Por falta de opção, o destino de todo conservador é ter que encontrar algo para apreciar esteticamente nos panfletos políticos das correntes opostas. Aceito isso. Mas não consigo dizer nada bom sobre Marighella. Apesar de infantil, não é divertido. Via Crusoé, a crônica de Alexandre Soares Silva
Não
é preciso fazer arte de direita, só é preciso fazer um pouco de arte
que não seja de esquerda. De vez em quando, por que não? Só pra variar
um pouco?
Uma
história apolítica, umazinha que seja, entre as vinte que aparecem
todos os dias no streaming, só que essa seria (imagine que coisa louca)
sem mensagens políticas subliminares que são tão pouco subliminares que
uma mão praticamente sai da tela e tatua a mensagem na sua testa
enquanto você berra e o sangue escorre pela sua cara e encharca o seu
sofá. Não seria ótimo? Não seria refrescante?
Nem
sei o que seria arte de direita. Seria igualmente horrível, embora pra
falar a verdade acho que talvez fosse levemente menos desagradável,
porque essa seria pelo menos uma coisa horrível que concorda comigo.
Queria ver umas coisas que concordam comigo de vez em quando.
Uma
coisa sobre a arte de esquerda hoje é que eles ataram as próprias mãos.
Embora sejam compelidos monomaniacamente a falar sobre isso, não podem
fazer uma história séria sobre o relacionamento entre as raças, as
classes ou os sexos, porque vão ser obrigados pelo próprio lado deles a
simplificar e mentir.
Tudo
o que fazem são infantilidades. O branco mau, o branco sem noção que
não percebe o próprio racismo, o patrão mau, a dona de casa má, a
empregada sofrida com sua fezinha vista condescendentemente lá de cima, o
general mau, impotente e (surpresa) homossexual, a mulher frágil porém
forte, apanhando da sociedade patriarcal dos anos 30/40/50 porém
guerreira etc. Esse é todo o material que os artistas de esquerda podem
fazer agora. São mais censurados por eles mesmos do que jamais foram por
qualquer DIP ou SNI, porque antes conseguiam burlar DIPs e SNIs, mas a
si mesmos não conseguem e nem querem burlar.
Então não é preciso fazer arte de direita,
só é preciso fazer a arte que a esquerda não consegue mais fazer: arte,
enfim, qualquer arte. O fato é que ao fazer qualquer arte, de qualquer
lado, você já está contrariando a esquerda:
eles só podem agora produzir e consumir panfletos, e vão cada vez mais
lutar para impedir a existência de qualquer coisa que não seja um
panfleto, mesmo dentro das suas próprias mentes.
Um
artista de direita que fosse esperto (e suficientemente artista)
poderia fazer arte de esquerda agora, arte de esquerda como se fazia nos
anos 60, adulta, complexa, essa papagaiada toda: um general que tem um
lado bom, um terrorista que você até entende o lado dele, mas é
evidentemente meio canalha com a mulher ou com os filhos ou com os
colegas, um filme em que a vítima de racismo é um pouquinho desagradável
e difícil de lidar – o que se costumava chamar de um retrato adulto,
complexo, multifacetado –, e com isso esse artista hipotético de direita
chocaria tanto a esquerda atual que seria cancelado a ponto do seu nome
ser apagado da sua certidão de nascimento.
Por
falar em panfleto, por falar em simplificações, por falar em
infantilidades, por falar em estereótipos, por falar em manipulação, por
falar em clichês, por falar em doutrinação inartística, acabei de ver o
filme Marighella, de Wagner Moura. Alguns pontos sobre o filme:
*
As vozes ao mesmo tempo sussurradas e empostadas do cinema brasileiro. O
ator brasileiro domina a arte do sussurro canastrão, um som que nenhuma
garganta humana é capaz de reproduzir no seu habitat natural, a vida.
* Diálogos que têm toda a naturalidade de um livro didático de O.S.P.B. dos anos oitenta.
*
Na tentativa de racializar tudo, os policiais sempre têm olhos azuis e
gritam “Corre, negro!”, antes de atirar pelas costas em inocentes
pobres. Todo mundo que tem olhos claros é mau, inclusive um adolescente.
Todo mundo que é bom, ou é negro ou tem olhos escuros. Todo mundo que é
um pouco gordo é mau. Todo mundo que é careca é mau. Os terroristas são
uniformemente bondosos e só se distinguem uns dos outros por graus
variados de bravura indômita e ternura.
*
Tem um americano malvado que fala “motherfuckers” e que discursa
(acanalhadamente e segurando um copo de whisky) para generais, com
evidente physique bolsonariste (homens de meia-idade, corpulentos, meio
carecas e emanando boçalidade pelos poros sujos dos narizes de batata).
Os generais são filmados grotescamente de perto nas suas caras
gordurosas, enquanto riem de piadas sobre tortura.
*
Caso alguém ache o filme sutil demais, a câmera foca em uma placa
dizendo BRASIL – VERDADE E JUSTIÇA por trás do policial torturador
aloirado de olhos claros fumando cinicamente.
*
Tem uma cena de explosão em que o terrorista continua andando sem virar
pra trás, por ser cool demais, como num filme do The Rock.
* Termina com os atores cantando o Hino Nacional, enquanto choram e são intensos.
Por
falta de opção, o destino de todo conservador é ter que encontrar algo
para apreciar esteticamente nos panfletos políticos das correntes
opostas. Aceito isso. Mas não consigo dizer nada bom sobre Marighella.
Apesar de infantil, não é divertido. São 2 horas e 37 minutos que custam
mais a passar do que quando operei a fimose sem anestesia suficiente.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário