O “Bolsonaro que fala” e que ainda se apega a pequenos atos que não têm
mais lugar no Brasil de hoje precisa subir ao nível do “Bolsonaro que
faz”, aquele que tem trabalhado pelo país. Editorial da Gazeta do Povo:
Quando se trata de consertar o enorme estrago causado por mais de uma
década de lulopetismo e de colocar o Brasil no rumo certo sob vários
pontos de vista, o governo de Jair Bolsonaro tem feito propostas
importantes e conseguido bons resultados. A reforma da Previdência já
passou por seu primeiro teste no plenário da Câmara dos Deputados,
embora ainda precisa de mais uma votação naquela casa e da tramitação
normal no Senado; microrreformas como a MP da Liberdade Econômica vêm
para tornar o ambiente de negócios muito mais amigável ao empreendedor; o
acordo comercial entre Mercosul e União Europeia finalmente foi
assinado; nos fóruns multilaterais, o Brasil abandonou o viés altamente
ideologizado do passado e tem defendido com força a vida e a família,
enquanto sinaliza a permanência do país no Acordo de Paris, uma
importante ferramenta na questão climática.
Se, nos grandes temas da vida nacional e da inserção brasileira no
mundo, o “Bolsonaro que faz” tem feito um grande bem ao país,
infelizmente o “Bolsonaro que fala” não tem conseguido o mesmo
resultado. O estilo sem papas na língua que fez a fama do então deputado
federal é endossado e elogiado por muitos de seus apoiadores, mas o
presidente tem cruzado com bastante insistência, e de forma muito
preocupante, os limites entre uma desejável sinceridade e a ofensa pura e
simples, ou a compreensão equivocada a respeito das prerrogativas de
seu cargo e das liberdades democráticas. E, junto com as palavras,
pequenas ações acabam perpetuando velhos vícios da política nacional.
Tomemos, por exemplo, o caso do uso de um helicóptero da Força Aérea
Brasileira para o transporte de convidados para o casamento do deputado
federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, em maio deste
ano. Apesar da alegação do Gabinete de Segurança Institucional de que se
tratava de “zelar pela segurança do presidente (...), bem como de seus
familiares”, fica bastante evidente que estamos diante de um caso de uso
de recursos públicos para atender a interesses particulares,
especialmente porque, até onde se sabe, o próprio Bolsonaro não estava
na aeronave. Ainda que o noivo seja um parlamentar e filho do presidente
da República, o casamento continua a ser um evento privado, e desta
forma deveria ter sido tratado, sem onerar o pagador de impostos.
No entanto, Bolsonaro disse não pensar desta maneira. Questionado
sobre o tema por uma jornalista na sexta-feira passada, o presidente
chamou a pergunta de “idiota” e, com menos de um minuto, deu por
encerrada uma entrevista coletiva. No dia seguinte, falou sobre o
episódio: “Eu vou negar o helicóptero e mandar ir de carro?”, afirmou.
Ora, a questão não é o meio de transporte, mas quem paga por ele. Sendo o
casamento um evento privado, o correto seria que a família bancasse o
deslocamento, fosse por via terrestre ou aérea, e assim estaria mantido o
saudável princípio da impessoalidade, que faz a distinção entre a
esfera pública e a esfera particular. O patrimônio público, mantido com o
dinheiro do contribuinte, não existe para financiar ações privadas dos
detentores de mandato ou cargos públicos.
Bem sabemos que o patrimonialismo, a confusão entre público e
privado, persiste na vida nacional: em 2007, a pesquisa publicada pelo
sociólogo Alberto Carlos Almeida no livro A cabeça do brasileiro mostrou
que 17% dos entrevistados concordavam com a afirmação “se alguém é
eleito para um cargo público, deve usá-lo em benefício próprio, como se
fosse uma propriedade”. Mas este é um mal que precisamos extirpar da
prática política brasileira, e infelizmente Bolsonaro não contribui para
essa necessária moralização quando autoriza e defende este tipo de
benefício a um filho – especialmente um filho que já está no centro das
atenções devido a outra acusação de favorecimento, envolvendo a nomeação
para a embaixada brasileira nos Estados Unidos.
À recaída no patrimonialismo e à defesa explícita dessa prática
somou-se, na segunda-feira, a insensibilidade pura. “Um dia, se o
presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no
período militar, conto pra ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”,
afirmou Bolsonaro sobre Felipe Santa Cruz – o pai de Felipe, Fernando
Augusto Santa Cruz de Oliveira, foi preso por agentes do DOI-Codi e
desapareceu em 1974, quando o atual presidente nacional da OAB tinha 2
anos. O presidente fez a afirmação depois de reclamar da atuação da
entidade durante as investigações do atentado que Bolsonaro sofreu
durante a campanha de 2018 – em janeiro deste ano, a OAB mineira foi à
Justiça para impedir que um dos advogados de Adélio Bispo de Oliveira
fosse obrigado a revelar quem estava pagando por seus serviços.
Santa Cruz e Bolsonaro são desafetos desde os tempos em que o atual
presidente era deputado federal, e o presidente da OAB agiu de forma
claramente inapropriada dias atrás, quando chamou o ministro Sergio Moro
de “chefe de quadrilha”. É direito de Bolsonaro acreditar que a OAB
estava tentando atrapalhar investigações. Mas usar um doloroso episódio
familiar para responder ao presidente da OAB ultrapassa os limites da
urbanidade e do debate civilizado. Se Bolsonaro quer levantar um debate
sobre desaparecidos políticos ou sobre os trabalhos da Comissão da
Verdade, tem toda a liberdade para fazê-lo – são discussões importantes
que agradariam uma parcela significativa da sociedade. Mas não era este o
caso; a menção a Fernando Santa Cruz foi tirada da cartola única e
exclusivamente para atingir pessoalmente o presidente da OAB. Ao agir
dessa forma, Bolsonaro levou a discussão para um nível rasteiro,
demonstrando completa falta de empatia e explorando a memória de pessoas
que nada têm a ver com o atentado ou com as supostas mensagens de Moro.
Não se trata, evidentemente, de endossar a visão segundo a qual
estamos diante de um ditador enrustido que sonha em trazer de volta o
autoritarismo ao Brasil. Nem queremos cair no extremo oposto de
considerar que os acertos do presidente justificam ou atenuam suas
declarações e ações problemáticas – pois é exatamente o que elas são.
Mostram que Bolsonaro ainda não compreendeu totalmente seu papel de
presidente de todos os brasileiros, não entendeu ainda a importância de
uma imprensa totalmente livre, continua lidando mal com as críticas, e
não percebeu que o vale-tudo verbal não é uma tática válida no debate
público. Ser sincero e ir direto ao ponto são qualidades necessárias na
esfera pública; mas Bolsonaro ainda precisa aprender que elas não são
compatíveis com o desrespeito aos demais ou com o uso de tragédias
familiares como argumento – além disso, nem toda a sinceridade do mundo,
ainda que polida, pode justificar a persistência de práticas como o
patrimonialismo. O “Bolsonaro que fala” e que ainda se apega a pequenos
atos que não têm mais lugar no Brasil de hoje precisa subir ao nível do
“Bolsonaro que faz”, aquele que tem trabalhado pelo país.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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