Impactos socioeconômicos e a qualidade do pré-natal em mulheres negras no Brasil
Fernanda Garanhani de Castro Surita, Amanda Dantas Silva e Leila Rocha
Em
1991, o censo demográfico consolidou-se no modelo que adotamos até hoje
no Brasil no que se refere a cor da pele: branco, preto, pardo, amarelo
e indígena. Esse sistema de classificação foi reproduzido nos censos
demográficos para as edições a partir de 2000. No último censo (2022),
vemos que, pela primeira vez desde o século XX, a população branca
deixou de compor a maioria do povo brasileiro. Posteriormente
o Estatuto da Igualdade Racial estabelece que são consideradas pessoas
negras as que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito usado
pelo IBGE.
As mulheres negras apresentam maior chance de início tardio e não realização de pré-natal, fazem menos consultas de pré-natal, e as consultas têm menor duração e realizam menos exames complementares durante o pré-natal. A maior dificuldade de acesso ao pré-natal entre este grupo de melhores tem causa multifatorial: piores condições socioeconômicas, maior dependência dos serviços públicos de saúde, moradias em locais mais periféricos, maior dificuldade de sair do trabalho para ir às consultas, falta de rede de apoio.
É
importante destacar, por outro lado, que o racismo em si, também
impacta negativamente não só no acesso ao pré-natal, mas também em
desfechos em saúde materna e perinatal.
O racismo obstétrico refere-se às diferentes formas de prejuízo às quais as mulheres negras são expostas durante a gestação, o parto e o pós-parto, como resultado de uma injustiça social. Inclui atrasos nos diagnósticos, negligência e atendimento desrespeitoso, e constitui uma ameaça à saúde materna e neonatal.
As
mulheres negras sofrem de vulnerabilidades que se cruzam, resultando em
piores resultados em saúde: sofrem discriminação de gênero, de classe e
de cor de pele. Neste contexto, é importante trazer o conceito da
interseccionalidade: os diversos fatores que contribuem para a maior
dificuldade de acesso aos serviços de saúde de modo geral e ao pré-natal
pelas mulheres negras não atuam de forma isolada, mas sim de forma
interseccional, integrada, com efeito aditivo e até multiplicativo. A
interseccionalidade refere-se à criação de inequidades estruturais a
partir da intersecção de sistemas historicamente discriminatórios -
racismo, patriarcado e opressão de classe – e permite compreender as
disparidades raciais/étnicas nos resultados da saúde sexual e
reprodutiva das mulheres.
Impactos socioeconômicos
Existem
várias maneiras pelas quais os fatores socioeconômicos impactam na
qualidade do pré-natal: as mulheres negras apresentam piores condições
de trabalho e de moradia, o que pode dificultar a adesão a tratamentos,
como, por exemplo, uma dieta adequada para diabetes gestacional; muitas
vezes apresentam dificuldade para faltar no trabalho e realizar exames;
possuem lacunas em rede de apoio, sendo difícil conseguir ajuda para
deixar os filhos mais velhos, por exemplo, sob o cuidado de outra pessoa
enquanto vão às consultas ou realizam exames; a menor escolaridade
também impacta em maior dificuldade para compreensão e adesão a
possíveis tratamentos.
Os
determinantes sociais de saúde são, segundo a Organização Mundial de
Saúde (OMS), condições não médicas associadas ao local onde as pessoas
vivem, trabalham e crescem, que impactam nos resultados de saúde. Os
determinantes estruturais incluem contextos socioeconômicos e políticos
que criam e mantêm hierarquias sociais pelas quais as populações são
estratificadas de acordo com gênero, cor da pele, renda e educação.
Nesse contexto, o racismo estrutural é um determinante da saúde da
população e impacta negativamente nos resultados de saúde.
As
piores condições socioeconômicas, por outro lado, não são a única
justificativa para a pior qualidade do pré-natal para mulheres negras. A
percepção de sofrer discriminação também se associa a piores resultados
maternos e perinatais. Experiências autorrelatadas de ter sofrido algum
tipo de discriminação se associam a maior chance de início tardio ou
não realização de pré-natal, escolha de métodos contraceptivos menos
eficazes e maior risco de baixo peso ao nascer e parto pré-termo.
Políticas públicas
As
políticas públicas para melhorar o acesso ao pré-natal para mulheres
negras devem ser amplas e profundas. Devem incluir mulheres negras nesta
implementação. Devem envolver educação e treinamento dos profissionais
de saúde para atender essa população, respeitando as suas
particularidades, segundo descrito na Política Nacional de Saúde
Integral da População Negra. O primeiro passo é conscientizar sobre a
existência de disparidades raciais entre os profissionais de saúde.
A
educação e a conscientização são as principais formas de melhorar a
assistência em saúde das mulheres negras. Compreender o Racismo, o
Racismo Institucional e considerar a existência das disparidades raciais
na tomada de decisões e na construção e implementação de políticas
públicas permitem reduzir as iniquidades em saúde.
A existência de crenças e práticas racistas entre os profissionais de saúde em relação a grupos minoritários influência no processo de tomada de decisão por estes profissionais. Por isso, a conscientização torna-se tão importante.
As
pesquisas em saúde devem considerar a variável cor de pele como uma
construção social, que implica em várias outras variáveis sobrepostas, e
não como um fator biológico isolado, como peso ou altura.
Consequências
Mulheres negras apresentam maior risco de prematuridade, hemorragia pós-parto, hipertensão e pré-eclâmpsia, recebem menos analgesia durante o parto e pós-parto.
Mulheres pretas apresentam maiores taxas de mortalidade materna em comparação a todas as outras cores de pele, no Brasil - pardas, brancas, indígenas e amarelas.
Além
disso, a qualidade do cuidado oferecido durante o parto influencia não
só na saúde da parturiente e do recém-nascido, mas também na relação com
os serviços de saúde ao longo da vida das mulheres.
Como mudar o cenário
Reconhecer
a existência das disparidades raciais em saúde, da multiculturalidade e
do racismo obstétrico é o primeiro passo para poder enfrentá-lo. A
educação dos profissionais de saúde deve começar ainda na graduação com
disciplinas incluindo os temas de disparidades raciais em saúde e de
racismo.
*Autoras:
Profa. Dra. Fernanda Garanhani de Castro Surita
Vice-Presidente da CNE de Violência Sexual e Abortamento Previsto por Lei da FEBRASGO e Professora Titular de Obstetrícia, Departamento de Tocoginecologia, UNICAMP.
Dra. Amanda Dantas Silva
Médica Ginecologista e Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Tocoginecologia da UNICAMP.
Leila Rocha
Enfermeira e Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Tocoginecologia da UNICAMP.
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