Em apenas um parágrafo, Machado de Assis praticamente profetiza a transformação da arte que ocorreria no século XX e que acabaria por reduzi-la praticamente toda a entretenimento. Via Gazeta do Povo, a crônica de Paulo Polzonoff:
Coincidência
pura. Depois de algumas cervejas e discussões divertidamente acaloradas
sobre minha implicância recente e passageira contra Machado de Assis,
meu amigo André (o “boêmio que nunca tinha comido lambari frito”) me
recomenda ler os contos machadianos. Os mesmo que li há muito tempo numa
celebrada edição – mas dos quais me lembro pouco. Ainda tontinho de
alegria fraterna, compro uma coletânea que me parece satisfatória e
espero. Sentado, que de pé cansa.
Chega
o livro e eu mal posso esperar para me sentar na cadeira de balanço
recém-comprada e lê-lo com a devida vênia – e quiçá até as devidas
mesóclises. É o que faço assim que surge a primeira oportunidade. Logo
na segunda página do conto “O Machete”, porém, uma surpresa nada
agradável. Ainda mais para alguém que já implica desnecessariamente com
Machado de Assis.
Estou
falando de uma vírgula separando verbo e objeto ou sujeito e predicado.
“Deve ter sido um deslize do editor”, penso, decidido a ser generoso
com o escritor que eu sei que é grande – embora não o considere o maior.
Uma ou duas páginas adiante, contudo, me deparo com um parágrafo
especialmente problemático. Não são nem uma nem duas, e sim três
vírgulas pessimamente colocadas. Vírgulas que seriam imperdoáveis para
qualquer escritor. Ei-lo:
“Carlota
era filha de um negociante de pequena escala, homem que trabalhou a
vida toda como um mouro para morrer pobre, porque a pouca fazenda que
deixou, [sic] mal pôde chegar para satisfazer alguns empenhos. Toda a
riqueza da filha era a beleza, que a tinha, ainda que sem poesia nem
ideal. Inácio, [sic] conhecera-a ainda em vida do pai, quando ela ia com
este visitar sua velha mãe; mas só a amou deveras, [sic] depois que ela
ficou órfã e quando a alma lhe pediu um afeto para suprir o que a morte
lhe levara”.
Dizer
que Machado de Assis era analfabeto seria um exagero, além de
deselegante e semanticamente equivocado. Mas, em não tendo mudado a
gramática, o que explica, então, a manutenção dessas vírgulas aí?
Incontáveis foram os editores que, ao longo das décadas, poderiam ter
atualizado a ortografia e corrigido esses erros. Ou será que Machado de
Assis é um ídolo literário tão absoluto que até seus equívocos devem ser
admirados?
"Drão, o amor da gente é como um grão"
Superada
a questão das vírgulas (que, depois desse malfadado parágrafo
gramaticalmente ébrio, parecem ter voltado ao normal), continuo a ler
para descobrir que Machado de Assis, com este conto originalmente
publicado em 1878, previu melancolicamente a eleição de Gilberto Gil
para a Academia Brasileira de Letras.
O
conto fala de Inácio, um artista com “a” maiúsculo e todo trabalhado no
rococó. Do tipo que não existe mais. Violoncelista, Inácio é apaixonado
pela música, claro, mas é um compositor contido, que não busca maiores
aplausos e que vê no seu instrumento apenas uma forma de expressar
emoções elevadas. Inácio, se casa com Carlotinha, uma mulher que, no
conto, representa o, digamos, ânimo da multidão. Ela não é exatamente
ignorante, mas também não é lá muito esclarecida. Ela se esforça para
compreender e até admirar a arte do marido. Mas.
Mas
eis que Inácio recebe a visita de dois estudantes de direito. Um deles,
o Barbosa, tocava o machete – que é assim uma espécie de cavaquinho. Ao
contrário do soturno violoncelo, reservado apenas às emoções muito
profundas (e raras) de Inácio, o machete está destinado à alegria
ruidosa e abundante de quaisquer encontros sociais. Menos, talvez, de um
velório. “Que rivalidade era aquela entre a arte e o passatempo?”, é a
pergunta que o narrador faz ao leitor. E é ela que explica o incômodo
causado pelo ingresso do machete Gilberto Gil numa casa de violoncelos
como a Academia Brasileira de Letras.
A
resposta à questão retórica é um vespeiro no qual não pretendo pôr a
mão. Não hoje. Ela envolve noções altamente espiritualizadas do que
significa a arte e até uma diferenciação fora de moda entre felicidade e
alegria. Além disso, para respondê-la eu teria de travar algumas
batalhas que sei de antemão perdidas. A popularidade e o sucesso dela
decorrente são hoje objetivos declarados de todos aqueles que se
pretendem artistas. E quem questionar isso, você sabe, não passa de um
invejoso.
Mas,
a título de curiosidade, fica aqui o parágrafo em que Machado de Assis
descreve bem a impressão que a arte popular causava nele e nos seus
pares fundadores da antes solene Academia Brasileira de Letras:
“(...)
Ali postos os quatro, numa noite da seguinte semana, sentou-se Barbosa
no centro da sala, afinou o machete e pôs em execução toda a sua
perícia. A perícia era, na verdade, grande; o instrumento é que era
pequeno; O que ele tocou não era Weber nem Mozart; era uma cantiga do
tempo e da rua, obra de ocasião. Barbosa tocou-a, não dizer com alma,
mas com nervos. Todo ele acompanhava a gradação e variação das notas;
inclinava-se sobre o instrumento, retesava o corpo, pendia a cabeça ora a
um lado, ora a outro, alçava a perna, sorria, derretia os olhos e
fechava-os nos lugares que lhe pareciam patéticos. Ouvi-lo tocar era o
menos; vê-lo era o mais. Quem somente o ouvisse não poderia
compreendê-lo”.
Com
esse parágrafo, Machado de Assis praticamente profetiza a transformação
da arte que ocorreria no século XX e que acabaria por reduzi-la
praticamente toda a entretenimento. Transformação essa que teve como
consequência o Nobel de Literatura para Bob Dylan e o ingresso de
Gilberto Gil para a antes tradicional Academia Brasileira de Letras.
Gosto sobretudo de quando ele diz que Barbosa não tocava com a alma, e
sim com os nervos. E isso que Machado de Assis nunca ouviu rap, hein?!
Gosto ainda da descrição da apresentação de Barbosa – que se assemelha
muito a qualquer show de música popular, seja ela rock ou funk.
O
fato é que, em “O Machete”, Carlotinha se deixa seduzir pela “energia à
flor da pele” da música popular, deixando a melancolia profunda do
violoncelo para trás. E com um filho pequeno para criar. Volúvel,
instável e sentimental, Carlota não é na história apenas uma mulher, e
sim toda a multidão que os artistas hoje, se anseiam à imortalidade
oficial, precisam cortejar, seduzir e desposar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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