Se admitimos a persecução penal baseada apenas na intenção, estamos
legitimando a intrusão do Estado sobre as consciências individuais.
Editorial da Gazeta do Povo:
O ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot chocou o país ao
afirmar que, em 2017, chegou a entrar armado no prédio do Supremo
Tribunal Federal para matar o ministro Gilmar Mendes e depois
suicidar-se. O plano foi relatado por Janot em entrevista a veículos de
imprensa e também está presente no livro de memórias do
ex-procurador-geral, que acabou de ser lançado. “Foi a mão de Deus”,
disse Janot ao explicar por que o crime não ocorreu. A mão da Justiça,
no entanto, não foi tão benevolente. O ministro Alexandre de Moraes
cassou o porte de armas de Janot e determinou que ele não chegue a menos
de 200 metros de qualquer dos integrantes do STF, impedindo, ainda, seu
acesso a qualquer das dependências da corte. Além disso, Moraes ordenou
busca e apreensão nos endereços residencial e comercial do
ex-procurador-geral, com apreensão de armas, telefones celulares e
computadores.
Parte da decisão de Moraes é bastante razoável. Diante do relato do
ex-procurador-geral, que deixa evidente a animosidade entre os
personagens do episódio, faz sentido, como medida preventiva, impedir
que Janot se aproxime não apenas de Gilmar Mendes, mas de qualquer outro
membro da corte. Mesmo que no caso em tela a agressão não tenha sido
consumada, e nem mesmo tenha havido declarações que configurassem
ameaça, garantir uma distância segura entre o ex-procurador-geral e os
ministros é medida que visa à segurança de quem esteve a ponto de
tornar-se vítima, ao mesmo tempo em que não representa uma restrição
desproporcional ao direito de ir e vir de Janot. O mesmo raciocínio,
aliás, se aplica à suspensão do porte de arma. Mas a sensatez da decisão
termina aqui.
Ocorre que Alexandre de Moraes não se limitou a garantir a segurança
de Gilmar Mendes e de seus colegas de STF. Ao ordenar busca e apreensão
no escritório e na residência de Janot, o ministro deu início a uma
persecução penal baseada na mera declaração de que, um dia, o
ex-procurador-geral esteve disposto a cometer um homicídio. Este
procedimento se reveste de enorme gravidade, pois a mera intenção não
configura o crime em si, descrito no artigo 121 do Código Penal, e nem
mesmo se encaixa na descrição que o artigo 14, inciso II, do Código
Penal faz da “tentativa”, em que, “iniciada a execução, não se consuma
por circunstâncias alheias à vontade do agente” – afinal, foi Janot quem
desistiu de seu intento, mesmo tendo a arma já engatilhada, conforme
seu relato. Aliás, o artigo 15 trata justamente da desistência
voluntária do crime, afirmando que “o agente que, voluntariamente,
desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza
só responde pelos atos já praticados”; e, no caso do
ex-procurador-geral, nem mesmo os “atos já praticados” o incriminam.
Mesmo assim, diante um episódio tão surreal, cabe a pergunta: tudo o
que Janot efetivamente fez antes de desistir de cometer o crime já não é
suficiente para uma ação judicial? A ação foi premeditada, não foi
resultado do calor do momento. Ele foi armado ao STF (tendo permissão
para tal, dado o seu cargo), programou o encontro com Gilmar Mendes,
engatilhou a arma – isso não basta? Por mais grave que seja tudo isso, a
resposta é “não”. Se admitimos a persecução penal baseada apenas na
intenção, por mais próximo que se esteja de cometer o crime, estamos
legitimando a intrusão do Estado sobre as consciências individuais, que
ainda podem frear a pessoa até o instante fatal. Jogar o peso da Justiça
sobre alguém por admitir uma intenção criminosa não concretizada é
reproduzir, na vida real, a trama de Minority Report, o conto de Philip
K. Dick adaptado para o cinema por Steven Spielberg. No enredo, o
detetive John Anderton passa a ser perseguido pela polícia quando
mutantes com poderes premonitórios indicam que ele cometerá um
homicídio, ainda que no momento presente o policial nem esteja cogitando
assassinar ninguém.
Não há dúvidas de que Moraes sabe disso. Por isso, restou-lhe apenas
alegar “sérios indícios” de que Janot teria incorrido no artigo 286 do
Código Penal, que descreve a incitação ao crime. No entanto, o ministro
não explica como a mera descrição do desejo de matar um ministro do
Supremo poderia ser considerada incitação – seria preciso demonstrar que
Janot, ao externar essa intenção, estivesse buscando estimular alguém a
cometer o crime que ele mesmo desistiu de realizar. Pior ainda é o
recurso a artigos da Lei de Segurança Nacional que teriam sido violados
pelo ex-procurador-geral. De imediato, os artigos 26 e 27 se referem a
crimes cometidos contra presidentes dos poderes, o que não era o caso de
Gilmar Mendes em 2017; os artigos 22 e 23 tratam de “propaganda” ou
“incitação” do crime, o que Moraes não consegue demonstrar; e o artigo
18 descreve o ato de impedir “o livre exercício de qualquer dos poderes
da União ou dos estados”, o que Janot evidentemente não fez.
Como se já não fosse suficientemente grave a abertura de inquérito
para investigar intenções, em vez de crimes cometidos ou efetivamente
tentados, é preciso ressaltar que Moraes tomou sua decisão dentro do
infame Inquérito 4.781, aberto por ordem do presidente da corte, Dias
Toffoli, ao arrepio do devido processo legal, para investigar “fake
news” contra membros do Supremo. Isso demonstra que este inquérito, que
nem deveria existir, será usado para abranger qualquer conduta que os
ministros queiram nele incluir, mesmo que sem relação alguma com a
divulgação de notícias falsas.
É claro que o simples fato de um procurador-geral da República ter
cogitado a hipótese de matar um ministro do STF para “salvar a honra” da
família – segundo Janot, Mendes teria feito afirmações mentirosas sobre
a filha do procurador-geral – é sumamente grave e revela um
desequilíbrio que, se descoberto à época, inviabilizaria totalmente sua
atuação em cargo fundamental da República. E é função do Judiciário
garantir a segurança dos cidadãos diante de situações que colocam em
risco sua vida. Mas a tentativa de criminalizar a intenção de se cometer
um crime, ou o ato de tornar pública essa disposição, abre portas que
deveriam permanecer fechadas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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