A execução da policial
catarinense Caroline Pletsch não gerou veementes protestos da mídia nem
ensejou manifestações histriônicas de celebridades comovidas, escreve na
Gazeta do Povo o promotor Diego Pessi, do RS. "O
drama vivido pelas forças policiais brasileiras é um sintoma clamoroso
do avançado estágio de degradação moral de nossa sociedade, que, não
satisfeita em permitir a imolação dos cordeiros, agora chancela, com sua
indiferença, o direito do lobo ao holocausto de seus pastores. Com
pilhas de cadáveres e com o sangue dos mártires, pavimentamos a estrada
que nos levará ao abismo onde os heróis não têm vez":
“Mas nas ruas
sórdidas da cidade grande precisa andar um homem que não é sórdido, que
não se deixa abater e que não tem medo. (...) Ele é o herói; ele é tudo.
Ele deve ser um homem completo e um homem comum e, contudo, um homem
fora do comum. Ele deve ser, para usar um clichê, um homem honrado – por
instinto, por isto ser inevitável, sem que ele pare para pensar sobre
isso, e certamente sem que ele o diga. Ele deve ser o melhor homem em
seu mundo e um homem bom o suficiente para qualquer mundo.”(Raymond
Chandler)
O mundo da
experiência humana tem como elementos fundamentais a ordem e o caos.
Caos é o domínio da ignorância mesma, o território inexplorado e
estranho. É o desespero e horror que sentimos quando profundamente
traídos, o lugar onde os sonhos morrem e as coisas desmoronam; é “onde
estamos quando não sabemos onde estamos e aquilo que fazemos quando não
sabemos o que estamos fazendo”. Em suma: são todas as coisas e situações
que não conhecemos nem entendemos. Ordem é o lugar onde o mundo
preenche nossas expectativas e desejos, o lugar onde as coisas acontecem
da forma que esperamos, onde tudo é certo e ordenado. Cada situação
vivida ou concebível é composta por esses dois elementos, pois habitamos
eternamente a ordem rodeada pelo caos. Manter um pé naquilo que
dominamos e entendemos enquanto exploramos o desconhecido e aprendemos é
a maneira de nos posicionarmos de forma segura diante da vida,
controlando o terror da existência.
Dentro desse quadro,
esboçado pelo professor Jordan Peterson logo no início do estupendo 12
Rules for Life, An Antidote to Chaos, há uma notável estirpe de
indivíduos que, voluntária e corajosamente, plantam os dois pés naquele
tempo e lugar onde, nas palavras de Peterson, “a tragédia irrompe
subitamente e a malevolência revela seu semblante paralisante”. Uma
casta guerreira que faz do caos seu habitat natural e se dispõe a viver
em permanente risco, não por temeridade ou em razão de alguma pulsão
autodestrutiva, mas, antes, movida pela sublime vocação ao sacrifício.
Refiro-me, obviamente, aos policiais.
Como observa Tim
Larkin em When Violence is the Answer, “numa sociedade civilizada, a
violência raramente é a resposta. Mas, quando ela é, é a única
resposta”. Vivemos num mundo repleto de predadores brutais, impermeáveis
à própria noção de civilização e capazes de perpetrar atrocidades que
nem sequer são concebíveis para uma mente não criminosa. Tais
atrocidades são definidas por Larkin como expressões de “violência
associal”, que tem como marcas distintivas: 1. a impossibilidade
insuperável de comunicação com o agressor (argumentar com um sociopata
faz tanto sentido quanto “discutir com uma bala”); 2. o absoluto
desprezo do agressor por qualquer regra de conduta ou consideração de
ordem moral; 3. o fato de que o agressor só pode ser detido quando
reduzido à incapacidade de agir. Como parar uma força que, investindo
furiosamente contra tudo aquilo que represente as mais elementares
noções de ordem, está disposta a destruir a própria sociedade, caso isso
seja necessário para satisfação de seus apetites bárbaros? A resposta é
uma só: lançando mão de uma força ainda maior, capaz de suplantá-la,
inclusive pelo uso metódico e legal da violência, em nome da conservação
de nosso legado civilizacional. Eis a função do policial, treinado para
sobreviver onde reina o terror e diariamente submetido a ambientes
hostis e situações violentas que destruiriam a maioria de nós (e que,
não raro, custam-lhe a vida). Que tributos rendemos a esses guerreiros
em troca de seu sacrifício e heroísmo? É importante que o façamos?
Em obra clássica e
fundamental para compreensão da psicologia do combate (On Killing, The
Psychological Cost of Learning to Kill in War and Society), o
tenente-coronel ranger Dave Grossman explica como o reconhecimento
público, expresso em paradas, memoriais, condecorações e,
principalmente, no suporte e afeto cotidianos da sociedade, é essencial
para o combatente, pois sinaliza que o esforço por ele empreendido é
valorizado por seus pares, reafirmando o sentido de um sacrifício que,
afinal de contas, não foi em vão. Grossman aponta o trágico legado da
Guerra do Vietnã como um bom exemplo de quão cruel uma sociedade pode
ser com seus heróis: os combatentes enviados ao Sudeste Asiático (a
maioria pelo período de um ano) foram recebidos com uma hostilidade sem
precedentes no retorno ao país pelo qual lutaram. A falta de suporte e o
massacre psicológico infligido aos veteranos do Vietnã custaram a saúde
mental de milhares de homens cujo único crime foi servir à pátria,
fazendo aquilo para que foram treinados. O preço dessa terrível
injustiça (apenas tardia e parcialmente reparada) levou o governo
americano a rever sua doutrina estratégica, estabelecendo, entre outras
premissas, que os Estados Unidos jamais deverão se comprometer numa
guerra que não tencionem vencer.
Imagine, agora, uma
guerra que não é travada em algum lugar remoto, mas a partir do quintal
de sua casa. Uma guerra na qual você deverá se engajar não pelo período
de um ano, mas por toda a vida. Uma guerra na qual não apenas você, mas
seus familiares e amigos estarão permanentemente expostos à sanha
assassina de um inimigo inescrupuloso, onipresente e invisível, que, ao
contrário de você, não está sujeito a qualquer limitação de ordem legal,
ética ou orçamentária. Um inimigo que conta com o apoio e simpatia de
pessoas que, por obrigação legal, teoricamente deveriam estar a seu
lado. Imagine que muitos daqueles por quem você luta não apenas apregoam
que se trata de uma guerra perdida e sem sentido, como fazem questão de
aviltar seu trabalho e cuspir no sacrifício de seus colegas, exigindo,
em coro com o inimigo, nada menos que a extinção da força à qual você
dedicou seus melhores esforços. Não é preciso imaginar: essa é a
situação do policial no Brasil, dolorosamente simbolizada pelo martírio
de Caroline Pletsch e Marcos Paulo da Cruz no último dia 26 de março.
O casal de policiais
militares de Santa Catarina gozava férias na cidade de Natal.
Identificados por delinquentes durante um assalto à pizzaria onde
jantavam, foram sumariamente condenados, sem chance de recurso:
Caroline, 32 anos de idade, teve a vida ceifada por um disparo no peito,
e Marcos foi gravemente ferido. Uma família destruída. Sonhos
esmagados. O futuro roubado, na irremediável perda de tudo aquilo que
poderia ser e jamais será. Como de praxe, a execução de policiais não
gerou veementes protestos da mídia, não ensejou manifestações
histriônicas de celebridades comovidas, tampouco despertou a atenção dos
organismos supostamente devotados à causa dos direitos humanos.
Trata-se, afinal, de mais uma nota de rodapé, fadada ao ocaso, no
interminável inventário da vergonha nacional. Caroline será apenas mais
um número na estatística que contabiliza quase 3 mil policiais
assassinados desde 2011 (437 apenas em 2016, contra 64 nos Estados
Unidos no mesmo período). Os assassinos? Na improvável hipótese de que
seu crime não venha a figurar entre os mais de 90% que nem sequer são
denunciados, deverão responder ao processo em liberdade. Caso
condenados, serão soltos após cumprimento de uns poucos anos de prisão
(ou de no máximo três anos de internação, caso sejam menores de 18
anos), tudo isso, é claro, sob os veementes protestos de doutores e
especialistas que denunciarão esse arremedo de pena como genuína
expressão do “punitivismo exarcebado” que assola o Brasil. Uma única
certeza: em qualquer hipótese, os assassinos voltarão às ruas em busca
de novas presas. Destruirão outras famílias, esmagarão outros sonhos e
roubarão o futuro de outras vítimas.
O drama vivido pelas
forças policiais brasileiras é um sintoma clamoroso do avançado estágio
de degradação moral de nossa sociedade, que, não satisfeita em permitir a
imolação dos cordeiros, agora chancela, com sua indiferença, o direito
do lobo ao holocausto de seus pastores. Com pilhas de cadáveres e com o
sangue dos mártires, pavimentamos a estrada que nos levará ao abismo
onde os heróis não têm vez.
Diego
Pessi é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio
Grande do Sul e coautor de “Bandidolatria e Democídio, Ensaios Sobre
Garantismo Penal e Criminalidade no Brasil”.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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