Esta crônica não é sobre as alterações climáticas, mas sobre a técnica
discursiva de alguns ambientalistas. Sobre a idealização de um mundo
onde as massas prescindem de viver para que os escolhidos o façam. André
Abrantes Amaral, via Observador:
Greta Thunberg, a jovem sueca que tomou a atenção do mundo na sua
cruzada pelo clima, está prestes a terminar a sua travessia do
Atlântico. Fê-lo no Malizia II, um iate de Pierre Casiraghi, o neto do
Príncipe Rainier do Mónaco. O objectivo foi chegar à cimeira do clima da
ONU, que tem lugar em Nova Iorque, sem poluir o ambiente. Greta
Thunberg pretendeu mostrar que andar de avião é um dos muitos hábitos
que devemos perder para salvarmos a vida na Terra.
Não vou entrar na questão das alterações climáticas, assunto para o
qual não tenho nem conhecimentos nem qualificações. Não me cabe negar o
que não tenho meios para negar. O que pretendo é chamar atenção para o
que a mensagem de Greta Thunberg (e de outros ambientalistas) comporta
na vida da grande maioria das pessoas. Greta Thunberg não quer (verbo
que utiliza vezes sem conta nos seus discursos) que andemos de avião.
Presumo que queira que também não utilizemos o automóvel e outros
instrumentos de trabalho. E também que não comamos carne. Chegou mesmo a
convencer os pais que passaram a sentir culpa porque ao comerem carne estariam a roubar-lhe o futuro.
A tónica do discurso de Greta Thunberg é a acusação. Ela acusa as
gerações mais velhas explica que o faz porque a situação é grave. E
urgente. Quer mesmo que os mais velhos sintam o pânico que ela sente.
Aqui as pessoas condoem-se. O método é autoritário e idêntico ao
utilizado por muitas outras ideologias fascistas e comunistas: se não
concordarmos com eles somos imorais. E devemos sentir culpa por isso.
Devemos pagar por isso, quanto mais não seja através da vergonha. O que
está em causa em Greta Thunberg não são as alterações climáticas
(assunto grave que nos deve preocupar), mas o modo autoritário com que
esta rapariga de 16 anos, isenta de uma culpa que ela própria menciona,
se dirige às pessoas que, de acordo com os termos por ela definidos, se
comporta de forma condenável.
É certo que o discurso de Greta Thunberg contém uma intensidade
explicada pela síndrome de Asperger. Uma intensidade que tem o condão de
alertar para um tema importante, mas que devia ser enquadrado por
líderes políticos que parece terem perdido o bom senso (ou ganharam
receio de o demonstrar). Uma intensidade que não devia ser explorada por
alguns ambientalistas. Até porque o extremismo ambiental implica um
empobrecimento generalizado das populações e uma discriminação que se
julgava ultrapassada. Nesse ponto de vista as fotografias tiradas durante a viagem de travessia do Atlântico
são reveladoras. Ali está Greta Thunberg, num barco a caminho de Nova
Iorque, lado a lado com a jovem elite europeia. Algo que o comum dos
mortais não pode, nunca poderá fazer. Uma viagem a Nova Iorque que,
reduzindo-se as viagens de avião e com o consequente aumento dos preços,
a grande maioria de cada um de nós deixará de fazer. Já nem todos
vivemos como Pierre Casiraghi, no mundo dos ambientalistas mais
acirrados, somente os ricos ou os muito bem relacionados conseguirão
viajar. Um mundo em que os ricos e os poderosos, à semelhança do que
sucedia no século XIX, poderão viajar sem se misturarem com as massas,
viverem num mundo à parte e longe das gentes que só têm de se sacrificar
para que a Terra seja devidamente usufruída por eles. Um mundo onde
apenas os ricos ou bem relacionados conseguirão viajar para locais sem
muitos turistas porque o turismo massificado terá os dias contados.
E não haverá lugar ao sentimento de culpa entre os poderosos e os bem
relacionados. Na verdade, e à semelhança do que sucedia com as
indulgências que se compravam a Roma, a desculpa adquire-se com uma
transferência monetária a favor de um qualquer fundo ou empresa
ambiental. Foi este o argumento utilizado por Elton John na defesa de Meghan e Harry
quando estes se deslocaram quatro vezes em 11 dias num jacto
particular: na medida em que os princípes se preocupam com ambiente,
Elton John quis compensar a poluição causada nas suas viagens com um
donativo para a Carbon Footprint Ltd,
uma empresa que investe em projectos que visam reduzir a pegada de
carbono. Está feito. Haja quem possa. Nesta nova religião (que não é a
preocupação com o ambiente, mas a instrumentalização cínica de um
assunto sério e grave) o alívio espiritual já não reside em Roma, mas
numa página na internet. Diga-se que aqui a verdadeira omnipresença foi
devidamente conseguida.
Claro que as viagens são o menos. O combate a uma alimentação
completa, que inclui o consumo de carne, é muito mais grave. Não porque
grande parte de nós que vivemos no Ocidente não deva comer menos carne,
mas porque a exigência para que o deixemos de fazer por completo é
absurda e perigosa. Principalmente para aqueles que não têm meios para
comprarem (por meio de transferências monetárias para fundos e empresas
ambientais) o direito a comerem devidamente.
Nunca é demais repetir que esta crónica não é sobre as alterações
climáticas. Limita-se a uma reflexão sobre a técnica discursiva de
alguns ambientalistas. Sobre como o cuidado que todos devemos ter na
perseveração da vida na Terra não pode ser tomado por visões extremistas
com pessoas de primeira e de segunda categoria. Sobre como se o bom
senso não prevalecer e adoptarmos o modo de vida que Greta Thunberg nos
impõe (por via da culpa) uns viverão em pleno, mas a grande maioria
limitar-se-á a sobreviver. A viagem marítima de Greta Thunberg pode ser
louvável, mas também se pode revelar trágica.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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