Foi assim, anestesiados por indignações mil, que os brasileiros ouviram de um ministro da Suprema Corte a confissão de que essa mesma corte usurpou o poder presidencial e se aproveitou da pandemia para exercer funções que não estão previstas pela Constituição. Paulo Polzonoff via Gazeta do Povo:
Comecei
a ler a biografia de Lula escrita por Fernando Morais. E, na primeira
linha, já fiquei indignado. Não foi a primeira vez no dia. Aliás, ando
com a impressão de que minha rotina de acompanhar a política brasileira
se transformou numa sucessão de affs. Fulano disse isso, aff. Cicrano
disse aquilo, aff. Olha essa decisão do STF aqui: aff. Viu que professores estão defendendo o uso da linguagem neutra? Aff. Aff. Aff. Mil vezes aff.
Meu problema com aquilo que chamo de “epidemia de indignação”
é justamente este: uma sociedade viciada em ficar indignada por coisas à
toa é incapaz de se indignar quando se vê diante de algo realmente
digno de indignação (sic). Foi assim, anestesiados por indignações mil,
que os brasileiros ouviram de um ministro da Suprema Corte a confissão
de que essa mesma corte usurpou o poder presidencial e se aproveitou da
pandemia para exercer funções que não estão previstas pela
Constituição.
"Nós
já temos um semipresidencialismo com um controle de poder moderador que
hoje é exercido pelo Supremo Tribunal Federal”, disse o ministro Dias
Toffoli, um dos 11 (no momento, 10) que atualmente, e de forma
ilegítima, sem um mísero votinho, seguram as rédeas do Leviatã no país. A
ideia não é exatamente estranha aos brasileiros. Há muito expressões
como “ditadura da toga” estão na boca do povo. O que chama a atenção é a
cara-de-pau com que um ministro do STF confessa ter usurpado o poder no
Brasil. E fica por isso mesmo.
Ao
saber da fala do ministro, ainda na ontem de terça (16), fiquei
esperando pelas manifestações das instituições. Aquelas que, acreditam
os incautos, estão funcionando muito bem, obrigado. Dos pares de Toffoli
no STF, inclusive do ministro Luiz Fux, que ainda em agosto defendeu um
Supremo sem atuação política, nem um pio. Do Congresso, que tem seu
poder usurpado o tempo todo pelo ativismo dos ministros, nadica de nada.
Das instituições civis historicamente comprometidas com a defesa do já
mítico Estado Democrático de Direito, um silêncio vergonhoso. E por aí
vai.
Parvoíce
O
presidente, ou melhor, semipresidente Jair Bolsonaro, em meio a uma
viagem ao Oriente Médio, tampouco se manifestou a respeito da fala
gravíssima de Toffoli. E, tudo bem, a gente até entende que, sob os
coqueirais artificiais em ilhas idem, é difícil se indignar com o que
também pode ser interpretado como um lapso supremo (não é). Mas como
ignorar que, logo depois da confissão absurda e inaceitável, o ministro
Toffoli ainda teve a ousadia de dizer que “presidir o Brasil não é
fácil” – claramente fazendo referência à atuação dele, Toffoli, e do
STF?!
Ninguém
faz nada. Ninguém fará nada. Porque a indignação, quando há, é apenas
estética. Um grande jogo de cena em que atores voluntários fazem o papel
de heróis diante da tela do computador. E tome hashtag. E tome “não é
possível”. E tome pontos de exclamação!!!!! Nessa cadeia alimentar
crudelíssima e nada civilizada, os peixes pequenos, para variar, se
alimentam os detritos que se acumulam no fundo desse aquário, enquanto
os peixões graúdos, embasbacados com o próprio reflexo no vidro, devoram
de bom grado a ração fresquinha que o Estado lhes dá.
Há
exceções, claro, mas sabemos o que acontece aos peixes pequenos que se
revoltam com sua danação de ter de se sacrificar a fim de garantir a
vida boa alheia: eles acabam jogados na privada. Assim, sem mais nem
menos, sem dó nem piedade. Sem nem mesmo uma tipificaçãozinha no Código
Penal para chamar de sua.
Passamos
anos nos indignando com escândalos de corrupção. Todas as manhãs era
aquela coisa de ver os policiais federais na rua e correr para o Google
pesquisar o que significava o nome da operação policial. Depois, mais
anos de indignação com a hipocrisia da esquerda em pautas morais. Quanta
gente não arrancou os cabelos porque Marcia Tiburi ou Felipe Neto
falaram alguma bobagem! Para piorar, os últimos dois anos foram marcados
por uma pandemia que criou várias oportunidades de indignação seletiva -
e principalmente inócua.
Todo
esse caldo borbulhante culminou com a Grande Indignação do dia 7 de
setembro de 2020, quando milhões de pessoas foram às ruas para dizerem:
estamos indignadas. Para quê? Mal sabiam os manifestantes que o poder já
tinha sido usurpado e estava sendo exercido por um STF que, além de
despótico, é pouquíssimo esclarecido. Destronado, o presidente aqui e
ali ainda acena aos seus apoiadores como se tivesse força para reverter
essa situação. Não tem. E sabe o que é pior? Ele sabe disso.
Para
mim, a única dúvida que resta é se daremos prosseguimento a essa
dissimulação. Até quando o pacto de cinismo vigorará? Há quem creia que
uma derrota de Bolsonaro em 2022 significaria a volta à normalidade. Que
o STF abdicará voluntariamente do poder usurpado. Que a Constituição
voltará a ser respeitada. E outras histórias do tipo. Já eu estou
começando a desconfiar de que a parvoíce de Bolsonaro é parte essencial
dessa engrenagem.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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