Carta branca para a Justiça Eleitoral agir como promete ministro será uma ameaça à democracia muito maior do que a que ele diz querer combater. Carlos Alberto Di Franco para o Estadão:
Não
me canso de reafirmar meu respeito ao Supremo Tribunal Federal (STF)
enquanto instituição essencial da República. No entanto, as instituições
não são abstrações. Encarnam-se nas pessoas concretas que a compõem. A
credibilidade da Corte depende, e muito, das atitudes dos seus
integrantes. É a base da legitimidade. Perdida a credibilidade,
queiramos ou não, abre-se o perigoso atalho para o questionamento da
legitimidade.
O
STF, infelizmente, não tem contribuído para fortalecer a sua
credibilidade. É hoje, lamentavelmente, uma das instituições com maior
rejeição. E isso é um grave risco para a democracia.
O
último solavanco institucional, forte e surpreendente, foi motivado por
uma ameaça feita pelo ministro Alexandre de Moraes. Apesar de sua boa
formação jurídica, Moraes tem manifestado uma impulsividade autoritária
que conspira contra a serenidade que se espera da Corte Suprema.
No
mesmo julgamento em que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) absolveu,
por unanimidade, a chapa formada por Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão em
ações impetradas pelo PT, o ministro Alexandre de Moraes deu mais uma
demonstração de que os tribunais superiores seguem bastante dispostos a
agir, na oportuna expressão de editorial do jornal Gazeta do Povo, como
“editores da sociedade”, relembrando infeliz comentário do ex-presidente
do TSE Dias Toffoli. Moraes, que também é membro do Supremo e se
tornará presidente do TSE um mês antes das eleições de 2022, prometeu
cassar e prender quem “repetir o que foi feito em 2018”, em alusão a um
suposto crime cujas provas, ao menos a sua gravidade, nenhum ministro
reconheceu no julgamento da chapa mencionada.
“Se
houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado. E
as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia por atentar contra as
eleições e a democracia no Brasil. (...) Nós podemos absolver aqui, por
falta de provas, mas sabemos o que ocorreu. Sabemos o que vem ocorrendo e
não vamos permitir que isso ocorra. Não podemos criar um precedente,
olha tudo que foi feito vamos passar o pano. Porque essas milícias
digitais continuam se preparando para disseminar o ódio, para disseminar
conspiração, medo, para influenciar eleições, para destruir a
democracia. (...) Houve disparo em massa. Houve financiamento não
declarado para esses disparos. O lapso temporal pode ser impeditivo de
uma condenação, mas não é impeditivo da absorção, pela Justiça
Eleitoral, do modus operandi que foi realizado, e que vai ser combatido
nas eleições de 2022”, afirmou o ministro.
Ora,
se não há provas, não há como admitir que um magistrado afirme de forma
tão categórica que “sabemos o que ocorreu”. Se há provas, mas elas não
foram consideradas graves o suficiente para cassar uma chapa, como é
possível prometer que, no ano que vem, o mesmo procedimento resultará em
cassação e até mesmo em prisão?
Alexandre
de Moraes, em que pese meu respeito por sua pessoa e pelo cargo que
ocupa, é, hoje, um dos ministros cujas ações mais têm contribuído para
corroer as liberdades democráticas no Brasil, graças à sua condução dos
abusivos inquéritos das fake news, dos atos antidemocráticos e das
“milícias digitais”. O verdadeiro problema, que está implícito nas falas
de Alexandre de Moraes, é que o Judiciário parece disposto a se tornar o
que não pode ser: árbitro do que é manifestação de opinião ou do que é
fake news.
A
rigor, o inquérito das fake news não poderia ter sido sequer
instaurado, pois tem como base o artigo 43 do Regimento Interno do STF,
que estabelece: “Ocorrendo infração à lei penal na sede ou dependência
do Tribunal, o presidente instaurará inquérito, se envolver autoridade
ou pessoa sujeita à sua jurisdição, ou delegará esta atribuição a outro
ministro”. Uma vez que as alegadas infrações à lei penal teriam
consistido – não se sabe ao certo – em críticas, insultos e deboches
sistemáticos dirigidos aos ministros Dias Toffoli e Alexandre de Moraes
no ambiente das redes sociais, não há cabimento para a instauração desse
inquérito.
A
gravidade dos vícios de origem do inquérito tem sido unanimemente
apontada por vários juristas, procuradores e estudiosos do Direito. A
relativização disso em face de um problema que se procura combater
significa, neste caso, o abandono completo do princípio de que os fins
não justificam os meios.
Se
apenas porque o pretenso “inimigo” é alguém cuja conduta se considera
muito reprovável nos damos ao luxo de abandonar não meras regras
processuais, mas princípios basilares da Justiça, impomos não uma
vitória contra o erro, mas uma derrota ao Estado Democrático de Direito.
Num
país onde já se instaurou, na prática, a existência do “crime de
opinião”, no qual a perseguição ocorre sob o aplauso de parte da
sociedade e de intelectuais e jornalistas, e em que repressão se dá
apenas contra um lado, a carta branca para a Justiça Eleitoral agir como
promete Alexandre de Moraes será uma ameaça à democracia muito maior
que aquela que o ministro diz querer combater. Na prática, a censura e a
autocensura, fruto do medo da retaliação, já são tristes realidades. E
exigem firme condenação.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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