está nos Evangelhos de Lucas (6,31) — “E tal como quereis
que convosco procedam as pessoas, procedei com elas do mesmo modo” — e
de Mateus (7,12) — “Tudo quanto quiserdes que vos façam as pessoas,
assim fazei vós a elas. Pois esta é a lei e os profetas.” O tradutor
Frederico Lourenço chama atenção para o fato de que em Mateus, Jesus
afirma que na regra está resumida toda a Escritura hebraica, ou seja, “a
lei e os profetas”. Trata-se, portanto, de lei predominante.
Na
análise que faz da permanência da validade das regras morais por
aqueles que, mesmo pressionados, de formação e classes sociais variadas,
resistiram ao mal cometido pelos governos totalitários, Hannah Arendt
considera as principais proposições morais da tradição. Além da Regra de
Ouro, examina uma referência da Antiguidade grega e destaca a norma
estabelecida por um pensador moderno, Immanuel Kant. O imperativo
categórico é a regra da conduta moral kantiana em que se estabelece o
princípio de que antes de cada ação é preciso imaginar sua extensão
geral, ou seja, a todas as pessoas. Se ela puder ser praticada por
todos, então está autorizada. Kant formula essa regra de vários modos,
mas vou me ater aqui à destacada por Arendt: “Aja de tal maneira que a
máxima da sua ação possa se tornar uma lei geral para todos os seres
inteligíveis”.
Junto
com o imperativo de Kant e a Regra de Ouro, Arendt cita outra passagem
de Mateus, “Ama o teu próximo como a ti mesmo” (22, 39), e a afirmação
de Sócrates no diálogo platônico Górgias, segundo a qual é melhor sofrer
o erro do que praticá-lo. Ao longo do diálogo, essa regra é repetida em
formulações diferentes por Sócrates, que percebe sua fragilidade, mas
insiste na ideia de que é maior o peso da vergonha de quem pratica o
mal. O que une as proposições destacadas — dos Evangelhos, da
Antiguidade e de um autor moderno — é que todas elas têm o eu como ponto
de partida da regra moral. O que fundamenta essa referência de conduta
guarda um entendimento a respeito de nossas capacidades
mentais/espirituais.
Hannah Arendt |
Nossa
existência se caracteriza pela consciência que temos de nós mesmos. Por
exemplo, a mais determinante e dura delas, sabemos que somos finitos.
Identificamos as coisas de que gostamos ou não, quem nos dá afeto e
protege ou não. Mais comuns ou por vezes traumáticas, as referências
daquilo que nos causa prazer e desprazer vão moldando nossas
expectativas. A consciência e a consciência de si são alimentadas ou
negligenciadas e as consequências desse cuidado ou sua falta vão
concorrendo para nossa vida; vida aqui entendida como nossa condição
humana, nossas capacidades e escolhas. A consciência é a noção de
realidade, do espaço e do tempo. A consciência de si é a atenção a
motivações, ações e limitações, o conhecimento de si mesmo. Se não
tivermos clareza em relação a quem somos, nossos limites e
possibilidades, a chance de cometermos erros é considerável, ainda
levando em conta que esse “eu” não se completa; ao longo de nossa
vivência o que acontece é um processo de mudança em que é preciso
elaborar constantemente quem somos, sem que possamos chegar a uma
resposta definitiva.
Na
medida em que vivemos, percebemos que lidar com certas situações
desafia nossa clareza quanto ao que somos e queremos. Se aparece uma
oportunidade de realizarmos algo muito almejado, mas que vai prejudicar
uma relação ou alguém, precisamos examinar se vamos poder lidar
posteriormente com esse prejuízo ou com o efeito em outras pessoas. É
preciso lembrar que vivemos em um tempo no qual o desejo geralmente
prevalece. Realizado o desejo, vamos conseguir dormir tranquilos? A
ideia de colocar a cabeça no travesseiro e não dormir tranquilamente, de
não usufruir de um período de descanso necessário por causa do “peso na
consciência”, como se diz, de uma má conduta, é algo que nos incomoda e
serve de alerta. A questão é que a principal pessoa com a qual
convivemos somos nós mesmos. O que há de mais recôndito em nossas
intenções está guardado em nossos corações como sombras. Algumas vezes
não é nada bonito de se ver, pois somos seres imperfeitos, que sentem
raiva, inveja, preguiça. Não mentir para si mesmo sobre essas
imperfeições, talvez seja um dos mais importantes compromissos que temos
para conosco. A consciência de nossa falibilidade nos leva à maior
consciência da fraqueza humana, mas também, consequentemente, de sua
força e potência. Se fazemos o mal ou o bem, teremos que conviver
primeiro com quem praticou certos atos, ou seja, nós mesmos, daí a
máxima da moralidade socrática: “cometer injustiça é pior do que sofrer
injustiça”, desdobramento da ideia de que não podemos entrar em
contradição com nós mesmos, logo, não podemos fazer algo ao outro que
não gostaríamos que ele fizesse contra nós.
Aquela
elaboração de Arendt chega à seguinte conclusão: do reconhecimento do
eu chegamos à capacidade de pensar, de dialogar com nós mesmos. Na
moralidade está implicada a consciência de si que conduz ao pensamento, à
capacidade que precisamos reconhecer e praticar de conversarmos com nós
mesmos, de nos esforçarmos para não estar em contradição com o que
somos, de não agir contra o outro porque, de certo modo, estaríamos
agindo contra nós mesmos. O mal — a desumanidade que é estreiteza,
superficialidade, negação, descaso — pode ser evitado se cada um se
comprometer a pensar, ou seja, a não ser negligente no exame de si.
Em
um pequeno texto de 1990, Paul Ricoeur trata da tensão central para a
ética cristã entre a Regra de Ouro e o “Ama a teu próximo como a ti
mesmo”. O paradoxo entre a lógica da equivalência da Regra — pois a
minha conduta equivale à dos outros — e a lógica da superabundância do
mandamento — pois o amor transborda como referência e se estende a todo
próximo, até ao inimigo — desorienta, porque é um conflito entre o
autointeresse e o autossacrifício, entre a justiça bilateral e o amor
unilateral. E aqui o raciocínio faz lembrar outra vez a moralidade
socrática, como destacada por Arendt. Contudo, afirma Ricoeur, essa
desorientação tem o propósito de reorientar, levar a uma reinterpretação
necessária da moralidade. Para ele, a superabundância se torna a
verdade escondida da equivalência, ou seja, a consideração magnânima do
amor ao próximo se impõe.
Paul Ricoeur |
No
entanto, a questão da autorreferência permanece; a tensão do conflito
entre o interesse próprio e o autossacrifício de amar até mesmo um
inimigo. E voltamos à ideia de Sócrates: é melhor sofrer o erro do que
cometê-lo. Como consideramos hoje esse conflito? É possível que esse
amor se sobreponha? Será que ele, transformado em respeito, vá lá, ainda
pode ser evocado como princípio efetivo de conduta moral? Como e em que
está transformada essa convivência que temos com nós mesmos? Nas
condições em que vivemos, na situação de urgência, de limite, como fica a
moralidade? Qual é a reinterpretação, uma reorientação possível dos
princípios destacados aqui?
A
pandemia exigiu de nós respostas para um conjunto de perguntas a
respeito de nossa própria situação e da consideração das condições de
vida dos outros. No Brasil, muitos precisam sair de casa todos os dias
para ganhar a vida, conseguir o almoço e, com sorte, o jantar. Ficamos
sabendo do cotidiano de trabalho estafante dos profissionais de saúde.
Ouvimos e pensamos sobre as consequências de “sair de casa”, não usar
máscara, “aglomerar”. Ligamos a TV e ouvimos as orientações de médicos e
de cientistas. Muitos relatos dramáticos de sofrimento terrível,
destacados por grande parte da imprensa para sensibilizar as pessoas e
estimulá-las a seguir a ciência e deixar disputas, na verdade
antipolíticas, de lado.
Além
dos relatos de situações terríveis, ficamos sabendo de iniciativas de
arrecadação de cestas básicas, de mutirão para conseguir oxigênio, mas
também de gente que foi tomar a vacina fora do Brasil, de empresários
que pagaram uma falsa enfermeira que aplicou vacinas falsas. Enfim,
gestos de solidariedade, podemos dizer de “amor ao próximo”, e do mais
mesquinho interesse privado. Alguns têm claramente a medida do que se
deve fazer: proteger a si mesmo, respeitar o próximo e cobrar medidas
contra a desumanidade que, infelizmente, vemos todos os dias. Tenhamos
em mente que o mal não é propriamente a doença. O vírus é natural e na
natureza não há moralidade, a distinção entre bem e mal, certo e errado.
O mal que enfrentamos é a má conduta para enfrentar a ameaça da doença.
O mal está em alguns seres humanos, não no vírus.
Portanto,
as perguntas são: ainda é válida e forte a ideia segundo a qual é pior
causar o mal do que sofrê-lo? Quantas pessoas pensam que é pior ser
irresponsável e transmitir a doença do que sofrer o mal? A resposta a
essa pergunta repete em novo cenário as máximas que comentamos: (1) Há
preocupação com o que faço porque não quero que os outros façam algo
ruim comigo. Não vou fazer nada que prejudique outros e não serei
conivente com quem age e comete o mal. (2) Amo — ou respeito — as outras
pessoas. (3) Não suportaria causar mal, porque teria de conviver com a
culpa de ter feito mal a alguém. A validade dessas concepções se
destaca em contextos de urgência, quando o cenário é absolutamente
assustador e os seres humanos são obrigados a parar as suas vidas. Mas
ao mesmo tempo, sabemos que esses princípios são frágeis porque é débil
ou inexistente o cultivo da atenção profunda ao eu, tanto hoje como há
2.400 anos.
Negar
a realidade e fugir dos desafios são recorrentes e alimentam a
desumanidade por serem atitudes rasas. Podemos insistir na ideia do
pensamento, na importância da consciência de si, do conhece-te a ti
mesmo, de se reconhecer o perigo pelo qual passamos graças à atenção à
realidade, por mais dramática e complexa que seja. Na urgência, a
realidade é duramente jogada sobre nós. Mas até que ponto essa cobrança
de boa convivência consigo mesmo, que é o pensamento, é realista? Antes
da pandemia já vivíamos em um contexto de difícil estímulo ao
pensamento, aos momentos de silêncio sem celulares nem “selfies”, sem
apelo constante à criação e à manutenção de uma imagem de si mesmo
substituta da consciência de si.
A
tentativa final de Sócrates/Platão no diálogo Górgias, assim como n’A
República, é a ameaça do castigo depois da morte. Sofrimentos e
suplícios sem fim esperam os tiranos, os maus, no além vida. A resposta
da tradição religiosa investe na mesma ameaça. Estamos, portanto, há
séculos lutando para encontrar um argumento que convença, que possa
bastar para que o ser humano escolha agir pelo bem. Hoje esta tradição
já não se sustenta, apenas sendo lembrada por estarmos acuados e
desesperados. O pensamento, então, toma a frente, mas em uma sociedade
anestesiada pelo investimento no falso eu das redes sociais, das fotos
retocadas, das mentes entregues a qualquer delinquente que pareça
resolver a complexidade da vida com uma arma e com a linguagem chula de
quem nunca compreendeu a gravidade e a responsabilidade da vida pública.
Se
a alma humana é mesmo um abismo, como nos ensina o poeta, para
conseguir sobreviver a grandes desafios é preciso passar para além da
dor. Mergulhados nela, precisamos compreendê-la para resistir e seguir. O
fato desafiador é que, na verdade, as pessoas que agem do melhor modo
em situações-limite talvez nem tenham parado para pensar em como agir,
porque essas ideias de reciprocidade e consideração ao outro já são
claras, autoevidentes para elas. Como fazer para que esses princípios
que impedem o mal sejam autoevidentes? Não basta fazer campanhas, criar
mais leis, muito menos imaginar que a escola resolva o problema. Também é
uma esperança vã imaginar que nos livraremos totalmente do mal. Mas é
possível constrangê-lo, reduzi-lo, o que demanda tempo, exemplo, esforço
para preservar a memória, justiça e proteção da verdade dos fatos. A
pandemia ainda não acabou e só poderemos dimensionar as suas
consequências, também no âmbito da moralidade, quando ela passar. Não
temos motivos para acreditar em um profundo e duradouro aprendizado, mas
sabemos que a dor e a indignação que explode diante da repetitiva
negação de sua realidade destrutiva às vezes ensinam a amar/a respeitar o
outro, este ser igual e tão diferente de nós mesmos.
Berthe Morisot, The Lilacs at Maurecourt, 1874. |
Referências
ARENDT,
Hannah. Responsabilidade e julgamento. Ed. Jerome Kohn, Bethânia Assy.
Tradução Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
BÍBLIA,
volume I: Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução, apresentação
e notas Frederico Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2005.
PLATÃO. Protágoras, Górgias, Fedão. 2.ed.rev. Tradução Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. UFPA, 2002.
________. A República. 7.ed. Introdução, tradução e notas Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993.
RICOEUR,
Paul. “The Golden Rule: Exegetical and Theological Perplexities. New
Testament Studies, Vol. 36, Issue 03, July 1990, pp. 392-397. Disponível
em: http://journals.cambridge.org/abstract_S0028688500015812 (Agradeço a Ana Carolina Batista por encontrar e compartilhar este texto de Paul Ricoeur.)
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