Queria saber se ele se olha no espelho e pensa: “Eu sou Renan Calheiros”. Se ele se lembra com saudade mal-disfarçada de Mônica Veloso. Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta do Povo:
Lembro-me
de Renan Calheiros ao lado de Collor, ainda novinho, aquela cara de
assistente administrativo da repartição em peça de Nelson Rodrigues.
Lembro-me de Renan Calheiros conquistador de donzelas indefesas.
Lembro-me de Renan Calheiros falando rezistro com orgulho regionalista e
provocando um caloroso e ébrio debate no Belmonte. Por fim, lembro-me
de um Renan Calheiros neopetista, neolulista, neodilmista, sempre nas
manchetes com um processo a prescrever no STF.
E
agora Renan Calheiros (quem diria?!) está de volta ao palco principal
da política brasileira, como nobre relator da igualmente nobre CPI da
Covid, que pretende investigar por que a Covid-19 matou tantos
brasileiros, quando poderiam ter sido tantos menos. Ou coisa assim.
Mais
à direita do que à esquerda (que adora um aliado oportunista, por mais
abjeto que ele seja), todo mundo está apontando a ironia óbvia e triste
que é ter o senador alagoano na equipe que investigará um crime
inventado pelo STF. Já eu fico olhando para aqueles oclinhos de aro
fino, o cabelo prateado finamente implantado, o sorriso que me lembra o
do David Letterman e me pergunto como alguém poderia esperar de Renan
Calheiros, a essa altura da vida, qualquer postura diferente da que ele
está assumindo.
As
explicações óbvias estão por aí. Dinheiro. Poder. Influência. O
problema é que, na minha cabeça oca, não entra algo que acredito ser uma
obviedade para todo mundo: o político brasileiro não está nem aí para
essa coisa de legado e posteridade. Não entendo como alguém pode ser
capaz de contornar tantas virtudes apenas para manter certo padrão de
vida. Não capto o momento em que o homem se entrega ao personagem.
Teimosa e algo estupidamente, continuo tentando enxergar o ser humano
onde há apenas o político oportunista.
Serve
para políticos como Renan Calheiros, Bolsonaro, Lula e [INSIRA AQUI O
NOME DO POLÍTICO DE SUA PREFERÊNCIA]. Serve para artistas – e quanto
maior a fama, maior a submissão ao personagem. Serve até para juízes –
até porque não dá para supor que Gilmar Mendes chegue em casa e fale
naquele tom com a esposa. Serve, por que não?, para jornalistas que
passam o dia brigando nas redes sociais.
Não
vou dizer que é assim um sonho. Seria exagero. É no máximo um delírio
de um lamentável cronista que aqui e ali comete suas pseudoliteraturas.
Mas gostaria, sim, de conhecer o homem obrigado a conviver com um
personagem tão repugnante. De saber quem é Renan Calheiros quando
ninguém está olhando – a não ser eu.
Gostaria
de acompanhar em silêncio o cotidiano dessa pessoa que abre o jornal e
invariavelmente vê sua foto associada à palavra “corrupto”. De observar
com cuidado como ele encara ameaçadoramente seus adversários, com aquele
olhar de quem sabe que todos guardam esqueletos no armário. Queria
saber se ele se olha no espelho e pensa: “Eu sou Renan Calheiros. Eu sou
f&#$@”. Se ele se lembra com saudade mal disfarçada de Mônica
Veloso.
Porque
algo de curioso acontece com essas megacelebridades políticas – e Renan
Calheiros é, além de senador e relator da CPI da Covid, uma
celebridade. Elas têm todos os passos acompanhados de perto, e não raro
com má vontade, por jornalistas, acadêmicos e diletantes sempre muito
atentos ao jogo político, ao xadrez 4D e às fofocas do cafezinho, mas
que ignoram a fascinante verdade que se esconde nos detalhes do
cotidiano.
Talvez
seja excesso de otimismo de minha parte, mas o Renan Calheiros que
insiste em nos irritar com sua simples e de alguma forma imoral presença
no Senado deve ainda guardar alguns aspectos humanos sob a fantasia de
parlamentar impoluto, muito preocupado com o póvo sófrido, com a
democracia, com Lula e com tudo o mais que seu radar político
identificar. Se e por que ele quer ou precisa esconder esse lado humano e
vulnerável é motivo de debate antropológico, psicanalítico, jurídico e
até teológico.
Veja
as notícias recentes sobre Renan Calheiros relatando a CPI que
supostamente derrubará Bolsonaro. Nas fotos ele aparece sempre com um
semissorriso de escárnio, como se fosse mesmo predestinado a jamais cair
de seu pedestal. Não se vê ali qualquer princípio ou ideologia dos
quais discordar. É só um primitivíssimo instinto de preservação
disfarçado de civilidade política.
Ao
chegar em casa depois de um dia de “trabalho”, ao botar seu implante
capilar no travesseiro, imagina Renan Calheiros que está contribuindo de
alguma forma para a Verdade? Será que ele acha que suas palavras e atos
o aproximam da glória? Ah, queria ser um camundonguinho no Congresso
para saber o que Renan Calheiros, ser humano e não figura pública,
pensou na solidão do gabinete, ao encarar o espelho e a inevitável
velhice, decadente, morte.
Queria
saber no que o homem pensa ao escovar os dentes, ao calçar o sapato, ao
encarar o repórter que provavelmente conversa com ele já tendo uma
manchete em mente. Será que ele usa fio-dental? Será que às vezes abre o
sorrisão para perguntar a um assessor se está com alface entre os
dentes? Será que, no íntimo, às vezes ele não tem vontade de trocar o
conflito político por um filminho tipo “Curtindo a Vida Adoidado” na
Sessão da Tarde?
Se
pudesse, ficaria ali, só observando e fazendo anotações mentais, até
que Renan Calheiros adentrasse o reino de Morfeu. Nesse instante, ao me
virar para compor o perfil daquela pessoa, me depararia com a figura
elegante de Mefistófeles. Sem demonstrar nenhum ressentimento por eu ter
recusado as muitas ofertas que me fez nos verões passados, ele daria um
passo em minha direção e, com seu tradicional bafo de enxofre, diria:
“Se você gostou desse, espere só até ver o próximo”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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