O estuprador é, em vários níveis, a ralé da ralé da espécie humana, e a
culpa de todo estupro é sempre dele, do estuprador. Disto não podemos
jamais nos esquecer. Coluna de Carlos Ramalhete, via Gazeta do Povo:
Após o assassinato de um inocente, provavelmente o crime mais
asqueroso é o estupro. Isto é assim por ser o estupro uma perversão
completa de uma das coisas mais valiosas para o ser humano neste mundo,
quando não a mais valiosa: o amor, especialmente o amor conjugal. O
estupro é o ato de arrancar publicamente o que deveria ser fruto e raiz
íntimos, intimíssimos, de uma relação de amor. É a substituição de uma
lógica de amor por uma lógica de posse: para o estuprador, estuprar é
literalmente “possuir” aquela mulher que não se lhe entregou por querer.
O que deveria ser uma entrega íntima e amorosa por parte da mulher é
substituído por um esbulho brutal da intimidade da vítima, por uma
violência física e psicológica (deste lado muita gente boa infelizmente
esquece) que dificilmente teria como ser pior.
O estuprador é, em vários níveis, a ralé da ralé da espécie humana, e
a culpa de todo estupro é sempre dele, do estuprador. Disto não podemos
jamais nos esquecer.
No primeiro, e mais evidente destes níveis, trata-se de uma pessoa
que não tem nem sequer interesse em conter seus próprios instintos mais
primitivos, colocando-se assim voluntariamente abaixo de um animal;
afinal, animais não têm mente racional, e por isso não têm escolha: são
sempre governados por seus instintos. O estuprador, destarte, é por
definição um idiota que se deixa levar pela própria lubricidade.
Além disso, trata-se de alguém que não reconhece a dignidade do
próximo, de alguém que trata como coisa quem na verdade é pessoa. Ora,
não reconhecer a dignidade do próximo é algo que só pode acontecer com
alguém que não reconhece a própria dignidade, ou pelo menos não tem lá
muita certeza dela. Afinal, reconhecemos no próximo o que temos em nós.
Assim, o estuprador não se percebe perfeitamente como pessoa; ele é para
si mesmo uma genitália ereta com punhos e pernas, o que certamente
ajuda a explicar a razão pela qual ele se deixa levar completamente
pelos seus desejos lúbricos e violentos. A violência, diga-se de
passagem, é outra marca do estuprador, ou ao menos da maior parte deles.
Alguns poucos apelam para uma “esperteza” sórdida, que os leva a dopar
suas vítimas, transformando-as em bonecos de carne maleáveis, sem
personalidade, mas com formas, calor e buracos humanos. A maior parte
desses criminosos, contudo, simplesmente ignora a personalidade da
vítima, usando da força física (que via de regra é muito maior no homem
que na mulher) ou de ameaças para saciar-se com aquela carne
despersonalizada.
Isto tudo mostra que o estuprador é, primordialmente, alguém que joga
fora o seu pertencimento à comunidade social humana, abandonando-o em
prol de instantes de um prazer literalmente arrancado de uma pessoa
inocente, como um canibal que arrancasse um bife da perna de um passante
para o almoço. Ele se percebe sozinho no mundo e dotado de direitos
absurdos sobre esse mundo despersonalizado, em que suas vítimas em
potencial são percebidas apenas como carne quente que pode saciar seus
desejos mais sórdidos. Ele é um criminoso, e do pior tipo de criminoso.
Do professor tarado que dopa deficientes mentais e físicos para se
servir deles ao tarado que passa meses acostumando uma pobre criança a
ele e a seus desejos cada vez mais absurdos; desses ao criminoso comum
que, cometendo um assalto, aproveita para “roubar” a dignidade de uma de
suas vítimas, muitas vezes fazendo-o diante da família e excitando-se
mais com a situação; chegando, então, ao parente que cria dentro da
própria casa escravos sexuais, transformando o que deveria ser um lar
numa sucursal do Inferno. Todos esses são monstros, são culpados, sem
sombra alguma de dúvida.
Mas de onde mais, além da pura maldade tão facilmente perceptível,
vem isso? Há quem atribua todo estupro a uma suposta “cultura do
estupro” decorrente de um patriarcalismo que, aliás, já praticamente
acabou. Estes percebem apenas uma mudança de grau, não de essência,
entre o “fiu-fiu” do operário e o depravado que rasga a tenra carne duma
criança com seus ataques, aleijando-a para toda a vida. Isso me parece
francamente absurdo. Há, sim, elementos culturais e sociais que ajudam
na criação de estupradores. Estes, infelizmente, cresceram loucamente
nas últimas décadas, o que ajuda a explicar o que parece ser um aumento
nos casos deste asqueroso crime tantas vezes subnotificado.
Dentre estes fatores contamos indubitavelmente em primeiro lugar,
disparado, a pornografia, por ser um mecanismo de dessensibilização à
personalidade. A pornografia ensina a olhar as pessoas como postas de
carne morna e móvel dotada de interessantes buracos e protuberâncias,
desprovidas de personalidade, que servem apenas para proporcionar
prazeres venéreos ilusórios (na medida em que nenhuma relação conjugal
real corresponderá aos delírios com que o viciado em pornografia encheu a
imaginação). O viciado em pornografia estaria muito mais à vontade
diante de um robô sexual, como parece aliás já existir, que diante de
uma pessoa que o ame. O que ele considera sexo não tem nada a ver com
amor, não tem nada a ver com intimidade, não tem nada a ver, em suma,
com a situação em que o ato seria perfeitamente ordenado. Ele só concebe
o sexo desordenado, que foi treinado para apreciar. Passar dessa visão
distorcida à prática do estupro, assim, é um pequeno pulo. Não digo que
seja uma diferença apenas de grau, na medida em que o componente de
violência física, ameaça ou abuso de drogas não é decorrência direta da
pornografia, sendo apenas muito facilitado por ela. Mas a pornografia é a
escola do estupro.
O segundo problema é a facilidade ilimitada de um sexo casual tratado
como necessidade de todos. A revolução sexual prega que sexo é uma
forma de diversão, em quase nada diferente de, sei lá, jogar bola, mas
ao mesmo tempo algo necessário como beber água. Assim, há uma enorme
quantidade de pessoas que saem à noite com o objetivo manifesto de ir
para a cama com alguém. Afinal, é uma diversão apenas, não é mesmo? E
faz até mal não recorrer a ele, dizem! O único problema que poderia
ocorrer seria engravidar ou pegar uma doença venérea, e é para evitar
isso que serve a camisinha. Deixando de lado o fato de que a famosa
camisinha não é tão eficaz assim, podemos perceber nesta cultura do sexo
casual um desrespeito básico àqueles que se há de tomar como parceiros.
Só para começar, a tal da camisinha é uma barreira de borracha que
grita “não quero nada com você, não quero que se misturem nossas
sementes”. Além disso, a própria ideia de sair de casa com uma camisinha
no bolso já mistura e bate num liquidificador mental e moral todas os
possíveis parceiros sexuais da noitada. Nenhum deles é uma pessoa, em
última instância, e cada um deles será medido por sua forma física e
pouco mais.
E aí começa o problema mais sério no que diz respeito a estupros, que
é o fato de que a moça ou o rapaz de forma física impecável consegue
rapidamente um parceiro, enquanto o feio ou fora de forma não o
consegue. E muitos destes, furiosos ao ver, noite após noite, sempre os
mesmos outros saindo acompanhados do bar enquanto ele mesmo volta
sozinho, são frequentemente quem acabará por apelar à violência, por
considerar-se no “direito” de, eles também, ejacular dentro de alguém. É
um falso, falsíssimo direito, mas como provar isso quando a prática da
noitada parece indicar outra coisa? Como pode o bonitão sair com sua
camisinha e voltar sem ela, enquanto o feioso – que se percebe como em
nada ficando atrás do bonitão – volta com ela noite após noite, até que
acabe seu prazo de validade? A frustração de uma expectativa francamente
absurda, mas tratada como natural, só pode levar a um sentimento de
frustração geral, que acaba vitimando inocentes.
Outro problema sério é a confusão feita por muitas moças entre estar
sexualmente apelativa e estar bonita. Lembro-me de uma vez em que
cheguei a ficar constrangido com a (falta de) roupa escolhida por uma
familiar de minha esposa para sairmos juntos aos casais, à noite, num
lugar quente. A moça – que não era feia – queria usar uma espécie de
faixa que lhe tampava os bicos dos seios e a genitália e não muito mais.
Minha esposa, vendo o quanto aquilo me constrangia, convenceu-a a usar
algo mais decente. Para a mulher, expor-se como se fosse uma peça de
picanha no açougue é algo degradante, e é justamente esta confusão entre
a beleza e a exposição de carne quente que cria na cabeça dos mais
pervertidos o desejo do estupro. Notem que não estou botando a culpa na
pobre moça, que é uma vítima de um problema social grave. A exposição do
corpo feminino e a confusão entre a sensualidade baixa e a beleza é
algo que ela aprende da tevê, das fotografias que encontrava há uns anos
nas revistas e hoje vê no Instagram etc. As moças simplesmente estão
seguindo uma moda – como moças sempre fizeram ao longo da história de
nossa espécie; moças e modas sempre andaram juntas – que as degrada, sem
que consigam perceber a degradação justamente por perceberem aquilo
como apenas uma moda, e assim confundirem sua transformação em alcatra
com uma exposição ordenada de sua beleza. Mas o fato é que o homem, que é
um ser predominantemente visual, percebe esse tipo de exposição de uma
maneira muito diferente da da mulher. Via de regra, a moça é
absolutamente incapaz de entender o efeito que sua apresentação como
alcatra tem sobre a libido masculina, o que gera uma situação em que os
sinais se perdem e são mal-interpretados, situação extremamente perigosa
para ela. Assim, desfilar alcatramente à rua, especialmente à noite e
em lugares mais desertos e menos iluminados, é, a seu modo, como sair
com alguma outra coisa valiosíssima (ainda que nada seja tão valioso
quanto a dignidade feminina, que o estuprador visa roubar): um relógio
caríssimo, joias de ouro e pedras preciosas, o que for. É um risco
sério, que a moça no mais das vezes não percebe. Ela é como um
estrangeiro que sai à rua numa capital brasileira com uma máquina
fotográfica cara, um telefone idem, um relógio caríssimo etc., tudo à
mostra, por nunca ter andado por um lugar em que a criminalidade fosse
um risco real.
E, finalmente, o derradeiro culpado cultural do estupro, o último
problema social que permite àquela ínfima minoria de depravados, que
sempre houve e sempre haverá (assim como sempre houve e sempre haverá
uma ínfima minoria de santos, de gênios, de deficientes mentais etc.),
atingir e violentar a dignidade de suas vítimas: o desaparecimento
cultural do cavalheirismo e da civilidade. Esta é uma virtude que
consiste em ver-se como parte da civis, da organização social que a
todos une, ou deveria unir. O liberalismo individualista eliminou esta
virtude, e assim transformou a maioria das pessoas em indivíduos
desprovidos de laços com a comunidade como um todo. Assim, não apenas o
estuprador se sente à vontade – como ser solitário que ele é, como vimos
acima – para atacar como uma fera noturna a vítima que passa, mas
ninguém se sente na obrigação de impedir tais ataques. A resposta
imediata a eles deveria ser dada pelo cavalheirismo, que deveria fazer
com que quase todos os rapazes vissem sua força física como estando à
disposição da civis e, mais ainda, de todo o sexo feminino. Há alguns
anos seria inimaginável que um depravado ejaculasse na orelha de uma
moça num transporte público; hoje, para nossa vergonha, quando isso
ocorre – e não é raro! – os demais ocupantes do carro fingem que não
viram nada. Isso é falta de civilidade da parte de todos, claro que
especialmente do depravado – o único culpado individual no caso –, e
falta de cavalheirismo dos rapazes. Se algo assim acontecesse quando eu
tinha 20 anos de idade, no primeiro “ai” da moça o sujeito já estaria no
chão, a caminho da delegacia de polícia mais próxima.
Mas hoje os rapazes fingem não ter nada com isso. Ficam horas na
frente do espelho admirando as bolinhas que lhes cresceram nos braços às
custas de dúzias e mais dúzias de ovos deglutidos e sei lá quantas
horas perdidas levantando ferros, mas, quando uma moça inocente pede
socorro, para eles é como se nada acontecesse. É uma vergonha, uma
tristeza, e um elemento social que dá aos mal-intencionados a certeza de
poderem agir impunemente. Afinal, a polícia não está em toda parte, nem
pode estar. Sua função é conduzir para a delegacia o mau elemento
apreendido pelos cavalheiros, pelos rapazes que percebem qual é o reto
uso de sua capacidade física. Há gente por todo lado, e no meio dessa
gente há sempre muitos rapazes. Eles são, ou deveriam ser, os primeiros a
responder a um pedido de socorro feminino, sendo seguidos por outras
mulheres. Passado o perigo imediato, chamar-se-ia a polícia para
conduzir o meliante à cela. Mas, quando não há nem civilidade nem
cavalheirismo, cada um de nós está só no mundo. Inclusive e
especialmente aquelas que são, sempre foram e sempre serão, por sua
menor força física, as presas preferenciais dos realmente maus: as
mulheres e as crianças.
Discernir a culpa individual inegável do estuprador não deve nem nos
cegar aos elementos da (des)ordem social que os auxiliam, que listei
acima, nem, muito menos, nos fazer imaginar besteiras, tratando
“fiu-fiu” de pedreiro como espécie de estupro ou achando que a sociedade
como um todo deseja o estupro. Não é o caso. É a decadência terminal de
nossa sociedade, não suas bases sólidas, que facilita tão horrendo
crime. E a solução não está em campanhas nem em confusões mentais, mas
na educação de nossos filhos, para que cresçam cavalheiros, e na busca
da ordenação da sociedade como um todo, não em sua desconstrução. Tijolo
a tijolo.
Enquanto isso, permanece a dica que sempre dou a todos os mais
frágeis: armem-se. Comprem armas de choque, borrifadores de gás
lacrimogêneo, armas de fogo, o que estiver ao seu alcance. Afinal,
estamos sós.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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