Ainda comentando o novo livro da filósofa e historiadora Gertrude
Himmelfarb lançado no Brasil, o professor Luiz Bueno ressalta o alerta
feito pela pensadora norte-americana: "chegamos a admitir, da boca para
fora, que as ideias têm consequências, mas que apenas levamos isso a
sério quando nos deparamos com ideias de um Stalin ou de um Hitler, que
produzem consequências extremas como os gulags e os campos de
concentração. Jamais se deveria perder de vista a relação íntima e
difusa entre as ideias geradas na academia, ou por intelectuais e
artistas, e aquilo que acontece na sociedade e na política":
Em seu livro Ao Sondar o Abismo, recentemente publicado no Brasil
pela É Realizações, a historiadora e filósofa norte-americana Gertrude
Himmelfarb, que foi objeto de meu artigo anterior,
demonstra uma preocupação com as consequências que as ideias produzidas
por intelectuais, na academia ou em suas obras publicadas, produzem na
sociedade real.
No artigo anterior, chamei a atenção para a noção de imaginação moral
e ressaltei o risco de que, no campo da produção acadêmica, assim como
no jornalismo, houvesse o abandono da objetividade em favor de uma das
modas intelectuais recentes, que é a da narratividade. Tudo seria apenas
uma questão de qual narrativa consegue se impor em uma determinada
situação.
Uma preocupação similar é trazida à tona pela autora no tocante à
produção nos campos da filosofia e da história. Aqui como lá, as
consequências não são menos graves.
Ela demonstra isso ao refletir, inspirada em Lionel Trilling, “sobre a
arrogância intelectual e o empobrecimento espiritual de algumas das
últimas tendências da crítica literária, da filosofia e da história”.
Este empobrecimento aparece na forma especialmente da filosofia da
desconstrução, que à época em que a pensadora produziu sua crítica,
estava em alta nos círculos intelectuais. O fato de não se falar tanto
mais da desconstrução não significa que seus efeitos não estejam
presentes até hoje. Isso pode ser constatado, diz a autora, em críticos
literários e filósofos “para os quais não há realidade, apenas
linguagem; não há filosofia, mas tão somente jogos mentais; não há
moralidade, apenas retórica e estética”.
Fazendo referência à expressão de Nietzsche de que se pode olhar para
dentro do abismo, mas que o abismo também pode olhar para dentro de
nós, Himmelfarb aponta alguns autores que parecem ter olhado para o
abismo – do relativismo e do niilismo – e terem considerado
“interessante” o que viram.
O alerta que Himmelfarb faz é que chegamos a admitir, da boca para
fora, que as ideias têm consequências, mas que apenas levamos isso a
sério quando nos deparamos com ideias de um Stalin ou de um Hitler, que
produzem consequências extremas como os gulags e os campos de
concentração. Jamais se deveria perder de vista a relação íntima e
difusa entre as ideias geradas na academia, ou por intelectuais e
artistas, e aquilo que acontece na sociedade e na política. Ela lembra,
dentre outros, de Richard Rorty, o pragmatista norte-americano, que
inferira da filosofia de Heidegger que “os temas tradicionais da
filosofia (como Moralidade e Metafísica) deveriam ser
abordadosludicamente, irresponsavelmente e que só um metafísico pedante
acredita em tais coisas como verdade e realidade”. Achar Heidegger um
filósofo “interessante”, como o fez Rorty, seria consequência de sua
atitude estetizante e relativizante para com a filosofia, fruto do
niilismo inerente ao seu pragmatismo. Este niilismo poderia subverter
até mesmo as bases morais mínimas que sustentariam a sua democracia
liberal, juntamente com “as outras noções pedantes acerca da verdade,
moralidade e realidade”.
Esta intensa discussão foi proposta por Himmelfarb nos anos 1990, mas
continua sendo apropriada para nossa época e mesmo aqui em nossas
terras brasileiras. Recentemente, houve uma discussão levada a cabo
através de dois artigos publicados no jornal Folha de São Paulo nos
quais os autores debatiam a questão do lugar de autoridade
histórico-social para se falar de certos temas no âmbito político. Este
“lugar de autoridade” é mais conhecido como “lugar de fala”. O primeiro
artigo faz uma crítica a este comportamento argumentando que se tem
confundido a necessidade e o direito de certos grupos de ter voz no
campo da política, dada sua situação histórica particular de exclusão do
debate público, com uma autoridade exclusiva destes grupos para tocar
nos temas que lhes são próprios, sendo que aos outros atores sociais
faltaria a autoridade e legitimidade para falar de, em nome de, ou para,
estes grupos. O articulista afirma que não se propôs a fazer uma
análise teórica do caso mas indica que o único lugar de fala que tem
autoridade quando o tema é conhecimento e reflexão é o da
“universalidade racional”. Este seria o contraponto à noção de que o
direito conferiria autoridade exclusiva: quando se trata de
racionalidade, não há exclusividade, mas o seu exato oposto, a
universalidade, sob pena de se perder exatamente o caráter “racional” do
argumento.
O artigo que apresenta a réplica concorda com o problema de que,
prevalecendo esta lógica, o resultado seria uma “balcanização” da
produção teórica, isto é, que apenas os membros de cada grupo poderiam
teorizar sobre si mesmos, tendo ainda como consequência associada o
“pleno cerceamento da liberdade de investigação”. Podemos inferir as
consequências desta afirmação. Então, se é assim, se apenas os membros
de um determinado grupo tem autoridade (não se excluindo o seu “direito”
à fala), então, por exemplo, seria correto dizer que somente um
religioso poderia investigar a religião? Jamais um pesquisador ateu ou
um agnóstico poderia se debruçar sobre este objeto e produzir
conhecimento sobre ele? Por outro lado, jamais poderia o religioso
investigar as razões do ateísmo e se pronunciar sobre este? Poderia um
médico do gênero masculino investigar doenças ou atender pessoas do
gênero feminino? Uma pessoa do gênero feminino que atue na psicologia
teria autoridade para investigar cientificamente ou atender em sua
clínica os casos e pacientes do gênero masculino? Poderia uma pessoa do
gênero masculino, como foi John Stuart Mill, refletir sobre e mesmo
defender o direito das mulheres ao voto, como ele fez no século XIX?
Seria legítima a discussão da ‘masculinidade tóxica’ feita no mesmo
jornal por pensadoras do gênero feminino? O leitor já entendeu o tamanho
e a extensão do problema.
Bem, se o segundo artigo concorda com este aspecto do problema
proposto pelo primeiro, por outro lado, defende o argumento do lugar de
fala como sendo uma conquista alcançada no plano político para dar voz a
grupos que teriam sido impedidos de se pronunciar tanto na sociedade
quanto na própria academia. Isto exigiria, de acordo com o segundo
artigo, que se produzisse aquilo que o primeiro não teria feito, isto é,
uma análise teórica para se entender o problema em tela. E aí está o
ponto em que o argumento se torna problemático. O segundo artigo acusa
que há uma “estranha disjunção entre narrativa, testemunho e produção de
conhecimento”. O argumento é de que a racionalidade universal apontada
pelo primeiro como único lugar de autoridade, na verdade, oculta que o
sujeito que produz o conhecimento é localizado no tempo e no espaço,
portanto, sujeito histórica e socialmente condicionado pelos valores de
sua cultura e de sua posição na sua sociedade. Portanto, seguindo este
argumento, a racionalidade dita universal seria, desta forma, apenas o
recurso de autoridade dos intelectuais brancos e masculinos para se
manter no poder na academia. Isso significa, portanto, que a
racionalidade não é universal; ela é particular a cada grupo ou mesmo
indivíduo, uma vez que o que está sendo produzido é poder político e não
o conhecimento em si.
É aí onde o problema emerge. Se racionalidade significa um tipo de
reflexão compreensível, pois racional é aquilo que é acessível à razão
humana e que é construído segundo regras lógicas inerentes à própria
natureza da inteligibilidade do conhecimento e, precisamente por este
motivo, não é dependente do indivíduo que o produz, deve-se perceber que
a narrativa ou o discurso de autoridade ou mesmo o direito de fala, por
sua vez, não têm caráter epistemológico, mas apenas político. Se o que é
produzido é chamado de “conhecimento” e este é “racional”, então,
aquela disjunção é, em verdade, necessária. Se o que se está chamando de
“conhecimento” não é racional ou é alguma forma de narrativa, então,
forçosamente, já não é mais conhecimento no sentido estrito, talvez
opinião, crença, motivação política, etc.; neste caso, por conseguinte,
deve-se admitir a referida conjunção.
Uma universalidade de origem ou natureza política é, na realidade,
fruto de algum tipo de autoritarismo ou totalitarismo. Um universalismo
de caráter racional (mantendo-se a hipótese de que é possível se
alcançar alguma verdade racional, portanto, universal), é resultado da
produção de conhecimento inteligível e acessível -segundo, por exemplo, a
perspectiva kantiana- a qualquer ser dotado da faculdade da razão. É
debate de longa data a questão da universalidade do conhecimento ou da
verdade, algo profusamente e profundamente debatido entre filósofos e
pensadores de todas as partes no mundo e já há um longo tempo, mas, o
fato mesmo de que haja um debate é prova de que a racionalidade é o
terreno comum que permite haver um confronto de ideias e argumentos e
que estes são inteligíveis a todos as partes. Se um determinado
conhecimento não é admitido como universal, a razão, instrumento do
debate e da análise, esta sim é. Ela é o instrumento comum, a base sobre
a qual se dá o debate e aquilo que se produz nesse âmbito é reconhecido
pelas partes, independentemente de quem, onde ou quando se tenha
produzido a conclusão do argumento racional.
A racionalidade é o fundamento da própria noção de ciência, um
conhecimento inteligível por qualquer indivíduo humano. O conhecimento
produzido no âmbito das ciências, dada sua estrutura racional, para ser
admitido como científico, deve ser capaz de prescindir de qualquer
dependência epistemológica do indivíduo que o produz pois, para sua
produção, devem ser utilizadas regras lógicas e metodologias
verificáveis e inteligíveis por todos os demais cientistas, sob pena de
deixarem de ser estruturas argumentativas racionais e tornarem-se
artigos de fé ou opinião ou equivalente. Estes conhecimentos não são
erigidos fundamentando-se em uma determinada narrativa política. No
momento que em que a racionalidade for definida por uma narrativa, por
interesse ou necessidade de um determinado grupo, trata-se ainda de
ciência? A natureza racional do conhecimento não admite dependência
alguma do sujeito que fala. A autoridade política não confere autoridade
epistemológica a argumento algum.
Note-se que a discussão da autoridade epistemológica não elimina nem
substitui o campo da discussão política. Isto é uma outra dimensão do
presente problema. A questão que aqui se coloca é a refutação da
universalidade da razão sob o argumento de que ela é a razão de um
grupo. Se a o direito à voz vale como argumento para quando a questão é
política e, portanto, cada voz deve ser ouvida em sua particular
experiência social, cultural, histórica – e nesse sentido, o “lugar de
fala” tem legitimidade-, ele é inapropriado para abordar a razão em seu
âmbito epistemológico, no qual o caráter de universalidade de seus
argumentos provém exatamente da sua lógica interna, de sua
inteligibilidade, de sua impessoalidade, de ser acessível a qualquer ser
dotado da faculdade racional, de seu método de reflexão e investigação,
etc.
Se a razão for a de um determinado grupo e não houver qualquer
universalidade nela, e portanto, aquilo de se que diz ser “racional”
trata-se apenas da narrativa produzida por grupo, sobre qual base se
poderia sustentar, por exemplo, o conceito de que alguém tenha “direito”
a alguma coisa? Que é isso, um “direito”? Apenas um argumento de um
grupo defendido segundo a sua narrativa particular? Se é assim, por que
um outro grupo deveria dar qualquer atenção a quem clama por “direitos”
iguais em uma democracia a não ser por livre decisão sua baseada em suas
preferências ou interesses próprios? “Democracia”? Que é isso? E a
igualdade? Que narrativa de qual grupo produziu essa ideia? Por que
deveria alguém dar a menor atenção a estas ideias – direito, igualdade,
democracia-, já que se poderia recusá-los pelo simples argumento de que
se originariam em outro grupo de interesse e em suas narrativas
particulares?
É preciso fazer clara a distinção entre o que são os argumentos que
procuram encaminhar e avançar pautas políticas, os quais têm sua
legitimidade própria, separando-os do âmbito da reflexão racional que
busca o conhecimento verdadeiro, inteligível, compreensível e acessível a
todos por ser produzido por uma racionalidade cuja universalidade é
índice de sua acessibilidade a toda as mentes humanas, e não pela
opinião ou por um determinada narrativa delimitada no tempo e no espaço e
que, no limite, pode ser até mesmo incompreensível e mesmo inaceitável
por outros grupos pelo simples fato de representarem interesses ou
necessidades particulares. A fala política é, de fato, localizada no
tempo e no espaço. Mas, a racionalidade como tal, não. Os argumentos
racionais expostos por Platão continuam sendo racionais, mesmo tendo
eles sido enunciados por um grego há mais de dois mil anos atrás. O
mesmo para Agostinho, o africano, para Descartes, o francês, para Hannah
Arendt, a alemã. O conhecimento racional é, por definição, universal -o
que não implica que seja irrefutável, mas a refutação também é
racional, impessoal, lógica e não apenas política. A produção, a posse e
o uso do conhecimento, podem não ser universais, sendo um bem cujo
acesso é tornado restrito. Mas é preciso distinguir as duas coisas. A
própria sociologia da ciência mostra como se dá o processo de produção
social do conhecimento científico. Mas, o processo social de produção
não é o que determina a racionalidade do conhecimento produzido, mas,
sim, sua lógica interna, seu método, sua inteligibilidade bem como sua
exposição e submissão à crítica e refutação de todos os que a esta
tarefa se dedicarem. Uma vez vencida a barreira imposta socialmente, o
conhecimento mostra sua universalidade uma vez que é inteligível por
qualquer ser racional.
É preciso sustentar politicamente o argumento de que há vozes não
ouvidas nas nossas sociedades e que, de fato, podemos não compreender
adequadamente suas reivindicações por não estarmos sujeitos às mesmas
condições de vida e exclusões históricas daqueles que as expressam. Mas,
outra coisa é dizer que a sua autoridade é exclusiva e que ninguém mais
pode se pronunciar sobre aquilo que se refere à sua condição e sua
vida. Se é assim, a vítima mais importante em todo esse processo é,
precisamente, a empatia, a capacidade de nos colocarmos no lugar do
outro da melhor maneira melhor possível. A construção de soluções
políticas comuns torna-se praticamente impossível, o que é exatamente o
oposto do interesse dos grupos que compõem uma sociedade. Se o que se
quer são soluções comuns, e não o contínuo isolamento dos muitos grupos
em suas próprias fronteiras, em seus espaços sociais cada vez mais
exíguos, é preciso reconhecer que a racionalidade e a empatia
estabelecem as pontes para as causas compartilhadas.
A acusação de que a racionalidade universal, ou o universalismo
racional, não passam de argumentos de autoridade usados por alguns para
sustentar sua posição de poder, eliminando seu caráter epistemológico e
convertendo tudo em retórica política, é uma forma extrema de
relativização da razão e de eliminação da possibilidade da busca de
verdades racionais com validade universal. O efeito disso é o da perda
da possibilidade da aquisição de conhecimentos válidos para todo ser
racional, conhecimentos que são compartilháveis precisamente por serem
acessíveis à razão humana comum. Construções racionais do campo da ética
e da filosofia política como “direitos”, “igualdade”, “democracia”,
simplesmente perderiam discernimento e tornar-se-iam inúteis pois seriam
incompreensíveis fora do círculo social no qual teriam se originado. Um
prejuízo evidente para todos.
Enfim, o alerta deixado por Gertrude Himmelfarb, de que estamos
jogando com a relativização da reflexão em um grau tal que precisamos
avaliar muito bem o que estamos de fato produzindo, continua ressoando
em alto e bom som. Não são apenas ideias que estão sendo emitidas,
propagadas e discutidas. É preciso estar sempre ciente que elas produzem
consequências concretas, as quais estão ou estarão diante de nós mais
cedo ou mais tarde. (Estado da Arte).
Luiz Bueno é professor de Filosofia
na FAAP. Doutor em Ciências da Religião pela PUC-SP. Coordenador do
Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política, Comportamento e
Mídia-LABÔ da FUNDASP/PUC-S
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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