A resposta não pode estar dependente de Galileu ter tido razão. Que sucede quando o negacionista não tem razão ou quando não consegue demonstrar que a tem? Não continua a ser errada a condenação? Ricardo Dias de Sousa para o Observador:
É
preciso cuidado com as simplificações. Por um lado, está a de Galileu,
silenciado sem contemplação pelos detentores do poder. Acusado de
negacionismo (ou heresia), Galileu é um aviso para as gerações futuras
da iniquidade do poder político. Por outro, aqueles que afirmam que
Galileu não era negacionista pois defendia a verdade cientificamente
demonstrada. Negacionista era a Igreja, todos os que hoje se comportam
da mesma forma anticientífica. Em comum, ambas reclamam ser detentoras
da razão. É natural. Galileu representa no panteão moderno o último
mártir do enfrentamento entre a Fé e a Razão, uma alegoria tardia, do
séc. XIX. Símbolo da crença moderna na infalibilidade do método
científico.
Ao
contrário do que reclamam, a resposta não pode estar dependente de
Galileu ter tido razão. Que sucede quando o negacionista não tem razão
ou quando não consegue demonstrar que a tem? Não continua a ser errada a
condenação? A resposta de ambas versões seria não. Se Galileu estava
equivocado a condenação seria justa. E se ninguém o admite é porque
dificilmente alguém admite estar equivocado, em particular no Caso
Galileu, onde “toda a gente sabe” que Galileu tinha razão. Só que a
grande maioria não sabe que Galileu nunca conseguiu provar que tinha
razão.
Começando
pelo óbvio, ninguém condenou Galileu por dizer que a Terra era redonda.
Que a Terra era uma esfera toda a gente sabia. Galileu também não foi
condenado por modelar o Sol no centro do Universo. O Calendário
Gregoriano, concluído três décadas antes, já tinha sido baseado nas
Tabelas Prussianas que, por sua vez, se elaboraram utilizando os
cálculos de Copérnico. Também não foi condenado de heresia. Em 1616, foi
proibido de ensinar ou defender o heliocentrismo e, em 1633, culpado de
suspeita de heresia (uma acusação comparativamente menor) por não
respeitar essa proibição.
O
motivo pelo qual Galileu foi censurado, detido e coagido pelo Santo
Ofício, foi por afirmar que a Terra se movia, condição imprescindível
para o heliocentrismo poder ser uma explicação factual do Universo (e
não um modelo). A famosa frase que Galileu poderá ter dito (mas,
provavelmente não) no momento em que abjurava “e, no entanto, move-se”
resume a questão. Tudo dependia dessa prova. Só que a prova de que a
Terra gira sobre si própria revelou-se bastante evasiva. Foi
inclusivamente posterior à de que gira à volta do Sol. A Translação
ficou demonstrada com descoberta acidental da aberração da luz estelar
em 1729 por Bradley. A Rotação demorou muito mais tempo. Só se conseguiu
medir em 1851 em Paris, por Focault e o seu famoso pêndulo.
A
Teoria Heliocêntrica como explicação factual do Universo implica
obviamente que a Terra gire sobre si mesma, mesmo que tal não se consiga
demonstrar. A partir do momento em que é aceite como facto, o mesmo
sucede com a rotação da Terra, mesmo sem prova. O problema para Galileu
foi que, em 1616, aquilo a que chamaríamos hoje o “consenso científico”
era que a Terra se encontrava imóvel. Apesar da divulgação do uso dos
cálculos de Copérnico durante o séc. XVI, até 1616 não deve ter havido
mais de uma dúzia de cientistas a quem a obra de Copérnico tenha
convencido como explicação física do Universo.
Aquando
do segundo julgamento, em 1633, embora já houvesse uma maior aceitação
do heliocentrismo, o modelo geo-heliocêntrico, baseado nas observações
de Tycho Brahé, ainda não tinha sido refutado. Uma versão deste, com
órbitas elípticas, até explicava melhor que o Copernicano o movimento
dos corpos celestes, com a óbvia vantagem de não contrariar as
Escrituras. É que o Diálogo, que vale a condenação do Santo Oficio em
1633 (talvez mais por ridicularizar a opinião do Papa que pelo conteúdo
astronómico), põe em confronto os modelos Copernicano e Ptolomaico de
órbitas circulares num momento em que a comunidade de astrólogos já se
dividia essencialmente entre os modelos de Kepler e Tycho de órbitas
elípticas. Ou seja, quando Galileu abjura, o sistema Copernicano já está
praticamente ultrapassado.
Apesar
da crescente popularidade, o consenso heliocêntrico ainda teve que
esperar mais algumas décadas. Em 1651, o astrónomo Giovanni Batista
Riccioli publicou o Almagestum Novum, o tratado astronómico mais
completo elaborado até então, onde ainda enumerava 126 argumentos a
favor e contra das duas hipóteses (77 a favor do Geocentrismo e 49
contra). Só a partir de 1665 é que a opinião científica começou a pender
para o heliocentrismo com a demonstração da Segunda Lei Planetária de
Kepler por Mercator e, notoriamente, a partir 1686, com o anúncio da Lei
Universal da Gravitação de Newton, que confirma a Terceira Lei
Planetária de Kepler. Em suma, para fazer valer a sua defesa em 1616,
Galileu necessitava demonstrar que a Terra se movia a uma audiência
científica bastante incrédula.
Isto
não significa que Galileu estivesse louco. Mesmo sem uma prova cabal de
que a Terra se movia, Galileu dispunha de vários indícios que lhe
faziam acreditar que a razão lhe assistia, começando pelo facto,
sobejamente admitido, mesmo pelos maiores defensores de modelo
Ptolomaico, de existirem várias falhas entre o que este previa e o que
se observava. Só que a questão nunca foi o modelo. A questão mais
profunda, onde se inseria a questão do movimento terrestre, era a
concepção aristotélica do Universo.
Com
a observação dos cometas a finais do séc XVI e de supernovas em 1572
(por Tycho) e 1604 (por Kepler), o Universo eterno imutável e perfeito
de Aristóteles começava a entrar em decomposição. O momento era oportuno
para Galileu e a publicação de Siderius Nuncius em 1610 trouxe-lhe
merecidas reputação e fama. Olhando pelo telescópio Galileu viu muitas
estrelas desconhecidas, 4 satélites à volta de Júpiter e que a Lua tinha
montanhas como a Terra. Essas observações punham em causa o firmamento
aristotélico. Que sentido tinha num Universo imutável e perfeito haver
coisas novas ou invisíveis à vista desarmada? Quando soube que o
acusavam, correu a Roma para defender as suas ideias perante o Santo
Ofício. Era normal que se mostrasse confiante e até um pouco arrogante.
Galileu nunca foi conhecido pela modéstia. Convenhamos que possuía
bastantes trunfos na manga e deve de ter ficado perplexo com a
obstinação com que os principais cientistas recusavam deixar morrer a
ideia de uma Terra imóvel. Dizem que a ciência avança um funeral de cada
vez.
Admito
que esta explicação sucinta, sem qualquer referência a questões de fé,
pareça incompleta. Afinal de contas, é inegável que em 1616 a Teoria
Heliocêntrica (aquilo a que a Igreja chamava a doutrina de Pitágoras) de
que a Terra se movia foi declarada contrária às Escrituras,
nomeadamente à famosa passagem em que Josué ordenou que o Sol parasse no
céu. Esta é geralmente a prova conclusiva para quem defende que o Caso
Galileu foi um enfrentamento entre a Fé e a Razão: a refutação assenta
num argumento teológico. Só que a Teologia também se baseava em
argumentos científicos.
A
famosa carta enviada em 1615 pelo cardeal Belarmino a Foscarini, um
padre carmelita, amigo de Galileu e também heliocentrista, é bastante
elucidativa a este respeito. Nela, o cardeal aconselha os dois a
tratarem o heliocentrismo como mera hipótese matemática. Em relação às
Escrituras, o cardeal afirma na missiva que “se existisse uma
demonstração verdadeira de que o Sol está no centro do mundo e a Terra
no terceiro céu, e que é a Terra a que gira à volta do Sol e não o
contrário, então teríamos que proceder com grande circunspeção na
explicação das passagens das Escrituras que parecem dizer o contrário.
Deveríamos dizer que não as entendemos e não declarar falsa uma opinião
que se provou ser verdadeira. Mas eu não acredito que exista tal
demonstração, até que esta me seja apresentada.” Trocado por miúdos:
Belarmino está a dizer que as Escrituras são a verdade de qualquer das
formas, e que Foscarini (e Galileu) não deveriam tentar levar mais além
do campo matemático a ideia de que é a Terra que gira à volta do Sol
porque isso não está demonstrado. Galileu ou bem ignorou o conselho ou
já não foi a tempo de retroceder.
Porque
motivo é preciso levar a questão mais além do campo matemático? Porque
mesmo o modelo Ptolomaico nunca passou na cabeça dos astrónomos da época
de uma representação. A realidade do Universo era a Física
Aristotélica. E para gente supostamente tão atrasada, alguma espécie de
prova empírica do contrário teria sido importante. Essa é a segunda
conclusão que se pode retirar da carta de Belarmino. Só que, como vimos
antes, as provas demoraram mais de 200 anos a aparecer. Em 1616 a
posição científica mais razoável era que a Terra se encontrava imóvel. A
questão do movimento da Terra não foi uma questão de Fé contra a Razão.
Pelo contrário, a Teologia interpretou a Escritura de acordo com os
conhecimentos científicos da época.
O
argumento teológico assentava no conhecimento da realidade, quer dizer,
em argumentos científicos e não apenas numa interpretação literal das
Escrituras. Aliás, a Igreja Católica nunca defendeu que as Escrituras
deviam ser interpretadas literalmente. A interpretação literal da Bíblia
não só é muito mais frequente em protestantes do que em católicos, como
é muito mais comum hoje em dia do que era em 1616. Para poder
interpretar a Bíblia de forma literal era preciso saber ler. A maior
parte das pessoas não sabia. No Concílio de Trento a Igreja
autoproclamou ser interprete suprema das Escrituras pelo que, em teoria,
poderia até ter declarado que a passagem de Josué não devia ser
interpretada literalmente, mas decidiu-se pelo contrário.
O
séc. XVII foi um período revolucionário para as ciências naturais. Se
por um lado é compreensível que a mudança de paradigma para uma
explicação matemática dos fenómenos físicos, de que Galileu era
pioneiro, corria o risco de não ser aceite pela comunidade científica, o
mesmo não se pode dizer das consequências políticas e penais (Galileu
foi condenado a prisão domiciliária) que foram absolutamente escusadas
e, felizmente, ainda chocam a sensibilidade moderna. O argumento
teológico é, em realidade, um elemento político na justificação da
sentença. Fazer da questão um enfrentamento entre Fé e Razão, quando
está claro que havia ciência dos dois lados, só serve para nos distrair
do verdadeiro problema.
Durante
mais de meio século, a Igreja Católica até tinha convivido
relativamente bem com o heliocentrismo e Galileu não tinha tido nenhum
problema com as autoridades eclesiásticas. Pelo contrário, foi bem
recebido pelo Colégio Romano em 1611 e os jesuítas encontravam-se entre
os seus maiores defensores. Só que os inimigos de Galileu, ou quem sabe
se dos jesuítas, forçaram o Santo Ofício a ter que tomar uma decisão a
respeito de uma questão sobre a qual tudo indica não haver muita vontade
de decidir. O que Galileu fez, de forma involuntária, foi desafiar
esses poderes a, mais do que defender uma verdade oficial pré-existente,
ter que a definir. Na véspera da Guerra dos Trinta Anos, que iria
alterar radicalmente as fronteiras na Europa, a decisão sobre a
heliocentricidade transformou-se numa questão política, numa
oportunidade para o papado recuperar o poder que sentia escapar. Nesse
contexto é provável que a Igreja tenha querido aumentar o seu prestígio
apostando a sua autoridade na hipótese que acreditava plenamente ser a
mais verosímil.
O
que a Igreja não percebeu então, e continuamos a não querer perceber
hoje, é que qualquer decisão política de estabelecer uma verdade oficial
sobre temas científicos, inclusivamente com a melhor das intenções, tem
o efeito perverso de interferir no próprio processo de formas não
intencionadas, imprevisíveis e com consequências potencialmente
desastrosas. Nenhuma decisão política é feita exclusivamente tomando em
consideração critérios científicos. É impossível. As sociedades são
demasiado complexas para que o cálculo político, mesmo que baseado
nalguma ciência, produza soluções perfeitas e, quando os principais
beneficiários são potencialmente aqueles indivíduos ou grupos que em
cada momento sustentam o regime, necessitamos de travões a essa
interferência se não queremos que a propaganda ou a ideologia tomem
conta. Esses travões chamam-se Liberdade de Expressão e Direitos
Naturais. Dar carta branca aos governos para interferir na vida das
pessoas, para as injectar, para as fechar em casa, para as impedir de
trabalhar é escancarar as portas a essa interferência. Tentar silenciar
quem não acata é abrir o caminho ao desastre.
Podemos
confiar em que os esforços de meios de comunicação e redes sociais para
ridicularizar e calar aqueles que discrepam do pensamento oficial,
aqueles que questionam a vacinação de populações saudáveis de baixo
risco, ou as consequências económicas de parar a actividade não vai
impedir o desenvolvimento de conhecimento útil? Apostar exclusivamente
nos “especialistas” ungidos pelos governos, pelas farmacêuticas ou pelos
gigantes da tecnologia vai permitir encontrar uma solução? Trofin
Lysenko é um exemplo muito mais próximo e fácil de compreender que
Galileu de como a cegueira ideológica, os interesses políticos, e o
monopólio da violência estatal se aliaram para implementar políticas que
agravaram o problema da pouca produtividade agrícola da URSS a coberto
de critérios supostamente científicos e espalharam a fome e a penúria
que supostamente queriam erradicar. Até nisso a Igreja foi mais
inteligente. Dois anos depois da condenação do heliocentrismo, a
proibição foi parcialmente revogada, permitindo-se a publicação de
versões “corrigidas do erro pitagórico” das obras proibidas. Uma versão
de De Revolutionibus de Copérnico esteve disponível logo em 1621. A
informação que a obra continha para o desenvolvimento da Cartografia e
da Navegação era demasiado importante para ser proibida. Podemos ter as
mesmas garantias hoje?
Recordemos
sempre que Galileu nunca conseguiu provar que tinha razão. Essa é a
principal ilação do caso. A questão nunca é se os negacionistas têm
razão. A questão é que impedir o conhecimento que pode ser produzido a
partir de hipóteses que parecem absurdas ao consenso científico (para
não dizer ao político) para satisfazer populismos é um tiro da sociedade
no próprio pé. Que as ideias tenham liberdade e, se se revelarem
melhores explicações, substituam as antigas é o único e verdadeiro
método científico. Uma sociedade complexa que assenta a sua prosperidade
e fortaleza numa extensa divisão e coordenação do conhecimento entre os
indivíduos não pode sobreviver se se submete à tirania do pensamento
único. Mesmo quando essa tirania acredita honestamente possuir a razão e
estar a actuar de acordo com a melhor ciência disponível. Isso é tão
verdadeiro em 1616 como em 2021. Centralizar o conhecimento nas mãos de
alguns iluminados, e calar todos os que expressam opiniões diversas
equivale a autodeclarar-se como interprete supremo do significado das
Escrituras. Obrigar as populações a obedecer aos decretos de políticas
teológicas, mesmo se baseadas em ciência, sob pena de prisão, multa ou
privação de acesso a bens e serviços é alimentar o pior fanatismo. Nunca
acaba bem.
blog ORLANDO TAMBOSI
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