A
internet e as redes sociais trouxeram quatro desafios à doutrina
clássica da liberdade de expressão: fake news, discurso odiento, bolhas
informacionais e saturação da nossa atenção. Para os três primeiros a
doutrina clássica já tem respostas satisfatórias, uma vez que esses são
desafios novos apenas na forma de apresentação (agora digital). O quarto
e último desafio, no entanto, é substancialmente novo e exige um passo
adicional. Então vamos por partes.
Todos
conhecemos a justificação clássica para a liberdade de expressão
magistralmente apresentada por John Stuart Mill em 1859, em seu ensaio
Sobre a liberdade. Os argumentos ali reunidos consolidaram um dos
pilares de todas as democracias contemporâneas, inclusive a nossa (vide
os artigos 5º, incisos IV e IX, e 220º da nossa Constituição). Por
estarem profundamente arraigados em nosso modo de pensar, quase não nos
damos conta de que aí estão. Fazem parte de uma espécie de inconsciente
público que silenciosamente molda o que consideramos intuitivamente
aceitável ou defensável. E nesse nível mais elementar não há quem
advogue o abandono desses valores.
Mas
o mar não está para peixe, como todos sabem. Nestas duas décadas do
novo milênio não houve uma única instituição ou ideia clássica que não
tenha sido violentamente sacudida pelas transformações vertiginosas de
nossas tecnologias, pensamentos e modos de viver. Nada parece ter
passado incólume. Em toda parte vemos a versão sombria daquilo que
poderia ter sido e não é. Da seleção brasileira à Igreja Católica, dos
ideais igualitaristas ao moralismo do lava-jatismo, de Heidegger ao
Twitter: nenhuma instituição, ideia ou prática social parece ter tido a
sua nudez poupada pelo espírito apocalíptico de nossa época. Assim
também com a liberdade de expressão. Numa curiosa inversão de valores –
aliás, típica de nosso tempo –, numerosos liberais de outrora hoje
silenciam-se sobre o cancelamento de seus adversários políticos nas
redes sociais, quando não o comemoram.
Para
ver como essas formas contemporâneas de silenciamento são incompatíveis
com a doutrina clássica da liberdade de expressão, basta relembrar
brevemente os argumentos de Mill: (1) Por mais convictos que estejamos
da verdade de nossas próprias opiniões, sempre podemos estar errados.
Somos falíveis. Além disso, tendemos a valorizar mais os indícios
confirmatórios das opiniões que já temos do que os indícios contrários.
Somos cognitivamente enviesados e apenas o diálogo com pessoas que
pensam diferentemente pode mitigar essa tendência. (2) Mesmo quando
estamos com a verdade, se ninguém nos desafia, não temos como conhecer a
nossa própria correção. A opinião verdadeira que não é submetida ao
contraditório não tem como ser asserida com segurança, pois ninguém tem
como saber a priori se aquilo em que crê é produto da solidez de seu
pensamento ou do arraigamento de seus preconceitos. (3) No mais das
vezes, as opiniões que inicialmente sustentamos, mesmo que largamente
verdadeiras, contêm também equívocos e distorções que apenas o confronto
com ideias e opiniões contrárias pode revelar.
John Stuart Mill |
Segundo
Mill, a liberdade de expressão é sobretudo valiosa quando as formas de
silenciamento de opiniões contrárias são produzidas não pela censura
estatal, mas pela “tirania da maioria”. Esta é mais eficaz que aquela.
Seus efeitos, mais deletérios. Para que os nossos próprios erros possam
vir à luz, a opinião minoritária precisa não apenas ser permitida, mas
positivamente incentivada, segundo Mill. O instituto da liberdade de
expressão, nesse sentido, não consiste num livre mercado de ideias em
que as ideias mais fortes batem as mais fracas e as levam à extinção. A
extinção das ideias minoritárias é exatamente o que a liberdade de
expressão tem por propósito evitar. Há nesse sentido desanalogias
importantes entre a ideia de um “mercado de ideias” e a ideia da livre
concorrência econômica (a esse respeito, ver o artigo de Jill Gordon).
Tendo
isso em mente, seria de se esperar que aquelas pessoas que
tradicionalmente se identificam com a ampliação dos direitos e
liberdades individuais bem como aquelas que vigorosamente defendem os
interesses das minorias se opusessem às novas políticas de restrição das
liberdades de expressão que vêm sendo implementadas na internet.
Entretanto, isso não vem acontecendo. Algumas consideram que os
problemas postos pela internet são novos e exigem uma modificação da
doutrina clássica da liberdade de expressão. Argumenta-se, por exemplo,
que a quantidade de fake news, discursos odientos e bolhas
informacionais cresceu exponencialmente nos últimos anos e não teria
mais como ser remediada senão mediante o estabelecimento de limites ao
que pode ser dito publicamente.
Como bem observa a advogada Nadine Strossen,
no entanto, essa é uma crença ingênua. Esses fenômenos não são novos. A
história está repleta de casos de fake news, discursos odientos e
bolhas informacionais. No século vinte, antes da internet, poucos foram
os governos e órgãos de imprensa que não os promoveram em um momento ou
outro (sobre isso, ver também o artigo de Yuval Harari neste jornal).
Para esses males, a doutrina clássica da liberdade de expressão já tem
um remédio eficaz, que é o do contradiscurso. Ainda que frágil, o meio
mais eficaz para se combater fake news, discurso de ódio e bolhas
informacionais é exatamente aquele descrito por Mill: a contraposição e o
confronto livre de ideias, pensamentos e argumentos, o diálogo e a
apresentação de razões. Nem sempre a verdade e o bom senso prevalecem
numa discussão livre. Mas o remédio alternativo, que é o da censura ou
do silencialmento social, é bem mais amargo, sobretudo para as minorias
sociais e culturais. Quem decide o que pode ser censurado ou silenciado é
sempre a voz dominante no Estado ou a das maiorias sociais de ocasião
(ver sobre isso o depoimento de Ira Glasser,
ex-presidente do American Civil Liberties Union). É importante
considerar o seguinte: todos nós somos capazes de dizer coisas odientas,
falsas e enviesadas ou que assim o parecem aos outros. Pregar a censura
ou o silenciamento social apenas dos outros é, nesse sentido, uma
espécie de húbris, como bem observou o jornalista Glenn Greenwald.
É considerar-se imune à possibilidade de vir a ser censurado e
silenciado logo adiante por sermos já agora suficientemente iluminados
para jamais cometermos falsidades, ofensas ou distorções.
Segundo
Mill, não temos como saber a priori se o que nos parece ofensivo
decorre do conteúdo do que está sendo dito ou de nossos próprios
preconceitos. Isso apenas a discussão pode revelar. Algumas ideias
importantes que no passado foram tidas como ofensivas e imorais hoje
fazem parte do nosso bom senso. As reivindicações pelo fim da escravidão
e por direitos iguais para mulheres, defendidas por Mill no século
dezenove, por exemplo, eram naquela época vistas como ofensivas e mesmo
odientas pelos setores mais conservadores da sociedade inglêsa. Em
regra, são as ideias e opiniões das minorias sociais e culturais que são
principalmente vistas como imorais e odientas e portanto mais
suscetíveis de silenciamento e censura; são elas que não conseguem furar
a bolha da maioria. E em geral quem aplica a censura ou promove o
silenciamento são os setores mais hegemônicos e politicamente mais
fortes das maiorias sociais, justamente os que menos precisam desses
expedientes tirânicos para verem prevalecer as suas opiniões. Temos aí
três razões básicas para tolerar, no discurso público, a apresentação de
ideias e opiniões que nos pareçam ofensivas ou mesmo odientas: (1) pode
ser que estejamos equivocados ou parcialmente equivocados a respeito
delas, (2) não temos como tomar consciência de nossos próprios
enviesamentos senão pelo confronto sistemático de opiniões contrárias às
nossas, (3) a censura ou silenciamento tende a ser exercida por
indivíduos que detêm algum tipo de poder político e social e desse modo
reforçam desnecessariamente uma espécie de tirania da maioria (da qual
podemos fazer parte hoje, mas talvez não amanhã). (Uma discussão muito
rica desses desafios com uma atenção especial à realidade brasileira
pode ser encontrada na bela coletânea organizada pelo professor José
Eduardo Faria, A liberdade de expressão e as novas mídias.)
Passemos
agora ao desafio mais difícil, que é aquele posto pela saturação de
nossas atenções. Houve um inegável aumento da liberdade de expressão com
a popularização mundial da internet. Hoje a veiculação de opiniões é
menos filtrada por barreiras de acesso físico e financeiro. Pessoas em
locais distantes podem com mais agilidade e menos recursos se
manifestar, não necessitando para isso de imprensa, correios ou
mecanismos institucionais de apoio e distribuição de informações. Essa
democratização do acesso trouxe consigo um aumento gigantesco da
quantidade de opiniões e ideias imediatamente acessíveis. Hoje não temos
apenas discurso e contradiscurso, como no Hyde Park da época de Mill.
Temos uma gigantesca cacofonia de vozes e ruídos, que dificulta o acesso
às razões e contrarrazões coerentes e inteligíveis. É como se
estivéssemos em uma biblioteca grande demais para seres humanos, em que
os livros não estivessem dispostos em uma ordem inteligível.
As
instituições de ensino e os veículos de imprensa tradicionais
efetivamente filtram informações e desse modo tornam inteligíveis e
manejáveis as opiniões em confronto. Do modo como a internet está
funcionando hoje, os únicos filtros usados são os dos algoritmos de
Google, Facebook e Twitter, que são especificamente desenhados para
prender a atenção dos internautas, independente da qualidade dos
conteúdos sugeridos. Desse modo, se as extravagâncias de Trump ou
Bolsonaro prendem a nossa atenção, serão deles as recomendações
promovidas de vídeos e leituras, independente do que dizem. O famigerado
Alex Jones, por exemplo, foi sugerido aos internautas do YouTube alguns
bilhões de vezes, antes de ser cancelado. Se tivesse de passar pelos
filtros tradicionais da imprensa e das universidades, jamais teria saído
de seu quase anonimato. O problema, portanto, não está no fato de ele
ter tido a possibilidade de se expressar livremente, mas no fato de ter
sido ativamente promovido bilhões de vezes para milhões de pessoas. Foi o
filtro informacional do YouTube e o monopólio da distribuição de
informações digitais por apenas três grandes empresas que produziu esse
fenômeno.
Esse
problema específico não tem como ser resolvido pela ampliação das
liberdades de expressão. Por isso, algumas pessoas vêm insistindo para
que as empresas da internet (sobretudo as três maiores: Google, Facebook
e Twitter) imponham elas próprias algum tipo de silenciamento
(“moderação” é o eufemismo mais usado) às opiniões consideradas
enganosas ou odientas. Isso aconteceu no início deste ano com Trump no
Twitter e com o canal bolsonarista Terça Livre no YouTube (que pertence à
Google). Mas enganam-se aqueles que vêm nesse fenômeno apenas o
merecido silenciamento de embusteiros de direita. Um dos primeiros sites
a sofrer as consequências da política de moderação do Google foi a
plataforma trotskista World Socialist Web Site.
Ao lado de diversos outro sites de esquerda, eles viram seu tráfego na
internet cair drasticamente nos últimos meses, o que os levou a
denunciar as práticas do Google como antidemocráticas (ver aqui e aqui).
Desse modo, voltamos ao problema do critério de seleção do que merece
ser filtrado e ao problema de quem deve ter o poder para escolher esse
critério. Então, se aceitamos a censura ou a moderação de conteúdos,
corremos sempre o risco de sermos nós próprios os silenciados mais
adiante.
Uma das poucas vozes a se pronunciar sobre esse problema específico tem sido a de Matt Stoller,
autor do livro Goliath. Stoller sustenta que a raiz dessa questão
situa-se não no excesso de opiniões, mas no concentração absoluta do
fluxo de informações em algumas poucas empresas. Com apenas três grandes
firmas dominando quase todo o mercado digital, os filtros de informação
implementados por cada uma delas têm impactos enormes e tendem a se
assemelhar, efetivamente impedindo a livre circulação de ideias.
Aparentemente qualquer um pode se expressar livremente, mas apenas uns
poucos são promovidos pelos algoritmos.
Matt Stoller |
Stoller defende (ver aqui)
que essas empresas sejam divididas e que leis sejam implementadas para
impedir que apenas umas poucas dominem o mercado das plataformas
digitais. Na sua opinião, se tivéssemos uma pluralidade de mecanismos de
filtragem de informações, poderíamos contornar o problema da cacofonia
de vozes sem prejuízo à liberdade de expressão. Num ambiente
informacional onde diversas plataformas competissem entre si, nenhuma
conseguiria ter o domínio e a influência que têm hoje as três grandes. É
o que vemos atualmente no mercado de empresas de podcasts, por exemplo,
que é bem mais aberto que o das redes sociais. Cada uma dessas empresas
de podcasts, usa seus próprios filtros e tem critérios diferentes para a
divulgação das gravações nelas postados, de tal modo que as vozes
particulares silenciadas em uma podem livremente se manifestar em
outras. Mas como todas essas empresas de podcasts usam filtros e o
número de empresas é grande mas não gigantesco, temos um conjunto
humanamente manejável de alternativas informacionais. Portanto, evita-se
o problema da cacofonia sem abrir mão da liberdade de expressão.
Essencialmente, essa solução apontada por Stoller é a mesma já empregada
no passado para impedir os monopólios nos veículos de imprensa
tradicionais (jornais e televisão). Do mesmo modo que a liberdade de
imprensa beneficia-se com a pluralidade de empresas jornalísticas, na
internet a liberdade de expressão beneficiar-se-ia com a diversificação
de plataformas digitais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário