Manipular dados de usuários para fins comerciais ou políticos é tão intolerável como abrir cartas alheias. João Pereira Coutinho via FSP:
Mark Zuckerberg mudou o nome da empresa. Não é mais Facebook. É Meta, por homenagem ao "metaverso", novo interesse do jovem Mark.
Se você não sabe o que é o metaverso, esqueça Zuckerberg. Leia Fernando Pessoa.
Enquanto o poeta português circulava pelas ruas de Lisboa, seus
heterônimos existiam num universo paralelo, com suas biografias,
sensibilidades e preocupações.
Pois é, Mark, meu compatriota chegou lá primeiro. E sem precisar de bilhões de dólares.
Mas
se Zuckerberg quer criar mundos alternativos, os problemas deste mundo
continuam intactos. Falo dos problemas que as redes sociais criam
—manipulação de dados para fins comerciais ou políticos, difamação
impune, desinformação etc.— e que ninguém sabe exatamente como resolver.
Vamos
imaginar o seguinte: Jair Bolsonaro, em uma de suas lives, anuncia ao
país que descobriu a cura para a impotência sexual. O segredo, segundo
Bolsonaro, que pinçou essa informação nos mais rigorosos estudos da
internet, é transplantar testículos de bode para quem sofre desse mal.
Pergunto:
será que a Justiça deveria atuar para calar a boca de Bolsonaro e
impedir a castração em massa de brasileiros deprimidos com a vida na
alcova?
Antes de responder a essa questão insana, começo por dizer que ela não é insana. Nicholas Carr,
em artigo recente para a New Atlantis, relata o episódio: em 1923, o
médico John Brinkley usou a sua estação de rádio, no Kansas, para
divulgar essa milagrosa cura.
Não
sabemos quantos americanos agiram em conformidade. Apenas que o Estado
interveio e acabou com a festa: estava em causa a saúde pública (e, se
me permite, a integridade física dos bodes).
O ponto de Nicholas Carr é importante e raramente lembrado nos debates sobre a internet: existe uma diferença entre comunicação privada e "broadcasting".
Ao
longo da história humana, as cartas e os telegramas apenas nos
confrontaram com o primeiro modelo. E o consenso, pelo menos na idade
moderna e em Estados democráticos, era que essa comunicação "one-to-one"
era inviolável. Só ditaduras espiam a correspondência privada dos
cidadãos.
O
aparecimento da rádio mudou as regras do jogo e um acontecimento
histórico particular mostrou a urgência de legislar sobre a selva: o desastre do Titanic.
Quando
o navio afundava nas águas gélidas do Atlântico norte, rádios amadoras
começaram a difundir notícias falsas que atrapalharam as missões de
resgate. Algumas dessas notícias informavam que estava tudo bem e que os
passageiros se encontravam a salvo.
Não
era mais possível tratar a comunicação "one-to-many" como se fosse uma
mera conversa interpessoal. O interesse público exigia regulação —e o aparecimento da TV, anos mais tarde, apenas reforçou essa urgência.
Concordo
com Nicholas Carr. Conversas privadas são conversas privadas —e a
primeira exigência às plataformas seria para que tratassem dessas
conversas da mesma forma que os correios ou as empresas de telefone
tratam das comunicações entre os clientes.
Manipular
dados dos usuários para fins comerciais ou políticos é tão intolerável
como abrir cartas alheias ou escutar o que as pessoas falam ao celular.
Repito: só em ditaduras isso é imaginável.
Coisa
distinta é a publicação para as massas. Fato: na internet, nem sempre é
fácil distinguir mensagens entre amigos e o momento em que essas
mensagens se tornam virais.
Mas
não é preciso traçar linhas rígidas entre uma coisa e outra. Basta
exigir às plataformas que sejam capazes de identificar os seus usuários
caso eles tenham de ser responsabilizados judicialmente pelas
informações que divulgam.
Por que motivo eu, colunista, posso responder em tribunal por abuso da liberdade de imprensa —e um usuário anônimo, que tem o mesmo alcance público no Facebook ou no Twitter, escapa a essa sanção?
Aprender
com o passado é repensar, para uma nova era, a diferença crucial entre
falar privadamente e falar publicamente. Que o mesmo é dizer: se Jair
Bolsonaro quiser promover a genitália caprina apenas entre familiares,
está no seu direito. E aposto que muitos brasileiros até apoiam essas
cirurgias.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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