Um ensaio do filósofo britânico Roger Scruton
Sempre que a visão ocidental de ordem política prevalece, encontramos
nela a liberdade de expressão: não apenas liberdade de discordar com os
outros publicamente sobre assuntos de fé e moralidade, mas também
liberdade de satirizar e ridicularizar o que é formal e o que
consideramos bobagem, incluindo a formalidade e as bobagens sagradas.
Essa liberdade de consciência requer um governo secular. Mas o que torna
um governo secular legítimo?
Essa questão é o ponto de partida da filosofia política ocidental,
sendo que o consenso entre os pensadores contemporâneos é o de que a
soberania e a lei são legitimadas pelo consentimento daqueles que devem
obedecê-las. Eles demonstram esse consentimento de duas formas: por meio
de um “contrato social” explícito ou implícito, no qual todas as
pessoas concordam com os princípios do governo; e por um processo
político no qual as pessoas participam da elaboração e aplicação da lei.
O direito e dever de participação estão, ou deveriam estar, no termo
“cidadania”, e a diferença entre as comunidades religiosa e política
pode ser resumida na ideia de que as comunidades políticas são compostas
por cidadãos e as comunidades religiosas são compostas por súditos – no
sentido de “aqueles que se submetem”. Para quem quer uma definição
simples de Ocidente hoje em dia, o conceito de cidadania é um bom ponto
de partida. É isso o que milhões de imigrantes ao redor do mundo buscam:
uma ordem que prometa segurança e liberdade em troca de consentimento.
É isso o que as pessoas querem; mas não é isso o que as faz felizes.
Falta algo a uma vida baseada apenas no consentimento e no trato educado
com nossos vizinhos – algo de que os muçulmanos têm uma imagem forte
nas palavras do Corão. Essa coisa que nos falta tem vários nomes: senso,
sentido, objetivo, fé, irmandade, submissão. As pessoas precisam de
liberdade, mas elas também precisam de um objetivo pelo qual possam
renunciar a essa liberdade. Essa é a ideia por trás da palavra “islã”: a
disposição, sem volta, de se submeter.
É claro que as conotações do mundo são diferentes para os que falam
árabe e os que falam turco, malaio ou bengali. Os turcos, que vivem sob a
lei secular surgida do sistema legal da Europa pós-napoleônica, não
estão muito dispostos a pensar que, como muçulmanos, eles devem viver
num estado de submissão contínua a uma lei divina que governa toda a
vida social e política. Os 20% de muçulmanos que são árabes, contudo,
sentem que o ritmo hipnotizante do Corão é uma corrente inquebrável de
compulsão e se sentem aptos a levarem o “islã” ao pé da letra. Para
eles, esse ato específico de submissão talvez signifique renunciar não
apenas à liberdade, mas também à própria ideia de cidadania. Isso talvez
envolva recuar do diálogo aberto do qual a ordem secular depende e
mergulhar na “sombra do Corão”, como disse o teórico islâmico Sayyid
Qutb num livro assustador que desde então têm inspirado a Irmandade
Muçulmana.
A cidadania não é exatamente uma forma de irmandade, do tipo que
surge de um ato compartilhado de submissão sincera: é uma relação entre
estranhos, uma distinção coletiva na qual a realização e o sentido estão
restritos à esfera privada. Ter criado essa forma de solidão renovável é
a grande realização da civilização ocidental e minha forma de
descrevê-la levanta a questão se vale a pena defendê-la e, se sim, como.
Vale a pena defender o Ocidente?
Minha resposta é sim, vale a pena defende, mas somente se
reconhecermos que o conflito atual com o islamismo enfatiza uma verdade:
a de que a cidadania não basta e só vai se manter se for associada a um
sentido ao qual a geração ascendente possa atrelar suas esperanças e
sua busca por identidade.
Não há dúvida de que a ordem secular e a busca por um sentido
coexistiram amigavelmente enquanto o Cristianismo deu seu apoio benigno a
ambos. Mas (sobretudo na Europa), o Cristianismo se retirou da vida
pública e hoje tem se retirado também da vida privada. Para as pessoas
da minha geração, durante ao tempo pareceu que poderíamos redescobrir o
sentido da vida na cultura. As tradições artística, musical, literária e
filosófica da nossa civilização abrigam tantos sinais de importância
mundialmente transformadora que elas bastavam – achávamos – para que se
transmitisse essas coisas adiante. As novas gerações herdariam, por meio
de tais tradições, as fontes espirituais de que precisavam.
Mas ignorávamos dois fatos importantes: primeiro, a segunda lei da
termodinâmica, que nos diz que, sem acréscimo de energia, toda ordem se
desfaz; e depois a ascensão do que chamo de “cultura do repúdio”, quando
aqueles indicados para acrescentar energia ao sistema começaram a se
cansar e por fim abandonaram a bagagem cultural sob o peso da qual
fraquejaram.
Essa cultura do repúdio foi transmitida, por meio da imprensa e das
escolas, a todo o território espiritual da civilização Ocidental,
deixando para trás uma sensação de vazio e derrota, uma sensação de que
nada resta no que acreditar e apoiar, exceto a liberdade para crer. Isso
estimula a hesitação, não a convicção, e o medo, não a coragem de se
fazer escolhas. Não é de se surpreender que tantos muçulmanos em nossas
cidades hoje considerem a civilização que os cerca como algo fadado ao
fracasso, mesmo sendo ela a civilização que lhes legou algo que eles
talvez não encontrassem nos lugares onde sua religião triunfa, isto é, o
domínio livre, tolerante e secular da lei. Isso porque eles foram
criados num mundo de certezas; ao redor deles, eles só encontram
dúvidas.
Se o repúdio ao passado e identidade é tudo o que a civilização
Ocidental tem a oferecer, ela talvez não sobreviva: ela cederá a
qualquer coisa que a civilização futura possa oferecer em matéria de
esperança e consolo aos jovens e para satisfazer a profunda necessidade
humana de identificação social. A cidadania, como a descrevi, não
satisfaz essa necessidade: por isso tantos muçulmanos a rejeitam,
buscando consolo na irmandade (ikhwan) que, com frequência, é vista como
o objetivo dos renascimentos islâmicos. Mas a cidadania é uma
realização que não podemos ignorar se o mundo moderno pretende
sobreviver: prosperamos com base nela, encontramos nela paz e
estabilidade e, além disso, ela – mesmo não nos tornando felizes – nos
define. Não podemos renunciar a ela sem deixarmos de existir.
Não precisamos rejeitar a cidadania como a base da ordem social, e
sim conferir um coração a ela. E, na busca por esse coração, deveríamos
nos afastar do multiculturalismo ressentido que tem arruinado a
autoconfiança ocidental e recorrer às dádivas que recebemos de nossa
tradição judaico-cristã.
As dádivas do perdão e da ironia
A primeira dessas dádivas é o perdão. Ao vivermos num espírito de
perdão, não só evocamos o valor essencial da cidadania como também
encontramos o caminho para o senso de comunidade de que tanto
precisamos. A felicidade não surge da busca pelo prazer, nem tampouco é
garantida pela liberdade. Ela surge do sacrifício: essa é a mensagem que
todas as obras memoráveis da nossa cultura expressam. A mensagem se
perdeu no ruído do repúdio, mas podemos ouvi-la novamente se nos
dedicarmos a recuperá-la. E, na tradição judaico-cristã, o principal ato
de sacrifício é o perdão. Quem perdoa sacrifica o ressentimento e,
portanto, renuncia a algo que estimava de todo o coração.
O Corão invoca o tempo todo a misericórdia, a compaixão e a justiça
de Deus. Mas o Deus do Corão não é um Deus leniente. Em suas
manifestações no Corão, Deus perdoa esparsamente e com uma óbvia
relutância. Ele claramente não gosta nada das falhas e fraquezas humanas
– na verdade, Ele não gosta de nada. O Corão, ao contrário da Bíblia
hebraica ou do Novo Testamento, é um livro sem espaço algum para a
diversão.
Isso nos leva a outra das dádivas da nossa civilização: a ironia. Já
há um quê de ironia na Bíblia hebraica que o Talmude amplifica. Mas um
novo tipo de ironia predomina nas parábolas de Jesus, uma ironia que
olha para o espetáculo das fraquezas humanas e que zombeteiramente nos
mostra como conviver com elas. Um exemplo é o veredito de Cristo no caso
da mulher adúltera: “Aquele que não tiver pecado que atire a primeira
pedra”. Em outras palavras: “Deixe disso! Vocês nunca quiseram fazer o
que ela fez nem jamais fizeram isso em pensamento?”
Há quem sugira que a história foi posteriormente inserida na Bíblia –
uma das muitas que os primeiros cristãos usaram de toda a sabedoria
oral atribuída ao Redentor depois de Sua morte. Mesmo que seja verdade,
contudo, isso apenas confirma a ideia de que a religião cristã fez da
ironia algo fundamental para usa mensagem. Foi um cristão iluminista
atormentado, Søren Kierkegaard, quem apontou a ironia como uma virtude
que unia Sócrates e Cristo.
O filósofo Richard Rorty via a ironia como um estado mental
intimamente conectado à visão de mundo pós-moderna – um afastamento da
crítica que ainda assim buscava uma espécie de consenso, uma
concordância em não julgar. O temperamento irônico, contudo, é mais bem
compreendido como virtude – uma disposição que tem como objetivo uma
espécie de realização prática e sucesso moral. Aventurando-me a definir
essa virtude, eu a descreveria como o hábito de reconhecer a estranheza
de tudo, incluindo de si mesmo. Por mais convencido que você esteja da
correção de suas ações e da verdade de suas opiniões, analise-as como
ações e opiniões de outra pessoa e as reformule.
Por essa definição, a ironia é algo bem diferente do sarcasmo: é uma
forma de aceitação, e não uma forma de rejeição. Ele também aponta para
dois caminhos: por meio da ironia, aprendemos a aceitar tanto o outro,
para o qual volto meu olhar, quanto a mim mesmo, que o estou olhando.
Com todo o respeito a Rorty, a ironia não está isenta de crítica: ela
simplesmente reconhece que aquele que julga também é julgado, e julgado
por si mesmo.
A herança democrática do Ocidente se origina, e este é meu argumento,
do hábito do perdão. Perdoar o outro é dar a ele, de todo o coração, a
liberdade de ser. É, portanto, reconhecer os indivíduos como alguém que
tem soberania sobre a própria vida e que é livre para fazer o certo e o
errado. Uma sociedade que abre espaço para o perdão, pois, tende
automaticamente à democracia, uma vez que ela é uma sociedade na qual a
voz do outro é ouvida em todas as decisões que o afetam. A ironia – o
reconhecimento e a aceitação do caráter alheio – amplifica a tendência
democrática e também ajuda a conter a mediocridade e conformidade que
são os limitadores de uma cultura democrática.
O perdão e a ironia estão na essência da nossa civilização. Eles são
nossos maiores orgulhos e nosso principal meio de desarmar nossos
inimigos. Eles dão sustentação ao nosso conceito de cidadania como algo
fundamentado no consentimento. E o perdão e a ironia se manifestam na
nossa concepção das leis como um meio de resolver conflitos encontrando a
solução mais justa para eles. Nem sempre se percebe que esse conceito
jurídico tem pouco em comum com a sharia, que é considerada um sistema
de ordens dadas por Deus e impossíveis de serem justificadas.
Os mandamentos de Deus são importantes para os cristãos e judeus
também, mas eles não são vistos como suficientes para o bom governo da
sociedade humana. Eles têm de ser complementados por outro tipo de lei,
um tipo que reaja aos conflitos humanos em transformação. A parábola do
imposto deixa isso muito claro (“Dai, pois, a César o que é de César, e a
Deus o que é de Deus.”), assim como a doutrina papal das duas espadas –
as duas formas de lei, humana e divina, das quais o governo depende.
A lei aplicada em nossos tribunais exige que as partes se “submetam”
apenas à jurisdição secular. Ela trata cada uma das partes como um
indivíduo responsável agindo livremente. Essa característica da lei tem
destaque especial na mente dos povos anglófilos, cujo sistema de lei
comum consiste de liberdades – garantidas ao cidadão pelo Estado – que o
Estado deve garantir. A sharia consiste de obrigações impostas por Deus
e que os tribunais devem aplicar. É uma forma de garantir a “submissão”
à vontade de Deus revelada no Corão e na Suna.
O terrorismo e a busca pelo sentido
Qual a situação dessas ideias hoje? Como a evocação dos aspectos mais
profundos da nossa herança judaico-cristã nos ajuda a reagirmos à
ameaça imposta pelo terrorismo islâmico e como podemos chegar à
necessária reconciliação com o Islã sem a qual nossa herança política
continuará em perigo?
Terrorismo e islamismo se tornaram sinônimos na cultura popular e,
como reação a isso, analistas bem-intencionados defendem que não há nada
de novo no terrorismo e que não há nada no Islã que leve os fiéis a
praticá-lo. Não foram os jacobinos da Revolução Francesa que pariram o
monstro? O terrorismo não encontra justificativa política no niilismo
russo do século XIX que seria adotado pelos movimentos radicais ao longo
do século XX?
A reação faz sentido, mas ela nos leva a explorarmos a questão mais
profunda da motivação. O que leva as pessoas a usarem o terrorismo? Ele é
usado, como sugerem os defensores, como tática? Ou é escolhido como um
fim em si? A partir de certa perspectiva, parece plausível associar o
terrorismo contemporâneo ao Iluminismo, à ideia de igualdade e ao
comportamento ressentido que Nietzsche acertadamente identificava na
essência das comunidades modernas – o desejo de destruir o sonho alheio
ao vê-lo nas mãos de outra pessoa.
Mas tal diagnóstico ignora o fato de que o terrorismo, como
tipificado pelos niilistas russos e registrado em nome deles, não tem
relação nenhuma com um objetivo. Às vezes os terroristas – bolcheviques,
IRA e ETA – conferem a si mesmos uma causa, fazendo-nos acreditar que,
com a instauração de uma “ditadura do proletariado”, de uma Irlanda
unida e de um Estado nacional basco, seus objetivos serão alcançados e
eles poderão baixar as armas. Mas a causa é geralmente vaga e utópica, e
essa não-concretização parece parte do argumento deles – uma forma de
justificar a renovação constante da violência.
Os terroristas podem ser igualmente rebeldes sem qualquer causa ou
podem se dedicar a uma causa tão vaga e metafisicamente expressa que
ninguém (a não ser eles mesmos) é capaz de acreditar no sucesso dela. Os
niilistas russos, tal qual Dostoievski e Turgenev os descrevem, eram
assim. Também eram assim a Brigada Vermelha italiana e a Baader-Meinhof
alemã da minha juventude. Como demonstra magistralmente o historiador
Michael Burleigh em Blood and Rage [Sangue e fúria], o terrorismo
contemporâneo se interessa muito mais pela violência do que por qualquer
coisa que ele possa alcançar por meio dela. Isso está claro no
professor de Joseph Conrad em O Agente Secreto, que faz um brinde à
“destruição de tudo o que existe”.
O caráter vago ou utópico da causa é, portanto, uma parte importante
do apelo do terrorismo, já que isso quer dizer que a causa não o define
nem tampouco limita a ação. A causa está à espera de um sentido dado
pelo terrorista, que não quer mudar o mundo, e sim a si mesmo. Para
matar alguém que nunca o ofendeu nem fez algo que mereça castigo você
tem de acreditar que está usando uma espécie de qualquer de manto
angelical de justificação. Daí você começa a ver as mortes como uma
demonstração de que você é mesmo um anjo. Sua existência obtém sua prova
ontológica definitiva.
Os terroristas buscam a exultação moral, uma noção da existência que
vai além do veredito humano, emanado por uma suposta permissão dada por
Deus. Esse tipo de terrorismo, em outras palavras, é uma busca pelo
sentido da vida – o mesmo sentido que a cidadania, concebida em termos
abstratos, é incapaz de dar. Até mesmo em sua forma mais secular, o
terrorismo envolve uma espécie de ambição religiosa.
É muito difícil matar a inocente Maria da Silva e seus filhos que
estão fazendo compras. Daí porque essa estratégia de construção de
identidade não pode simplesmente começar com o desejo por matar. A Maria
da Silva tem de ser transformada em outra coisa – num símbolo de uma
condição abstrata, numa espécie de encarnação de um inimigo universal.
Os terroristas contemporâneos, portanto, tendem a usar doutrinas que
tiram o caráter humano das pessoas que têm por alvo.
As teorias marxistas servem bem a esse propósito, já que elas criaram
a ideia de uma burguesia, de uma “classe inimiga” que, na ideologia
bolchevique, exerceu a mesma função que os judeus tiveram para os
nazistas. A Maria da Silva e seus filhos estão por trás do alvo, que é a
família burguesa abstrata. O fato é que, quando a bomba atinge esse
alvo fictício, os fragmentos o atravessam facilmente e atingem o corpo
real da dona Maria da Silva. Infelizmente para os Silva, você muitas
vezes encontrará terroristas fazendo uma defesa abstrata do ato, dizendo
que eles não tinham culpa pela morte da dona Maria e que as pessoas não
deveriam se esconder atrás de alvos daquela forma.
A violência como forma de transcendência
O terrorismo islâmico é estimulado, de certa forma, pela mesma e
conturbada busca por sentido e a mesma necessidade de se pôr acima de
suas vítimas numa postura de expiação transcendental. Ideias de
liberdade, igualdade e direito histórico não têm influência no
raciocínio deles e eles não estão interessados no poder e nos
privilégios de seus alvos. As coisas deste mundo não têm valor para eles
e, se eles às vezes buscam o poder, é só porque o poder permite que
eles estabeleçam um reino de Deus – objetivo que eles, como todos nós,
sabem ser impossível e, portanto, interminavelmente renovável diante do
fracasso. O desleixo deles quanto à vida alheia é comparável ao desleixo
deles quanto à própria vida. A vida não tem valor específico para eles;
a morte os assombra constantemente no horizonte. E, na morte,
encontramos o único sentido que importa: a transcendência final deste
mundo e da responsabilidade para com os outros que este mundo exige de
nós.
Pessoas inoculadas pela cultura do repúdio, relutantes em
reconhecerem a busca por sentido como algo universalmente humano, tendem
a pensar que todos os conflitos são políticos e tratam de quem tem
poder sobre quem. Elas estão dispostas a acreditar que a causa do
terrorismo islâmico está na “injustiça social” contra a qual os
terroristas protestam e que o fracasso de todas as tentativas de
solucionar o problema torna os métodos deles necessários. Para mim, isso
parece ignorar completamente a motivação do terrorismo em geral e
sobretudo do islamismo.
O terrorista islâmico, assim como o niilista europeu, está
interessado sobretudo em si mesmo e em sua condição espiritual, e ele
não deseja realmente mudar as coisas num mundo ao qual ele não pertence.
Ele quer pertencer a Deus, não ao mundo, e isso significa dar seu
testemunho da lei e do reino de Deus destruindo tudo o que se põe em seu
caminho, incluindo seu próprio corpo. A morte é seu ato máximo de
submissão: por meio da morte, ele se dissolve numa irmandade nova e
imortal. O terror da sua morte exalta o mundo da irmandade e ao mesmo
tempo desfere um golpe devastador contra o mundo rival dos estranhos, no
qual a cidadania, não a irmandade, é o princípio de união.
Por isso deveríamos reconhecer que enfrentamos um novo tipo de
ameaça, um tipo que não têm objetivos limitados nem negociáveis, que não
podemos enfrentar por meio do confronto militar e que os meios normais
são incapazes de deter. Não há nada que possamos oferecer aos muçulmanos
e que permita que eles digam que alcançaram o objetivo. Se eles
conseguissem destruir uma cidade do Ocidente com uma bomba nuclear ou
toda um povo com um vírus mortal, eles considerariam isso um triunfo,
por mais que isso não gerasse nenhum benefício material, político ou
religioso.
A perda da ironia
Claro que a maioria de muçulmanos comuns ficaria chocada com um
acontecimento desses e consideraria o assassinato em massa do tipo
perpetrado pela Al-Qaeda como um absurdo absolutamente proibido pela lei
de Deus. E há indícios interessantes de que intelectuais muçulmanos
estão tentando encontrar uma forma de se comprometer publicamente com a
coexistência entre as outras duas religiões abraâmicas e garantir o amor
entre vizinhos, por mais que o vizinho tenha outra fé. Veja a carta de
2007 para os líderes religiosos do Ocidente, assinada por 150 notáveis
muçulmanos, pedindo o diálogo entre as fiés e citando o respeito mútuo
como a base da coexistência. Mas devemos notar dois fatos importantes.
O primeiro é que o Islã nunca conseguiu estabelecer uma fonte
decisiva de autoridade religiosa. Todos os líderes espirituais são
autoproclamados, como o Aiatolá Khomeini, e não têm credibilidade fora
de seu círculo de seguidores. As pessoas geralmente dizer que é uma pena
que o Islã não tenha passado por uma Reforma Protestante. Na verdade,
essa é uma interminável série de reformas protestantes, cada qual se
dizendo a única verdade em se tratando da obediência do homem a Deus.
O segundo fato importante – em conexão, acredito, com o primeiro – é
que os muçulmanos demonstrar uma incrível capacidade de dar as costas
para as atrocidades cometidas em nome da sua fé e de protestar contra
qualquer um que condene essas atrocidades. Os famosos desenhos
dinamarqueses causaram revolta, unindo muçulmanos de todo o mundo em
atos de destruição e ameaças de vingança. Alguns dias mais tarde, a
mesquita al-Askari, em Samarra, um dos locais mais sagrados para os
xiitas, foi explodida por terroristas. Mas onde estavam os manifestantes
fora do Iraque? Mais muçulmanos do que não-muçulmanos foram mortos
pelos terroristas islâmicos. Mas quando é que aqueles que dizem falar
pelos muçulmanos mencionam essa estatística? Vale dizer que os infames
desenhos queriam que víssemos as atrocidades cometidas em nome do
Profeta. Ele aprova ou não isso?
Os muçulmanos precisam encarar essa questão. Mas uma moral dupla com
raízes profundas os impede de direcionar contra seus companheiros
muçulmanos a mesma raiva virtuosa que direcionam contra os inimigos da
sua fé. Essa moral dupla é resultado direto da perda da ironia. Ela tem
origem na incapacidade de aceitar o caráter alheio de tudo, de se
colocar de fora das próprias opiniões e até da própria fé, de ver isso
como a fé de outra pessoa. Não que o islamismo sempre tenha abdicado da
ironia neste sentido: as obras dos mestres sufi são cheios dessa ironia.
Mas os mestres sufi (estou pensando especificamente em Rumi e Hafiz)
pertencem àquela incrível e reconhecível cultura islâmica à qual os
terroristas deram as costas, preferindo o ódio rasteiro de Ibn
Abd-al-Wahhab ou a enganadora nostalgia da Irmandade Muçulmana e Sayyid
Qutb.
Confronto existencial
O confronto com o qual nos deparamos não é político nem econômico;
tampouco é o primeiro passo rumo a uma negociação ou a um pedido de
desculpas. Trata-se de um confronto existencial. A pergunta é: “Que
direito temos de existir?” Ao respondermos “Nenhum”, abrimos brecha para
a resposta “Foi o que eu pensava”. Uma resposta só pode conter uma
ameaça se encará-la de cima para baixo; e isso significa estar
completamente convencido de que temos, sim, o direito a existir e que
estamos preparados para conferir o mesmo direito aos nossos oponentes,
mas só se a concessão for mútua. Nenhuma outra estratégia tem a mais
remota chance de ser bem-sucedida.
A Al-Qaeda pode estar enfraquecida; a conspiração para destruir o
Ocidente pode ser apenas ficção criada pelos neoconservadores, que por
sua vez podem ser apenas ficção criada pelos progressistas. Mas a ameaça
não vem de uma conspiração ou de uma organização. Ela vem de indivíduos
passando por uma experiência traumática que não conseguimos compreender
totalmente – a experiência do muçulmano expatriado em confronto com o
mundo contemporâneo e sem o benefício das duas dádivas do perdão e
ironia. Essa pessoa é um subproduto imprevisível de circunstâncias
incompreensíveis e inesperadas, e todo o nosso esforço para compreender
sua motivação até aqui foi incapaz de sugerir uma medida que detivesse
os ataques.
Qual, portanto, deve ser nossa posição nesse confronto existencial?
Acho que deveríamos dar ênfase às grandes virtudes e realizações que
construímos em nosso legado de tolerância e demonstrar certa disposição
em criticar e curar todos os males aos quais nossa tolerância deu um
espaço indevido. Deveríamos recuperar a diferença lockeana entre a
liberdade e a licenciosidade e deixar claro para nossos filhos que a
liberdade é uma forma de ordem, não uma licença para a anarquia e a
autoindulgência. Deveríamos deixar de rir das coisas que eram
importantes para nossos pais e avós, e deveríamos ter orgulho do que
eles fizeram. Isso não é arrogância, e sim um reconhecimento de nossos
privilégios.
Deveríamos, ainda, abandonar a embromação multicultural que tanto tem
confundido a vida pública no Ocidente e reafirmar a ideia essencial da
filiação social na tradição ocidental, isto é, a ideia de cidadania. Ao
disseminar a mensagem de que acreditamos no que temos estamos preparados
para compartilhar isso, mas não para vê-lo destruído, fazemos a única
coisa que podemos fazer para neutralizar o conflito atual. Como o perdão
está na essência da nossa cultura, essa mensagem deve ser o bastante,
mesmo que estejamos dizendo isso sob a influência da ironia. (Gazeta do Povo).
Roger Scruton é escritor e filósofo. Este ensaio foi adaptado de uma palestra na Universidade de Calgary.
© 2019 City Journal. Publicado com permissão. Original em inglês.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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