BLOG ORLANDO TAMBOSI
Como pode parecer uma boa ideia jogar fora o Estado e ficar na mão de monopólio? O Estado precisa de conserto. E isso não será possível sem o combate aos monopólios. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Um
tema já muito insistido é a deturpação do conceito de liberalismo que o
converte em progressismo. Grosso modo, liberalismo seria destravar as
potencialidades individuais, então caberia ao Estado libertar a
humanidade dando-lhe educação, saúde e… modess. Daí o pseudoliberal
progressista dirá que é liberal, sim, porque não defende a criação da
estatal Modessbrás; em vez disso, defende a iniciativa privada, que é
mais eficiente que o Estado, e está pronta para pegar os fundos da
viuvinha para comprar modess. No momento, temos progressistas usando um “estudo” da Always
para mostrar que coisas terríveis acontecem se as meninas não ganharem
modess do governo. Elas enfiariam miolo de pão e ficariam sem ir à
escola.
Alguns
diriam que isso não é liberalismo por causa do papel do Estado na
oferta de serviços e produtos. Eu já penso que o crucial a ser observado
aí é o equilíbrio de poder. Empresas transacionais como a P&G (dona
da Always) têm mais dinheiro do que muitos países – que aliás costumam
estar endividados. Quando o Estado passa a comprar coisas e serviços
dessas transacionais, transfere ainda mais dinheiro e poder para elas.
Nessas
horas, um simplório dirá algo como: “E daí? Essas empresas são grandes
porque são eficientes”. Isso presume uma visão utópica de como funciona o
mundo. É a utopia do darwinismo social, que merece ser destrinchada
noutro texto. Mas ainda que acreditemos que as empresas sempre são
grandes por serem boas (o que é uma baita ingenuidade), disso não se
segue que, uma vez que domine o mercado, a empresa continue ofertando
bons produtos, já que o público foi cativado.
O
caso dos modess da Dona Tábata é uma negligência esquerdista do
problema da formação de monopólios privados. Mas o esquecimento é
ambidestro.
Versão de direita
Se
sairmos da esquerda para a direita, encontraremos a entusiasmada defesa
do “voucher” – isto é, do vale – de educação. A solução para os
problemas do ensino básico, ora capturado pelas corporações de
funcionários públicos e prejudicado pela má gestão, estaria na
introdução da concorrência por meio de vales.
Os
vales nada mais são que a versão do Prouni para o ensino básico. O
Prouni é um programa de bolsas do governo federal criado por Haddad em
2005, no governo Lula I. Em vez de gastar com as federais, o Estado dá
bolsas integrais a jovens pobres em instituições de ensino superior
privadas. Haddad foi também o ministro que criou o Reuni, o programa que
transformou as universidades federais em escolões identitários,
multiplicando as vagas na marra e diminuindo o gasto per capita com o
alunado. A maior greve da história das federais no governo Dilma
aconteceu em plena vigência do Reuni.
Olhando em retrospecto, podemos dizer que o Reuni (cujo documento pode ser lido aqui)
já tinha a digital ESG. Incluía, por exemplo, cotas raciais (“ações
afirmativas”) nos vestibulares – prática racista que deveria ser
considerada ilegal e inconstitucional, mas a qual o STF liberou em 2012.
Voltemos
para a relação de poderes. Todo brasileiro de cidades grandes e médias
que tivesse uma faculdade privada decente viu-a ser comprada por alguma
multinacional e se transformar numa pagou-passou.
A criação de um programa federal de “voucher” (ou bolsa) mexeu com o
mercado e atraiu grandes “investidores” (ou predadores) internacionais.
Durante
a pandemia, Lemann passou a ser dono de um dos maiores conglomerados de
ensino básico do mundo, quando a sua empresa Eleva comprou o grupo
Cogna. Se Tabata Amaral está falando só de modess, é porque a direita já
tem uma porção de simplórios defendendo os interesses de Lemann.
Daí
vocês já sabem: se a direita conseguir driblar o lobby dos servidores e
passar um Prouni do ensino básico, poderemos descobrir que no fundo do
poço da educação brasileira há um alçapão. Dá para vislumbrar o
professor com camisa de Che Guevara sendo substituído por um tablet
fuleiro, alugado, onde o aluno deve assistir a aulas gravadas sobre
gênero e raça e tirar dúvidas num serviço de atendimento ao cliente.
Lei antitruste, outrora símbolo do livre mercado
No
Brasil, a sossegada compra da Cogna pela Eleva serve muito bem para
mostrar o declínio no discernimento do público e da imprensa. Quando
Lemann fundiu Antarctica e Brahma, em 2000, criando assim a Ambev, a
preocupação com a formação de monopólio jogou o assunto nos holofotes.
Havia o suspense quanto à possibilidade do CADE (Conselho Administrativo
de Defesa Econômica) liberar a fusão ou não. Hoje ninguém fala mais de
CADE, o que quer dizer que ou ele deve servir só para dar emprego, ou
para atrapalhar a vida dos pequenos e médios. Se incomodasse um
monopolista, viraria manchete.
Escrevendo
sobre isso em jornal ou em rede social, descobri que virou senso comum
na direita – até mesmo a autodeclarada conservadora – que a intervenção
estatal é ruim. Vivemos agora um anarcocapitalismo cultural. Agora, se
você defende que o Estado deve ter o poder de dividir monopólios, isso
faz de você um comunista.
Felizmente,
para constatar que não estou louca, encontrei um vídeo de Fernão Lara
Mesquita tratando da Lei Antitruste como pedra angular da democracia e
do livre mercado dos EUA. Fernão Lara Mesquita é um liberal descendente
dos Mesquitas, donos do Estadão, jornal notoriamente liberal desde a sua
fundação (quanto ao Estadão dos dias de hoje, vale frisar que não está
mais nas mãos da família Mesquita).
Vocês podem ouvi-lo aqui.
Segundo conta, a inovação tecnológica que foram a grandes ferrovias a
ligar aquele país continental teve como consequência o aumento do poder
dos donos de ferrovias. Cada território conectado era um território sob o
seu jugo. Assim, empresários podiam subornar o dono da ferrovia para
monopolizar o acesso a novos mercados, tirando os concorrentes do páreo.
Os norte-americanos iam ficando cada vez mais desiguais, com a classe
média diminuindo e a pobreza aumentando, ao passo que a renda se
concentrava nas mãos dos poucos monopolistas. Para impedir isso,
Theodore Roosevelt, que só chegou à presidência por um golpe do acaso,
fez valer a Lei Antitruste, segundo a qual nenhuma empresa pode dominar
mais que um terço de um setor.
Há
não muito tempo, livre mercado presumia livre concorrência. Há não
muito tempo, pessoas escolarizadas sabiam o que era dumping, cartel,
monopólio, e sabiam que eram crimes. Onde há a noção de crime, aí está a
noção de lei. Não vejo muita gente disposta a assumir que quer justiça
privada, mas vejo muita gente disposta a tratar o Estado como um mal em
si mesmo. Isso quer dizer que são anarcocapitalistas sem saber.
Só o Estado se legitima no povo
Fernão
Lara Mesquita acusa o Ocidente de ter desistido da democracia ao
aceitar os monopólios. Quanto a mim, no último texto preferi tratar do
fim da lei antitruste como uma mostra de que os EUA são, ou pelo menos
convivem com, uma ditadura do judiciário. A legislação antitruste é bem
anterior a Roosevelt, e, ao meu ver, sua aplicação se deve a um momento
efêmero de Executivo forte. Pode até ter havido uma decisão da elite
política dos EUA – sempre muito bem financiada por monopolistas – de
conviver com monopólios. (O marco dessa decisão talvez seja a Microsoft,
do hiper-vacinador e gênio da epidemiologia Bill Gates.) Mas o fato é
que, para mudar os rumos do país, não foi necessário passar pelo
Congresso. A Nova Escola de Chicago convenceu os juízes da Suprema Corte
de que o gigantismo era inexorável (um papo velho o bastante para Chesterton ter combatido).
Com a Suprema Corte, resolve-se tudo. Procurando bem, eles encontram
desde segregação racial até direito ao aborto na Constituição. Esta, a
seu turno, começa com “We the people”, “nós, o povo”.
Nesse
regime judiciário, o poder está no intérprete, não no povo. E aos
simplórios que amam falar mal do Estado nacional, é bom pedir que
ponderem o seguinte: que instituição fundamenta a própria existência nos
interesses do brasileiro? Não há nenhum embasamento moral para eu dizer
à P&G que sua existência não faz sentido, porque lesa os meus
interesses ao me pedir que subsidie modess. A finalidade da P&G é o
lucro. A da Microsoft também. Eu não sou acionista da P&G e não
tenho autoridade para dizer o que ela deveria fazer. Por outro lado, o
Estado, até mesmo quando autoritário, fundamenta a sua existência no bem
do povo. Maduro pode estar matando o seu povo de fome, mas nem vai
passar pela cabeça dele dizer que não está ali para servir ao povo. É
mais fácil usar propaganda e mentir. Quando o Estado é democrático, o
povo (em tese) tem não só autoridade moral sobre ele, mas também poder,
já que elege os seus representantes. Seja autoritário ou democrático, o
Estado é o único gigante que legitima a sua existência no meu bem. Mesmo
que fôssemos mendigos e não pagássemos impostos, o Estado estaria
obrigado a nos levar em conta, porque somos cidadãos natos. Na verdade,
podemos até observar que o progressismo vem corrompendo essa ideia,
fazendo crer que as pessoas (e não os cidadãos) merecem algo somente
como forma de reparação por danos coletivos (cotas para categorias
“estruturalmente oprimidas”). É um pensamento de feições jurídicas que
nega os direitos do cidadão e do homem.
Nós
não votamos nas empresas do Lemann, nem pretendemos ter legitimidade
para reger a Microsoft. Como pode parecer uma boa ideia jogar fora o
Estado e ficar na mão de monopólio? O Estado precisa de conserto. E isso
não será possível sem o combate aos monopólios.
Postado há 2 days ago por Orlando Tambosi
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