Órgãos governamentais poderão mandar currículos falsos para detectar discriminação contra pessoas de origem estrangeira. Vilma Gryzinski:
A
empresa está abrindo contratações, o que já é uma grande manifestação
de coragem na França dos milhões de leis trabalhistas, e recebe dois
currículos com habilidades exatamente idênticas. A diferença: um vem de
Arnaud Babineaux, outro de Mohamed Saidi.
É
uma pegadinha. Os currículos foram inventados como parte de um plano do
governo francês para detectar empresas ou organismos institucionais que
discriminam contratados com base em sua origem étnica, racial ou
nacional.
A punição pode ir desde a nomeação pública dos envolvidos, como forma de causar constrangimento social, até uma “multa cívica”.
Incontáveis
experiências e pesquisas já apontaram ao longo do tempo que existe
realmente uma preferência não declarada por franceses “tradicionais”,
tais como revelados pelo nome, pela foto e até pelo endereço, e
franceses cujas famílias vieram do Norte da África ou da parte
subsaariana do continente.
No
lançamento do plano de 80 medidas contra o racismo, o antissemitismo e
as discriminações, feito pela primeira-ministra Élisabeth Borne, a
advogada Kaltoum Gachi, dirigente de uma organização antirracista,
contou como seu irmão, chamado Kamel, só conseguiu emprego numa
montadora de automóveis depois de mudar o nome no currículo para Kevin –
ironicamente, um nome de origem irlandesa que faz sucesso na França.
O
programa é tipicamente francês, fruto de incontáveis debates e comitês.
Inclui pelo menos uma visita ao longo do período escolar a um monumento
a vítimas de perseguições. Um simples passeio pelas ruas de Paris pode
revelar as placas com locais onde judeus franceses ou que se refugiavam
na França, incluindo crianças, foram deportados durante a II Guerra
Mundial.
A
história é especialmente dolorosa para a discreta, quase invisível
primeira-ministra. O pai dela, Joseph Bronstein, judeu russo proveniente
da Bélgica, militou na Resistência Francesa durante alguns meses antes
de ser preso, aos 19 anos, e deportado para Auschwitz. Conseguiu
sobreviver, mas perdeu o próprio pai e um irmão. Quando a filha
Élisabeth tinha onze anos, cometeu suicídio.
A
história é complicada na França: a maioria esmagadora dos atos de
antissemitismo é cometida por pessoas com origem em países muçulmanos, o
que leva centenas de judeus franceses a emigrar anualmente para Israel.
Um
intelectual judeu como Éric Zemmour, que foi candidato a presidente, se
aproximou de teses de extrema direita por causa de episódios de
terrorismo e discriminação cometidos por imigrantes muçulmanos.
Ele
foi amplamente ridicularizado quando propôs que deveria ser obrigatório
dar prenomes franceses a todas as crianças nascidas no país.
Justificativa para a ideia absurda: “Quando você chama seu filho de
Mohamed, está colonizando a França”.
Combater
o racismo e a discriminação é um processo necessário e complexo, em
especial quando envolve pessoas que podem ser, simultaneamente,
discriminadas e discriminadoras. No mundo das redes sociais, grassam os
preconceitos mais primitivos e objetivos nobres podem ser levados ao
exagero como no caso da encenação teatral no Canadá, em comemoração ao
Mês da História Negra, cuja estreia será aberta “exclusivamente a um
público de identidade negra”. O teatro é subvencionado por verbas
públicas.
É
claro que os Estados Unidos são o país onde o assunto mais ferve, com a
Teoria Crítica Racial, uma interpretação marxista e maximalista das
relações raciais, sendo pregada em universidades, escolas, empresas e
órgãos do governo.
Ron
DeSantis, o governador da Flórida que quer ser presidente, proibiu no
ano passado o ensino da Teoria Crítica Racial nas escolas do estado, o
que o levou a ser chamado, obviamente, de supremacista branco.
O
governo francês já disse oficialmente que não quer ser contaminado
pelos extremismos do debate americano. O plano anunciado pela
primeira-ministra está cheio de boas intenções, como “nomear melhor e
mensurar melhor” as atitudes discriminatória, além de “educar melhor e
sancionar melhor os responsáveis por palavras ou atos inaceitáveis”.
Desses,
a França está, lamentavelmente, repleta. Poucos podem esquecer o
fatídico 16 de outubro de 2020, quando Samuel Paty foi decapitado ao
deixar a escola onde ensinava história e geografia. O assassino,
Abdoullak Anzorov, tinha 18 anos, estava na França desde os seis,
proveniente da Chechênia, a complicada república que faz parte da
Rússia. Insuflados por uma aluna de 13 anos, que mentiu sobre as
atitudes do professor, pais de alunos passaram a acusá-lo de islamofobia
por mostrar caricaturas do profeta Maomé durante uma aula sobre
liberdade de expressão.
Quem
tiver sugestões razoáveis e eficazes sobre como administrar situações
assim, reflexo de um quadro gravíssimo de radicalização, pode
encaminhá-las à primeira-ministra francesa. Talvez ela tenha um tempo
para vê-las em meio à onda de greves que engolfa a França por causa do
aumento da idade para a aposentadoria para 64 anos, a idade mais baixa
entre as grandes economias europeias.
Mais de 70% dos franceses são contra – e não tem pegadinha do falso currículo que dê jeito nisso.
Postado há 10 hours ago por Orlando Tambosi
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