Já são conhecidos os fatos sobre a responsabilidade do governo e de Bolsonaro. Fernando Gabeira para o Estadão:
A
instalação da CPI da pandemia inaugura uma nova fase na política,
embora não tenha efeito imediato sobre a crise sanitária em si.
Acompanhei muitas CPIs no passado, mas esta tem características
especiais. Não pede oposicionistas exaltados, muito menos documentos ou
testemunhas bombásticos. A singularidade desta investigação é a de
trabalhar com fatos conhecidos, que precisam apenas ser articulados e
documentados para que a responsabilidade do governo, especificamente a
de Jair Bolsonaro, fique muito clara.
Nesse
sentido, a experiência dos senadores envolvidos é um dado positivo,
porque, embora não se tenham destacado nesse gênero de trabalho, têm as
condições necessárias para suprir lacunas que ainda existem na
compreensão dessa tragédia humana.
Pela
experiência passada, tendo a pensar que uma CPI nunca produz resultados
jurídicos imediatos. De modo geral, seu impacto é político, as
consequências jurídicas seguem um curso necessariamente mais lento.
Foi
assim, por exemplo, com a CPI dos Sanguessugas. Ela derrotou a maioria
dos envolvidos nas eleições de 2006, porém quase nenhum deles chegou a
ser julgado nos anos que se seguiram.
Parece
que o plano de trabalho da comissão vai enfocar inicialmente a questão
das vacinas. É uma opção, porque nesse particular os erros repercutem em
vidas perdidas e Bolsonaro tem uma posição especial. Ele foi, segundo o
Le Figaro, o único presidente que resistiu às vacinas como instrumento
estratégico.
Inicialmente,
Bolsonaro flertou com o movimento antivacina, insinuando os perigos de
efeitos colaterais. Está gravado o famoso episódio em que mencionou a
possibilidade de o vacinado virar jacaré, de homem falar fino ou de
crescer barbas nas mulheres. Embora não tenha sido explícito, referia-se
às vacinas produzidas com a técnica de RNA mensageiro, especificamente
as da Pfizer e da Moderna. Nas redes bolsonaristas, afirmava-se até que
esse tipo de vacina iria alterar o DNA das pessoas.
Bolsonaro
também combateu a Coronavac, por causa de sua origem, a China, e de seu
intermediário no Brasil, o governador paulista, João Doria.
No
capítulo dos documentos, acaba de ser noticiado que Bolsonaro recusou
11 propostas de compra de vacinas. Quem não se lembra de sua arrogância:
o Brasil é um grande consumidor, os laboratórios têm de nos procurar?
Como se não bastassem essas indicações para o trabalho, houve uma
entrevista do ex-secretário de Comunicação do governo Fabio Wajngarten
revelando como a incompetência impediu a compra de vacinas da Pfizer no
momento em que foram oferecidas.
Isso
são apenas trilhas para um dos tópicos. O próprio governo enunciou 23
acusações para as quais prepara a sua defesa, numa espécie de
demonstração antecipada da própria culpa.
Outro
ponto que a CPI deve examinar é o episódio de Manaus, com quase três
dezenas de mortos por falta de oxigênio. O Ministério da Saúde sabia da
crise e a discutia desde dezembro do ano passado. Não soube antecipar-se
a ela e tentou caminhos equivocados, como o tratamento com
hidroxicloroquina.
Nesse
campo, a Polícia Federal (PF) já deve ter avançado um pouco, pois foi
aberto inquérito a partir de determinação do STF. A CPI certamente vai
munir-se desse material, mas seria interessante seguir um roteiro
próprio. A pressão sobre a PF é muito grande. Recentemente foi afastado o
delegado Alexandre Saraiva, por ter denunciado a cumplicidade de
Ricardo Salles com madeireiros ilegais.
Num
tema tão vasto, é preciso distinguir os erros que influem diretamente
na morte das pessoas e no seu sofrimento. Um deles é a incompetência em
abastecer o País de sedativos e relaxantes musculares, indispensáveis
para a intubação. Há documentos sobre esse desleixo.
O
episódio da hidroxicloroquina vai tomar semanas. Desde a importação dos
insumos da Índia e a escolha dos laboratórios do Exército para
processar a cloroquina até as campanhas abertas de propaganda de
Bolsonaro para o uso do remédio e os ofícios do Ministério da Saúde,
existe farto material, que se pode estender aos empresários que
possivelmente lucraram com esses medicamentos.
Na
impossibilidade de percorrer as duas dezenas de tópicos, limito-me a
lembrar um deles: a mortandade nas aldeias indígenas. Pouco discutida no
Brasil, é o que mais repercute no exterior, sobretudo nos processos
enviados ao Tribunal Internacional.
Esse
tema acabou no STF, que se incumbiu de obter do governo um
comportamento compatível com o dever de proteger as diferentes etnias. O
ministro Barroso tem tentado, mas seria bom ouvi-lo sobre o que não
conseguiu nesse campo. Naturalmente, os líderes indígenas devem ser
ouvidos e analisados os vetos de Bolsonaro a uma série de medidas que
originalmente se dedicam à proteção das aldeias durante a pandemia. Isso
também é documento.
Enfim,
é um trabalho tão longo que não consigo sintetizá-lo aqui. Como em
outras CPIs, o apoio da opinião pública será vital, mas nesta o
conhecimento do tema a qualifica para exigir um trabalho sério e
profundo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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