A democracia não é o regime perfeito. Como dizia Churchill, é apenas o regime menos mau. Apenas garante a liberdade sob a lei. As culturas tribais não alcançam a vantagem e civilidade da liberdade. Artigo do professor João Carlos Espada via Observador:
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Celebrámos ontem — felizmente em democracia e graças também ao 25 de
Novembro de 1975 — mais um aniversário do 25 de Abril de 1974.
Felizmente, também, o evento foi marcado por uma série de controvérsias
livremente expressas na praça pública. Essas controvérsias não teriam
sido autorizadas na provinciana ditadura salazarista de 1926-1974, nem
na provinciana ditadura republicana e jacobina de 1910-1926. Mas a
verdade é que têm tido agora livremente expressão entre nós.
Esta
liberdade de expressão constitui só por si muito boa razão para
celebrarmos a liberdade do 25 de Abril de 1974 e do 25 de Novembro de
1975. E talvez fosse também boa razão para reflectirmos sobre as razões
que terão levado Portugal a viver bizarras e provincianas ditaduras
tribais de sinal contrário entre 1910 e 1974/75.
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Não sendo eu historiador, não me passa pela cabeça tentar responder a
esta magna bizarria historiográfica. Mas talvez possa sugerir algumas
questões do simples ponto de vista da teoria política (a humilde área
académica que frequento).
E
a magna questão que a teoria política colocou foi a da distinção entre
tirania e liberdade, entre sociedade fechada e sociedade aberta, entre
tribalismo e primado da lei. Esta foi a magna questão que ocupou os
principais autores anti-autoritários — anti-comunistas e anti-fascistas —
do século XX: Walter Lippmann, Joseph Schumpeter, Friedrich Hayek, Karl
Popper, Isaiah Berlin, Michael Oakeshott, Ralf Dahrnedorf, para citar
apenas alguns.
No
centro dos argumentos de todos esses autores esteve a distinção entre
regras gerais e propósitos particulares. As ditaduras, de esquerda ou de
direita, são sociedades tribais que proclamam a unicidade de um
propósito particular ou de uma hierarquia fixa de propósitos
particulares — em que uma tribo se identifica contra os outros. As
democracias liberais são sociedades pluralistas que reconhecem a
pluralidade de propósitos particulares, desde que estes respeitem as
regras gerais constitucionais que garantem a liberdade de concorrência
entre diferentes propósitos particulares.
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Karl Popper foi particularmente enfático sobre este tema — e fez dele o
centro da sua palestra em Lisboa, em 1987, na série de conferências
sobre “O Balanço do Século” promovida na Gulbenkian pelo então
Presidente Mário Soares.
Disse
Popper que a democracia não é sobre propósitos particulares — tais como
sobre o governo do povo, ou sobre a igualdade, ou sobre a estatização
dos caminhos de ferro, ou qualquer outro plano de perfeição centralmente
desenhado. A democracia, disse Popper, é sobre regras gerais e não
sobre propósitos particulares..
No
centro dessas regras gerais, disse Popper, está a possibilidade de
mudar de governo sem violência, através de eleições e de um debate livre
entre propostas rivais. Por isso, argumentou Popper, no centro da
democracia está a ideia de governo limitado pela lei, que presta contas
ao Parlamento, que por sua vez vez presta contas aos eleitores.
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Ralf Dahrendorf, um alemão que foi aluno do austríaco Karl Popper na
London School of Economics and Political Science (LSE) logo após a II
Guerra, e depois seu Reitor entre 1975 e 1985, gostava de citar Popper
como seu professor. E gostava de ilustrar a distinção popperiana entre
regras gerais e propósitos particulares com a distinção entre “política
constitucional” e “política normal”.
A
“política constitucional”, argumentava Dahrendorf, consagra as regras
gerais que definem o pluralismo da concorrência civilizada entre
diferentes propósitos particulares. A “política normal”, por seu turno, é
sobre a saudável concorrência entre políticas e propósitos rivais.
Retomando
o exemplo de Popper, Dahrendorf gostava de citar os caminhos de ferro
como exemplo da pluralista rivalidade entre propósitos particulares da
“política normal”. Estatizar ou privatizar os caminhos de ferro não é
uma tema da “política constitucional” — é apenas uma escolha da
“política normal”, cuja alternância é garantida pela “política
constitucional”: umas vezes a proposta de estatização ganha as eleições,
outras vezes ganha a proposta de privatização.
Numa
democracia liberal civilizada, ninguém se lembra de declarar que “a
democracia morreu” quando a sua proposta particular sobre os caminhos de
ferro perdeu as eleições. Perder hoje, ganhar amanhã, é a regra de ouro
das democracias liberais, em contraste com as repúblicas das bananas
que promovem revoluções e contra-revoluções sempre que os propósitos
particulares de tribos particulares perdem as eleições (quando elas
chegam a ter lugar).
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Popper e Dahrendorf — o primeiro nascido na Áustria, o segundo na
Alemanha — gostavam de citar o exemplo britânico da “gentlemanship” como
chave da democracia liberal em que diferentes propósitos particulares
aceitam civilizadamente perder hoje as eleições, sabendo que, sob as
mesmas regras gerais, podem ganhar amanhã.
Não
creio que Popper e Dahrendorf fossem particularmente desportistas. Mas
ambos me sublinharam enfaticamente que o “gentlemanly” espírito
desportivo — sobretudo do Golf e do Tennis — eram fundamentais para
compreender o espírito moderado da democracia liberal. Em ambos existe
(ou costumava existir) um escrupuloso respeito por regras gerais — um
estrito dress code, estrita pontualidade, e estrito respeito pelo
adversário (que, no caso do Golf, joga primeiro se tem menor pontuação).
Saber
perder com boa disposição e saber ganhar com humildade — são os traços
distintivos da “gentlemanship”, de acordo com Popper e Dahrendorf. Nos
bons velhos tempos, eram também designados por “civilidade”.
6 Em
suma, a democracia não é o regime perfeito. Como dizia Churchill, é
apenas o regime menos mau. Apenas garante a liberdade sob a lei. As
culturas tribais não alcançam a vantagem e civilidade da liberdade.
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