O bombardeamento que a Netflix tem feito de uma parábola hiperviolenta da brutalidade do capitalismo está totalmente de acordo com o espírito exaurido do capitalismo contemporâneo. Brendan O'Neill, da Spiked, para a revista Oeste:
O
capitalismo finalmente encontrou um rival à altura. Esqueça a revolução
comunista ou a morte do planeta pelo aquecimento, ardentemente
antecipada pelas classes médias depois de o capitalismo vomitar tanto
carbono na atmosfera. Não foi nenhum desses abalos dos tempos que
finalmente colocou a ordem capitalista de joelhos. Não, foi uma série de
TV sul-coreana chamada Round 6, em que cidadãos desesperados e
afundados em dívidas participam de jogos infantis até a morte, em uma
tentativa de ganhar montes de dinheiro. De acordo com marxistas
autoproclamados e efusivos da nova mídia millenial, esse enorme sucesso
da Netflix incitou pessoas no mundo todo a se eriçar contra a ordem
econômica vil sob a qual todos trabalhamos. A intensa popularidade de
Round 6 é prova de que a “consciência de classe global está aumentando”,
afirma um escritor marxista. Tremei, classes dominantes, as assinaturas
da Netflix estão em ascensão!
A
discussão sobre Round 6 se tornou ridícula. Quase tão ridícula quanto a
série em si. Se você não é uma das dezenas de milhões de pessoas que
devoraram essa parábola brilhante e hiperviolenta sobre a modernidade, o
resumo é: 456 pessoas, endividadas, necessitadas, em situação de
desespero, aceitam fazer parte de um jogo de vida ou morte. Um
misterioso homem de terno os induz a ir para uma ilha onde podem ganhar
muito dinheiro e resolver todos os seus problemas. Em um lugar infernal
em tons pastel, com escadas sinuosas e playgrounds infantis em tamanho
gigante, elas competem em tudo, de cabo de guerra a um jogo de red
light, green light (que parece ser a versão sul-coreana da brincadeira
brasileira de “estátua”). Se fracassarem numa prova, ou não conseguirem
terminá-la em tempo”, elas morrem. Um atirador dispara contra elas ou,
no caso do cabo de guerra, o jogo mais chocante da série na minha
opinião, elas caem de uma plataforma elevada, despencando centenas de
metros até a morte. Toda vez que um jogador é eliminado, o prêmio
aumenta. A promessa para o último homem ou a última mulher que
permanecer no jogo é a gorda quantia de 45,6 bilhões de wons — isto é,
R$ 212,5 milhões.
Nada
na série é sutil. A violência é explícita, e o sangue, vermelho vivo.
Cérebros explodem, olhos são arrancados, gargantas são cortadas, ossos
são quebrados. As metáforas são despejadas com tanta intensidade quanto o
sangue. A coisa toda tem a sensação de um sonho erótico de um
socialista universitário. A sociedade “cada um por si”? Presente. O
individualismo desenfreado, tão descontrolado que as pessoas chegam a se
matar por dinheiro? Presente. Capangas sem rosto de uma ordem econômica
extremista? Presente. Aqui, eles vestem macacões vermelhos e máscaras
pretas e usam metralhadoras para impor a hipercompetitividade de um
sistema capitalista digno de história em quadrinhos desenvolvida nessa
ilha estranha e demoníaca. E então descobrimos que a coisa toda está
sendo feita para o entretenimento de bilionários. Usando máscaras
douradas de animal, esses ricaços apostam nos jogadores e se divertem
vendo quem vive e quem morre. Esses bilionários irritantes! Eu sabia que
eram eles.
É
quase heroicamente não original. Tem ecos de Jogos Vorazes e Battle
Royale. A violência tem um quê de Tarantino. E quanto às pessoas ricas —
me mostre um produto da cultura pop contemporânea em que os ricos não
são maus, e eu pago 45,6 bilhões de wons. Como um jornalista observou:
“Existe algum tema mais unificante na cultura pop global do que ‘o
capitalismo é mau’?” Não, não existe. O que não quer dizer que Round 6
não seja boa. Ao contrário, a série é muito boa. Como milhões de outras
pessoas — a Netflix afirma que 142 milhões de lares no mundo todo
assistiram à série, fazendo dela o título mais visto da história da
Netflix —, eu maratonei e adorei. E não só pela tensão dos jogos e pela
violência de desenho animado de cada desfecho. Há também o
desenvolvimento dos personagens. Em especial de Seong Gi-hun (Lee
Jung-jae), o trabalhador de bicos temporários, mergulhado em dívidas,
viciado em jogo, que mora com a mãe, e que é enervante de início, mas
então sua história emerge. É emocionante.
Não,
o problema é a discussão em torno de Round 6. É algo cada vez mais
louco. Claro, existe um pânico moral, do tipo que muitas vezes faz parte
da cultura popular hiperviolenta. A equipe de cuidado e proteção do
Conselho de Bedfordshire, na Inglaterra, enviou um e-mail alertando
educadores e pais para não permitir que as crianças assistissem à série.
Dizia ter ouvido relatos de que “crianças e jovens estão copiando os
jogos”. As crianças do Reino Unido estão construindo robôs gigantes que
conseguem detectar quando um jogador está se mexendo, em vez de ficar
parado, e instruir um atirador a disparar e matá-lo? Parece plausível.
Da mesma forma, escolas de Quebec estão alertando pais para manter seus
filhos longe dessa série maluca. Um psicólogo de Montreal diz que
impedir as crianças de assistir não é o bastante — os pais precisam
também explicar o que é o fenômeno de Round 6 e por que ele é ruim. Sim,
isso não vai despertar nem um pouco o interesse das crianças…
Mas muito mais irritante que o pânico moral tem sido a euforia política. Round 6 está sendo considerada por diversos comentaristas uma denúncia brutalmente dura do capitalismo do século 21. A bíblia dos socialistas dos bairros descolados Jacobin tem um texto que explica “Why You’re Watching Squid Game” (“Por Que Você Está Assistindo a Round 6″, em tradução livre). Porque é chocante e divertido? Não porque você “se identifica com seu retrato das mazelas do capitalismo”. “A distopia de Round 6 é o mundo contemporâneo”, diz a Jacobin. Um jornalista da Vulture afirma que todos conseguimos nos conectar com os “traumas capitalistas que se fazem passar por entretenimento em Round 6”. Mas conseguimos mesmo? A vida sob o capitalismo pode ser ruim para muitas pessoas, mas eu nunca ouvi falar de trabalhadores sendo forçados a esculpir certas formas num favo de mel e levando um tiro na cabeça quando não conseguem.
“Round
6 é uma alegoria do inferno capitalista”, dizem. Ela expõe “os horrores
da desigualdade e da exploração modernas… e destrói o mito capitalista
de que trabalhar duro garante a prosperidade”. Um marxista descreveu
Round 6 como “a mais recente produção da Coreia do Sul que expõe a
realidade brutal do capitalismo — a competição extrema”. Zoe Williams,
no Guardian, afirma que a série deve sua popularidade às “ansiedades da
vida moderna”. Não é um acidente, diz ela, que “dez anos depois da crise
financeira global o mundo inteiro esteja assistindo a um drama cuja
mensagem central é ‘vou conseguir pagar essa dívida? Não seria mais
fácil participar de um jogo mortal?’”. Sei que a esquerda de classe
média contemporânea está constantemente em busca de centelhas de
radicalismo — ou, pelo menos, do que entende como radicalismo —, mas a
ideia de que milhões de pessoas comendo pipoca e sentindo uma emoção
fugaz ao ver pessoas morrendo seja uma expressão de descontentamento com
o estágio mais recente do capitalismo me parece especialmente bizarra.
Até
mesmo a Coreia do Norte está entrando na história. Sem querer ser
superada pelo Guardian, pela Jacobin e por todos os demais esquerdistas
que fazem fila para aclamar a exposição que Round 6 faz das realidades
brutais do capitalismo, o reino ermitão insistiu que essa série
sangrenta confirma quanto a Coreia do Sul e o mundo capitalista de modo
geral são moralmente corruptos. “Round 6 trata da sobrevivência de uma
sociedade capitalista em que você pode ganhar dinheiro se vencer por
quaisquer meios; caso contrário, você morre”, afirmou o site estatal
Arirang Meari. Soando quase indistinguível dos esquerdistas ocidentais
aflitos que veem em Round 6 as agitações do desprezo global pelo
capitalismo, o site norte-coreano aclamou Round 6 por “trazer a fúria em
relação a essa sociedade injusta em que as pessoas sem dinheiro são
tratadas como peças de xadrez que são movimentadas pelos ricos”. Alguém
dê a esse colunista norte-coreano anônimo uma coluna no HuffPost.
É
indiscutivelmente verdade que Round 6 explora os temas da desigualdade,
do endividamento e do desespero. Como comentei, não há nada de sutil.
Isso fica muito claro no personagem principal, Seong Gi-hun, que, como
descobrimos, era funcionário numa fábrica de carros antes de perder o
emprego e precisar começar a fazer trabalhos temporários como motorista.
A greve que virou motim a que ele se refere quando recorda como ficou
tão pobre é real — é uma referência ao fechamento da fábrica SsangYong
em 2009 e aos subsequentes protestos dos funcionários contra as ações
destruidoras de seus chefes. Mesmo assim, a empolgação sobre a mensagem
anticapitalista de Round 6, e seu potencial de identificar a consciência
de classe por meio da Netflix (!), captura quão superficial e
problemático o anticapitalismo contemporâneo se tornou.
A
primeira coisa a ser notada é que Round 6 é, ela mesma, um fenômeno do
capitalismo do século 21. Ele enriqueceu as novas oligarquias do grupo
Netflix, esses suseranos da cultura da sociedade capitalista
contemporânea, a um nível extraordinário. A Bloomberg avalia que Round 6
aumentou o valor das ações da Netflix para US$ 19 bilhões. A própria
Netflix afirma que a série gerou US$ 900 milhões de “valor de impacto”.
Todos os aspectos de Round 6 estão sendo monetizados. É possível comprar
moletons de Round 6 na Netflix; há conversas sobre um videogame; a
segunda temporada parece ser uma certeza — mais “valor de impacto” para
as novas oligarquias. É uma espécie curiosa de anticapitalismo que é
produzido pelas, e enriquecedor para, elites capitalistas.
E
então existe a questão do que o deleite político em relação a Round 6
nos diz sobre o anticapitalismo hoje. Fundamentalmente, ele confirma a
que ponto o anticapitalismo se tornou um passatempo para as elites woke
do Ocidente, e não um movimento sério empreendido por uma classe
trabalhadora revolucionária. À medida que Round 6 tem tocado um
sentimento político, é o sentimento passivo da repulsa moralista em
relação ao capitalismo compartilhado por parcelas significativas das
classes médias ocidentais, e não qualquer coisa parecida com a raiva
proletária expressada na revolta ocorrida na Coreia do Sul em 2008
contra os chefes da fábrica de carros. Isso foi resumido de forma
brilhante em um dos textos mais efusivos da Jacobin. Uma das melhores
coisas de Round 6, ele diz, é que a série não apenas representa uma
crítica da maneira como o capitalismo está “se apropriando da mais-valia
do nosso trabalho” — que cansaço! Não, ela também mostra que os
capitalistas são “sádicos promovendo uma brutalidade que se torna
possível por causa de um sistema global totalmente hegemônico”.
Aqui
está. A mudança de um anticapitalismo enraizado em uma compreensão
histórica e revolucionária das relações sociais para um anticapitalismo
alimentado pelo moralismo da classe média, por um desprezo arrogante de
atitudes e comportamentos questionáveis de membros individuais da classe
capitalista. Quem quer conversar sobre aquela velha ideia marxista de
que o capitalismo se apropria da mais-valia do nosso trabalho quando
você pode se remoer sobre a crueldade e a maldade dos ricos? Essa visão
dos capitalistas como “sádicos” fica especialmente pronunciada entre os
millennials que se dizem socialistas. Isso se vê em toda parte, da
Novara Media, organização de mídia alternativa de esquerda independente
com sede no Reino Unido, aos jovens brancos de classe média seguidores
do senador norte-americano Bernie Sanders, dos protestos raivosos contra
“o 1%” a todos os produtos de Hollywood e Netflix em que os ricos são
sempre corruptos. Do movimento antiglobalização do fim dos anos 1990 a
cada editorial do Guardian sobre o flagelo do neoliberalismo, o
“anticapitalismo” foi colonizado pelas repulsas da classe média, em vez
dos sentimentos revolucionários das classes trabalhadoras.
Esse
é o verdadeiro atrativo político de Round 6 para a nova esquerda
moralista — ela permite que os esquerdistas se deliciem com sua fantasia
de que o capitalismo é a criação de indivíduos sádicos, em vez de ser
uma ordem social com relações problemáticas específicas. Na violência
perversa de Round 6, executada para o prazer de bilionários cobertos por
máscaras douradas, eles veem sua visão do capitalismo dramatizada. Uma
visão em que a ordem social e econômica passa a ser reduzida a uma
relação de violência entre os ricos sádicos e os pobres miseráveis. Isso
reflete a tendência anti-intelectual e, na verdade, antimarxista de boa
parte da esquerda contemporânea, que se iludiu ao pensar que sua
aversão pessoal em relação aos excessos do capitalismo tem qualquer
coisa em comum com a luta histórica para desenvolver uma crítica
revolucionária sobre a inabilidade do capitalismo de absorver todo o
potencial da humanidade.
É
por isso, aliás, que não há nada contraditório em uma entidade
capitalista — Netflix — ser a responsável por transformar Round 6 em um
fenômeno global. O novo anticapitalismo, exatamente porque seu
combustível é a repulsa passiva, em vez da revolução ativa, não
representa nenhuma ameaça à ordem capitalista. Pelo contrário, ele se
presta lindamente à reabilitação moral do capitalismo. A observação de
que não existe “um tema mais unificante na cultura pop global do que ‘o
capitalismo é ruim’” é bastante apropriada. O anticapitalismo se tornou o
meio pelo qual o capitalismo tenta restaurar sua autoridade moral e sua
relevância para o público do século 21. Aliás, o anticapitalismo é a
forma que o capitalismo assumiu. Seja a Netflix promovendo uma parábola
da brutalidade capitalista ou a Apple atacando a “supremacia branca” ou
toda liderança capitalista do Ocidente se reunindo na Conferência das
Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP) nos próximos dias para
lamentar o impacto tóxico da burguesia no planeta e a necessidade de
controlar o crescimento econômico, falar mal do capitalismo se tornou a
essência do capitalismo. A ordem capitalista é mantida hoje não por um
ataque thatcherista aos oponentes socialistas, mas por meio de um
mecanismo de autodepreciação capitalista — pela substituição de uma
ambição econômica da velha burguesia de refazer o mundo à sua própria
imagem por um desejo moralista de reordenar o mundo de acordo com o
autodesprezo da burguesia do século 21. O bombardeamento que a Netflix
tem feito de uma parábola hiperviolenta da brutalidade do capitalismo
para dezenas de milhões de lares está totalmente de acordo com o
espírito exaurido do capitalismo contemporâneo. Nas palavras de Mark
Fisher: “Longe de enfraquecer o realismo capitalista, o anticapitalismo
gestual na verdade o reforça”.
O
único problema nessa citação de Fisher, de seu livro muito inteligente
Capitalist Realism, é a palavra “gestual”. Essa visão do anticapitalismo
como um gesto manipulador feito pelas próprias elites capitalistas,
presumivelmente para reprimir o anticapitalismo revolucionário genuíno,
corre o risco de subestimar a profundidade dos sentimentos
anticapitalistas que existem dentro da classe capitalista hoje em dia.
Ela não está interpretando o anticapitalismo, ela de fato o sente. Essas
pessoas realmente acreditam, como Greta Thunberg, que a Revolução
Industrial foi um erro, que o crescimento não deveria ser o principal
objetivo da humanidade, que a África não pode se tornar como a América.
Elas perderam a fé em seu próprio projeto histórico, não por cliques,
downloads ou assinaturas da Netflix, mas para valer. E isso é um
problema para aqueles de nós que estão tão envolvidos nos ideais de
crescimento e progresso que queremos ir além das limitações do
capitalismo e encontrar uma nova forma de criar um mundo de abundância. A
crítica contemporânea do capitalismo é mais do que inútil para nós,
porque ela se baseia na crença de que o capitalismo é pretensioso,
grande e arrogante demais, em vez da leitura marxista de que o
capitalismo “realizou maravilhas muito maiores do que as pirâmides do
Egito, os aquedutos romanos e as catedrais góticas” e “conduziu
expedições que ofuscaram todos os êxodos de nações e cruzadas
anteriores”, mas que muito mais pode ser feito quando a humanidade
assumir o controle significativo de seu destino social e econômico.
Então,
por favor, veja Round 6. Você vai adorar. Mas, se você se pegar
celebrando sua crítica hiperviolenta do capitalismo do século 21, é
possível que você esteja mais interessado em observar passivamente a
suposta imoralidade de seus indivíduos abastados do que em refletir com
seriedade sobre como o mundo pode ser transformado de uma forma tão
radical que alguém como Seong Gi-hun possa nunca mais existir no futuro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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