Por que será que agora,
no auge da civilização tecnológica, se valoriza tanto a ideia de
abandonar tudo e voltar ao mundo natural? Antes de tentarmos o mergulho
no atraso, é bom lembrar que não tem volta
Eurípedes Alcântara veja.com
BOM PRA QUEM, CARA PÁLIDA? Na raiz de todo ativismo
violento está a noção utópica e errônea de que Thomas Hobbes pensou
errado e, portanto, a vida selvagem é idílica, prazerosa e fraternal
(Deagostini/Getty Images)
"Sou homem. Nada do que é humano me é estranho", já dizia o romano
Terêncio, dramaturgo de apenas relativo sucesso do segundo século antes
de Cristo. Mas temos de concordar com ele. Eta espécie complicada esta
nossa. Depois de ralar durante milênios para construir uma civilização
tecnológica com aviões, carros, internet, vacinas, antibióticos e
anestesia, o bacana agora é lutar pela volta ao mundo natural. Depois de
experimentar toda a sordidez da servidão humana aos mais sanguinários
tiranos e de sofrer no lombo os mais odiosos arranjos coletivistas
totalitários, ainda temos entre nós quem se encante com
aiatolás-presidentes, mulás-chefes de polícia e caudilhos
latino-americanos cobertos de adereços indígenas, medalhas no peito ou
pancake no rosto. Depois de rios de sangue derramados para arrancar dos
poderosos o compromisso inarredável com os direitos humanos, a justiça
igualitária, o rodízio pacífico de poder, a organização econômica
baseada no respeito à propriedade, aceitamos que mascarados aterrorizem
as grandes cidades quebrando e queimando indiscriminadamente apenas
porque estão incomodados com o estilo de vida da maioria. Depois do
sacrifício dos mártires que deram a vida para impor o uso apenas
legítimo da força pelos governantes, impedindo que o Estado use brucutus
para impor a vontade dos ricos sobre os pobres, dos fortes sobre os
fracos, ficamos contra os policiais que tentam impedir o triunfo do
reino de terror nas ruas. Depois de tudo isso, esquecemos que o que nos
trouxe ao atual estágio civilizatório foi o trabalho obstinado e austero
de mentes brilhantes em ambientes monásticos e idolatramos os
barulhentos ativistas.
Nelson Antoine/AP
A
ÚNICA CHANCE de salvar os cães é nos salvar, ou seja, acelerar os
avanços científicos e tecnológicos, e não colocar obstáculos
intransponíveis a eles
Esse é o dilema oculto do ativista, a pessoa que se cansou de
esperar que as coisas ocorram naturalmente da maneira como ela imagina, e
vai à luta para tentar embicar o mundo para o rumo que ela acha certo e
com o uso das armas que ela própria acha conveniente usar. Os ativistas
que libertam cães em São Paulo, que quebram vitrines em Londres e
Paris, que se propõem a ocupar Wall Street, em Nova York, têm em comum a
ideia de que a lei e a ordem existem apenas para garantir o modo de
vida das pessoas das quais eles discordam - ou, frequentemente, que eles
odeiam. Outro ponto comum, em geral inconsciente, para a maioria deles,
é a negação do que em sociologia se chama "contrato social", que nada
mais é do que a aceitação da tese de que sua liberdade termina onde
começa a do outro. Os filósofos da baderna sustentam que isso que
denominamos civilização não passa de uma grande e castrante prisão, à
qual somos moldados desde o nascimento, primeiro pelo amor materno e
paterno, depois pela educação formal, mais tarde pela democracia
representativa, pelo consumo, pela arte degenerada e pelos remédios
antidepressivos.
Para quem pensa assim, nós todos vivemos uma vida vicária, uma vida
substituta, uma vida no lugar da verdadeira vida que está... que está...
que está onde? Ora, na natureza, no mundo selvagem, nas selvas,
florestas e savanas, na cova dos leões onde seremos recebidos com
lambidas fraternas como aquelas que as feras ofereceram ao profeta
Daniel. O que muito se discute atualmente é se a ideia de que o homem
solto na natureza, fora do alcance das leis, das instituições,
completamente alheio às convenções sociais, estaria mesmo condenado à
perversão moral e ao sofrimento físico, vítima da "guerra de todos
contra todos", como o inglês Thomas Hobbes disse ser a vida humana "em
estado natural". É disso que se trata. A vontade de ser seu próprio
juiz, único e absoluto, do que é certo ou errado é o traço filosófico
que une os ativistas que desprezam as leis, que lutam contra moinhos de
vento ditatoriais em pleno regime democrático, contra as injustiças
sociais em um Brasil onde há pleno emprego, contra a violência policial
quando são eles que mais agridem e vandalizam. Thomas Hobbes escreveu
que, fora dos arranjos sociais em que as pessoas obedecem a regras em
troca do direito à convivência em sociedade, a vida do homem é
"solitária, pobre, sórdida, brutal e curta". Hoje, o bacana é apostar
que Hobbes pensou errado e que a verdadeira conquista é escapar dos
contratos sociais. O preço a pagar para testar aquela hipótese é muito
alto. Como é impagável também o preço de um mundo sem ativismo, sem
idealismo, sem sonhos.
Biblioteca Nacional
A
REVOLTA DA VACINA - No Rio Janeiro, em 1904, o medo da vacinação
obrigatória contra a varíola gerou protestos violentos, como este na
Praça da República
O engajamento solidário em causas consideradas justas é uma das
grandes conquistas da modernidade. Divisor de águas é o caso do jovem
capitão Alfred Dreyfus, judeu falsamente acusado de espionagem e
condenado no fim do século XIX em uma França antissemita. A injustiça
contra ele foi tão flagrante que se mobilizaram em sua defesa
cientistas, artistas, escritores e estudantes . "Meu dever é falar, não
quero ser cúmplice. Minhas noites seriam atormentadas pelo espectro do
inocente que paga, na mais horrível das torturas, por um crime que ele
não cometeu", dizia a famosa carta aberta ao presidente da República
escrita por Émile Zola em um jornal sob o título: "Eu Acuso...!". Por
serem homens de letras e de ciências, os defensores de Dreyfus eram
chamados de modo depreciativo de "intelectuais". Logo o termo ganhou a
conotação positiva de "sábio engajado". Claro que havia idealismo,
sacrifício e nobreza de espírito antes do caso Dreyfus, mas nunca antes
tantas pessoas haviam se mobilizado por uma causa sem que tivessem
interesse direto nela - seja partidário, religioso, nacionalista,
patriótico ou étnico. Elas se mobilizaram contra uma injustiça
flagrante. Contra isso sempre valerá a pena lutar.
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