J. R. Guzzo,
na revista Veja desta semana, analisa o importante papel da justiça à
consolidação do Estado de Direito. Morram de ódio, patrimonialistas
corruptos. Touché:
O Brasil
pode estar ganhando muito mais do que perdeu com a descida da Petrobras
aos nove círculos do inferno para onde foi arrastada durante os três
últimos governos da República. Nunca se roubou tanto da brava gente
brasileira, embora se tenha roubado sempre ─ e provavelmente se
continuará roubando enquanto o país, na prática, for propriedade do
“Estado” e obedecer à sua regra número 1, pela qual é obrigatório, para
quem quer produzir alguma coisa, pedir licença a quem não produz nada.
Mas há
sinais concretos de que o espetacular surto de corrupção dos últimos
anos, quando nossos atuais governantes decidiram transformar o uso
privado do patrimônio público em programa, método e sistema de
administração, está oferecendo uma oportunidade inédita ao Brasil do
futuro ─ a de deixá-lo mais resistente do que jamais foi às epidemias de
criminalidade oficial causadas pelos que mandam no governo, dentro e em
volta dele, e que agora chegaram ao seu grau de intensidade máxima.
Essa
recompensa será a passagem do país a uma situação até agora praticamente
desconhecida na história brasileira: a de funcionamento pleno de um
estado de direito no território nacional. O trabalho para isso está
sendo feito numa modesta jurisdição local, a de Curitiba, pelo juiz
Sérgio Moro, titular da 13ª Vara da Justiça Federal, pelo Ministério
Público Federal e pela Polícia Federal. Ninguém está dizendo aqui que o
Brasil perdeu pouco, porque a verdade é que perdeu muito. Provavelmente
nunca se saberá ao certo ─ a conta começa num número mínimo de 6 bilhões
de reais, estimativa oficial da própria Petrobras para o prejuízo
sofrido com esse redemoinho de corrupção que a empurrou para o
precipício, e vai até cifras não mapeadas pela aritmética comum.
Mas, por
maior que seja a perda, sempre será apenas dinheiro ─ e a sabedoria
popular diz que tudo o que pode ser pago com dinheiro é barato. Caras,
mesmo, são aquelas coisas que o dinheiro não consegue comprar. Uma das
mais preciosas é a segurança trazida pelos regimes em que o cidadão
vive, no dia a dia da vida real, sob o comando da lei. Não é possível
haver civilização se não há estabilidade, e não é possível haver
estabilidade sem um sistema judicial que funcione com clareza, para
todos e durante o tempo inteiro. Onde a aplicação da lei é incerta, não
há lei. Onde não há lei, não pode haver liberdades públicas ou
individuais, nem igualdade entre as pessoas, nem proteção verdadeira
aos direitos de ninguém; não pode haver democracia.
O esforço
do juiz Moro no processo do petrolão, junto com os procuradores
federais e os agentes da PF, está colocando a sociedade brasileira sob o
império da lei ─ the rule of law, como se diz no direito público dos
Estados Unidos e da Inglaterra. Isso não tem preço. A força que
realmente sustenta os procedimentos da Justiça Federal na Operação
Lava-Jato é a obediência permanente à letra da lei por parte dos
responsáveis pelo processo. Não adianta nada buscar a justiça se não há
nessa busca o respeito às leis em vigor no país. Elas são as únicas que
existem, e é com elas que o Poder Judiciário tem de trabalhar; combater a
impunidade não autoriza ninguém a passar por cima do direito de defesa,
da obrigação de provar claramente cada acusação feita e de qualquer
regra escrita nos códigos da Justiça penal.
Agir
dentro da lei ─ é o que o Judiciário federal está fazendo, e é por isso,
justamente, que sua conduta está sendo tão decisiva para o avanço do
estado de direito no Brasil de hoje. Os fatos, aí, são perfeitamente
claros. Todas as decisões do juiz Moro, sem nenhuma exceção, estão
sujeitas ao julgamento de tribunais que ficam acima dele; os advogados
dos acusados têm o direito de recorrer a essas autoridades superiores
contra qualquer dos seus despachos, e vêm fazendo isso desde que o
processo começou. Em praticamente todos esses recursos as decisões de
Moro foram confirmadas.
Seu
trabalho está sendo vigiado o tempo todo pelos 27 desembargadores das
oito turmas do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto
Alegre, mais os 33 ministros do Superior Tribunal de Justiça, em
Brasília, e, no fim da linha, os onze ministros do Supremo Tribunal
Federal. Além disso, ele despacha sob o olhar direto dos onze
procuradores federais e dez delegados da PF, pelo menos, que dão
expediente na Operação Lava-Jato ─ ao todo, contando com ele próprio, um
exército de 93 pessoas. O que mais estaria faltando?
O
processo do petrolão, na verdade, é o exato contrário do que têm
afirmado desde o começo muitos dos advogados que lideram a defesa ─
mais, naturalmente, o governo e todo o seu sistema de apoio. Sua
ideia-mãe, com variações aqui e ali, é que Moro, o Ministério Público e a
Polícia Federal estão criando um “regime de exceção” no Brasil, um
“estado policial” que nega o direito de defesa, persegue cidadãos sem
culpa formada, age com crueldade e prepara um golpe para a “volta da
ditadura”. Estariam mancomunados para tirar a liberdade de empreiteiros
de obras, diretores da Petrobras, doleiros, o tesoureiro nacional do PT e
quem mais estiver sendo investigado por corrupção na Justiça Federal do
Paraná. Como assim? Ninguém explica, pois não dá para explicar como
seria possível montar uma conspiração secreta com a participação de
quase 100 pessoas sem que ninguém falasse nada.
É
incompreensível, também, alegar arbitrariedade, violência contra os
acusados ou descaso com a produção de provas quando nada menos que 28
cidadãos, todos altamente postados na vida, concordaram até agora, com a
plena assistência de seus advogados, em confessar suas culpas, devolver
dinheiro ganho ilegalmente e denunciar cumplicidades nos delitos que
praticaram. Réus já receberam sentenças das quais não vão apelar. Mais: a
“delação premiada”, que levou os envolvidos a colaborar com a Justiça
para aliviar suas penas, só existe porque foi criada por lei. Não é uma
lei da “ditadura” ou do ex-presidente Fernando Henrique ─ é a Lei
12850, sancionada em 2013 por ninguém menos que a própria presidente
Dilma Rousseff, que ainda na campanha eleitoral do ano passado a
apresentava como uma das suas grandes realizações e hoje se diz
indignada com ela.
Uma
discreta informação surgida no noticiário recente talvez seja a
comprovação mais luminosa, pois também é a mais simples, da mudança real
que o avanço do estado de direito está produzindo no Brasil. O
empresário Emílio Odebrecht, segundo a notícia, queixou-se aos
ex-presidentes Lula e Fernando Henrique, em conversas particulares, por
não estar conseguindo fazer nada pela libertação de seu filho Marcelo,
acusado de corrupção na Petrobras e preso há dois meses em Curitiba.
Lula e FHC disseram-lhe palavras de consolo ─ e isso foi tudo que
puderam fazer. Não é preciso pensar mais do que dois minutos para ver
que a ação da Justiça está fazendo aparecer um país que jamais existiu
antes por aqui.
A
Odebrecht é o quarto maior grupo empresarial do Brasil; faturou perto de
34 bilhões de dólares em 2014, emprega cerca de 170 000 pessoas
diretamente e influi nos negócios de centenas de outras empresas. Desde
quando um dos empresários mais potentes do Brasil, íntimo do
primeiríssimo escalão do poder, fala com dois ex-presidentes da
República e não consegue tirar o próprio filho da cadeia? Não é assim
que este país vem funcionando há 500 anos. Temos leis que não acabam
mais ─ mas para que servem se não são aplicadas sempre, por igual e para
todo mundo? A Rússia comunista também tinha belíssimas leis ─ previam
até a liberdade de imprensa, o voto livre e a independência de poderes. E
daí? Lei não é justiça.
Só poderá
haver esperança de uma sociedade justa se estiver em funcionamento
genuíno um sistema judiciário independente, previsível e capaz de
aplicar a lei sempre da mesma maneira ─ e em que os donos do poder não
possam demitir os juízes que os incomodam. É o que está acontecendo no
petrolão. Marcelo Odebrecht não está preso porque é rico e preside uma
empresa gigante. Está preso porque a Justiça, com apoio em fatos,
investiga quanto ele está devendo ao Código Penal.
O
tiroteio disparado contra Sérgio Moro é uma das mais agressivas
campanhas em favor da negação da Justiça que o Brasil já conheceu. É
também a comprovação de quanto a ideia de viver sob o império da lei é
inaceitável para as forças que mandam na vida pública brasileira.
Trata-se do condomínio formado por coronéis da política, que operam nas
grandes capitais e andam de jatinho, mas continuam dentro do seu carro
de boi mental de sempre, por empresas que vivem de fazer negócios com o
governo e por toda a extensa população de parasitas cujo bem-estar
material depende, de um jeito ou de outro, da máquina pública. São
representados hoje, melhor do que nunca, pelo governo do PT, seu aliado,
sócio, protetor e protegido ─ e para manterem o fazendão que chamam de
“Estado” estão convencidos de que tudo serve.
Vale, por
exemplo, dizer que o combate à corrupção na Petrobras está fazendo o
Brasil perder “1% do PIB”, como descobriu a presidente Dilma. A
Lava-Jato não pode “paralisar” a economia brasileira, dizem lideranças
do PT e do governo ─ por essa maneira de ver as coisas, a economia só
crescerá se a ladroagem estiver liberada. A delação de um dos acusados,
algum tempo atrás, foi vista como uma manobra internacional para
“prejudicar a viagem da presidente aos Estados Unidos”. O ex-presidente
Lula compara o combate judicial à corrupção com a perseguição aos judeus
na Alemanha nazista.
Vale
tudo, também, na tentativa permanente de denunciar o juiz, procuradores e
policiais que investigam o petrolão como delinquentes dispostos a
violar a lei para satisfazer a “opinião pública”. Personalidades tidas
como juristas de elevado saber mostram-se tão convencidas de suas
próprias certezas que não pensam mais direito no que estão falando. Uma
delas, recentemente, sustentou que o juiz Moro é “um cidadão do sul com
volúpia para prender pessoas” ─ e que as confissões dos acusados estão
sendo feitas “sob tortura”.
No seu
entender, o sujeito que “está acostumado com um bom padrão de vida e é
posto numa sala que não tem nem privada”, como ocorre com os
empreiteiros e barões da Petrobras presos em Curitiba, “está sendo
torturado”. Para aperfeiçoar seu argumento, disse que um preso é um
preso, e outro preso é outro preso. “Se você viveu numa favela”,
comparou, dá para aguentar uma cela miserável; com um doutor já não é a
mesma coisa. Que mais seria preciso para comprovar a angústia do Brasil
velho com a mudança ora em execução pela Justiça Federal?
O autor
desses pensamentos, enfim, parece ter falado por todos os que combatem
os processos do petrolão ao afirmar que “nem no tempo da ditadura” houve
tanto desrespeito à lei numa investigação criminal. É mesmo? Se os que
dizem isso tivessem um dia levado um bom inquérito policial-militar no
lombo, notariam bem depressa as diferenças entre uma época e outra;
saberiam, também, que uma cela no DOI-Codi não tem absolutamente nada a
ver com o xadrez da PF de Curitiba.
É um bom
sinal para o Brasil que, após um ano inteiro de esforço, tenha dado
resultado zero a tentativa de demonstrar que não há corrupção no
governo, ou só um pouquinho, e que tudo não passa de uma armação contra
os interesses populares. A campanha fracassou porque sempre foi uma
missão impossível ─ pretendeu convencer a maioria da população a
acreditar que os reis não estão nus, e essa não é uma opção disponível. O
trabalho do juiz Sérgio Moro está mais vivo hoje do que estava quando
começou. O estado de direito agradece.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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