Os portugueses lúcidos, coitados, padecem da esperança de que os
portugueses restantes acordem para as delícias da liberdade. Sucede que
para os simplórios a liberdade não é deliciosa: é uma ameaça. A
debochada crônica de Alberto Gonçalves, via Observador:
E há o Estado a realizar sondagens eleitorais a funcionários públicos
com dinheiro e logística igualmente públicos, na presunção,
provavelmente justificada, de que tudo o que nos confiscam pertence aos
gangues que se apoderaram disto. E há o governo, um governo
habituadíssimo a silenciar dissidências, a ameaçar com a tropa qualquer
esboço de insubordinação que não seja organizado por estalinistas. E há
os estalinistas, os leninistas, os carteiristas e os fascistas afins a
calarem os resmungos hipócritas a troco de poder, e da licença para que
estendam o seu manto escuro sobre nós. E há a vasta e densa rede de
corrupção que os socialistas instalaram por aí, plena de devoção aos
valores da família, da amizade e do descaramento em geral. E há as
vítimas do sagrado serviço nacional de saúde, que felizmente morrem em
recato. E há os milhões que não se gastam a combater doenças gastos em
negociatas, compadrios, golas de poliéster e “impulsos” para a
“concretização” da “igualdade de género”. E há os incêndios, cuja
dimensão e recorrência deveriam denunciar as inúmeras fraudes
subjacentes, e que, em vez disso, concedem uma oportunidade para culpar
as “alterações climáticas”, os eucaliptos e a “direita”. E há as
televisões repletas de propaganda, agora tão escancarada que já permite
um programa chamado, sem ponta de ironia ou amargura, “I Love Portugal”.
E há “a geração mais informada de sempre”, que do alto de uma admirável
ignorância simpatiza com o PAN ou com o BE como noutros tempos menos
informativos alinharia na juventude fardada que estivesse à mão. E há
uma economia alicerçada no saque rápido e na irresponsabilidade lenta,
que cumpre, um por um, os requisitos essenciais à nova bancarrota que se
aproxima. E há benefícios fiscais, e uns trocos para a camioneta, aos
emigrantes que abandonem as Alemanhas e as Inglaterras e regressem a
esta maravilhosa experiência venezuelana. E há o belo sorriso do dr.
Costa, representativo de milhares de sorrisos assim, próprios de quem
manda e, melhor, de quem sabe que manda sob completa impunidade. E há
uma oposição que abdicou de desempenhar o papel por sonhar em mandar
também, um bocadinho pequenininho que seja. E há, nos “media” e nos
gabinetes, resmas de serviçais de segunda e terceira linhas amestrados
para a exaltação dos chefes. E há um ex-animador televisivo, hoje
rebaixado a presidente, que confessa experimentar “gozo espiritual” por o
país ser “um sucesso”, e já não “uma incógnita e uma dúvida”.
Se cada um vai buscar o gozo onde calha, a verdade é que o país nunca
constituiu uma incógnita ou suscitou dúvidas: o país é isto. E isto não
caiu do céu, nem sequer subiu dos infernos. Isto é o que temos e somos,
é a nossa natureza e, para usar uma palavra horrível, a nossa
“identidade”. Portugal, meus caros concidadãos, não dá para mais. Dá
para bola. Subsídios. Enchidos. Bola. Wi-Fi. Ecopontos. Bola. Via Verde.
Netbanco. Bola. Grândolas. Parlapatice. Bola. Fundos europeus.
Fundilhos paroquiais. Bola. Festivais. Chefs. Bola. Praia.
Proactividade. Bola. Romarias. Sol (que é tão bonito). Bola. Rendimentos
mínimos. Rendimentos máximos. Bola. Cabeçudos. Barrigudos. Bola.
Rotundas. Penduricalhos. Bola. Comes. Bebes. Bola. Activistas.
Ambientalistas. Bola. Irreverência. Reverência. Bola. Certames.
Multiusos. Bola. E indiferença, até gozo, espiritual ou não, em ser
enxovalhado pelos laparotos que se apoderaram deste curioso cantinho
porque quiseram, e sobretudo porque puderam.
Aos poucos, convenço-me de que não se trata de acaso. Existe nos
portugueses uma genuína propensão para chafurdar na fancaria, apreciar a
fancaria, fazer da fancaria um roteiro e uma “agenda”. Claro que o lixo
abunda em toda a parte. Em quase toda a parte, porém, não faltam
alternativas ao lixo, enclaves de civilização ou vigor ou graça que
resistem ao obscurantismo e à boçalidade. Aqui, porém, o lixo parece
avançar sem obstáculos. Parece o verdadeiro desígnio colectivo.
Parecemos estúpidos. Seremos? Embora não seja adepto de teorias da
conspiração, que são a História contada por pantomineiros, acontece
questionar-me se, há largos séculos, os illuminati da época não
conspiraram para reunir tontinhos, masoquistas e desequilibrados em
geral num território a que chamaram Portugal. A ideia era estudar-nos,
mas ainda não conseguiram parar de rir.
É evidente que muitos portugueses não são idiotas. O problema é que
mesmo a maioria dos portugueses lúcidos acredita, não imagino porquê,
que a desgraça actual é provisória, e que tivemos um passado luminoso e
teremos um futuro redentor. Os portugueses lúcidos, coitados, padecem de
saudade e, pior, de esperança, a esperança de que os portugueses
restantes, com o pescoço na trela e o olhar no chão, acordem para as
delícias da liberdade, essencial à vida adulta. Sucede que para os
simplórios a liberdade não é deliciosa: é uma ameaça ou, no mínimo, um
risco escusado. Enquanto brincam no recreio, os simplórios gostam que
alguém tome conta deles. Com sorte, e uns arremedos de manha, um dia
eles tomarão conta de nós. É preciso dar exemplos?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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