O ator Aluizio Salles Júnior no papel de "Famigerado". |
Nesta crônica, publicada pela Gazeta, Paulo Polzonoff faz uma releitura do conto "Famigerado", de Guimarães Rosa:
Foi
de incerta feita – o evento. Eu estava em casa ouvindo corruíras e
outros passarinhos que não sei nomear, varrendo folhas com planos de
atear fogo nelas, quando chegou o tropel. Amaquinado, como não poderia
deixar de ser, fazendo tremer todo o paredão do convento aqui perto. Só
me restou imaginar o susto das freiras. E o olhar arregalado.
Abriram-se
as portas traseiras e delas saíram homens que eram gárgulas. Nem
vestígio de um mísero sorrisinho naquelas carrancas. Um deles levou a
mão à cintura e eu entendi tudo. Vasculhei mentalmente os bolsos – os da
calça e os da memória. Nos primeiros tinha um pedaço de plástico, um
chiclete velho e uma fortuna total de dez centavos. Nos outro, ah,
tantos esqueletos que nem te conto.
Ficaram
lá, paradões. Um miniexército capaz de tomar uma cidadezinha e que, no
entanto, me escolhera como alvo. Tem umas encruzilhadas que a gente
escolhe; outras que não. Vereda minha era recolher as folhas, botar fogo
nelas, ver a fumaça subir e subir e dar as mãos às nuvens. Nesse meu
delírio que nem senil é. Acho. Mas agora me resta uma outra luta. Não a
última. Espero.
Um
dos sem-voz dá um passo à frente e abre a porta para seu reizinho. Da
máquina barulhenta e sem dignidade – o ferro bruto substituído por
plástico e alumínio – emerge um anão que reconheço de pronto, tantas
foram as vezes em que seu nome foi evocado nos últimos tempos. Fama má
corre mais que fama santa. E fica tatuada como medo. Quem rir da morte
incorporada num ser tão diminuto tem mais sorte do que juízo.
- Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada...
Generalíssimo
em sua pequena estatura, fez um sinal que interpretei como diplomacia.
Toda a atmosfera sobre meus ombros se rareou. Que fosse engano pouco me
importa. Morrer na confiança é melhor do que morrer em medo. Medi o
pequeno super-homem imaginando-o gigante, a fim de não ofender. Ofereci a
mão, que ele segurou que nem criança. Um dos macambúzios pareceu
rosnar. Impressão pior é sempre essa enganada.
- Vosmecê é que não me conhece. Ananias. Do Comando. Venho das Tatuquaras, para lá das terras do Sítio Cercado.
Ananias.
O menor dos mais perigosos. O que lhe faltava em altura sobrava em
crueldade. Que gosto tem meu próprio sangue?, me perguntei, antevendo a
cabeça separada do tronco e outras safadezas. Será que tiro dói? O que
há do outro lado do fim-que-não-é-fim? Para quem acredita. O que não sei
se é meu caso. Não no momento que antecede o Instante.
Me
conta o famigerado, então, que chegou lá pras bandas das Tatuquaras um
moço do governo. Gravatinha borboleta e mocassim sem meia, o pulso um
tanto quanto frouxo demais, a voz grossa sem convencer, mostrando crachá
e dizimando a pobraiada com estatísticas e aspas que ninguém entendia.
Desses que não pode nem falar. Agigantado na sabedoria que não combinava
com sua truculência, disse o longitudinalmente desprovido que o crachá
temia mais do que a farda. Que não tinha mais paciência nem idade. Que
estava disposto a deixar o moço à revelia colorida lá dele. Mas também
quê.
-
Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que
é: cirnormativo... ciso-normal-tismo... cisnormal...atino...
cisnorma-altismo...?
Deixei
cair a vassoura que nem sabia que segurava. Pairou o silêncio denso das
ignorâncias que se comunicam. Não cobrou imediatismo no meu saber. A
ele pareceu que eu precisaria de um tempo razoável para responder.
Razoabilidade que ele estabelecia de acordo. Como o silêncio se
prolongasse, achou por bem o miniatura em esclarecer que nas Tatuquaras
não havia ninguém para deixar claro o que estava turvo demais: o
entendimento.
-
Só se definissem a palavra os sociólogos da ONG lá pros lados do
Umbará. Mas que nesse povo de ONG nem não confio. A bem. Agora, se me
faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é
que é, o que já lhe perguntei?
Habitei
preâmbulos. Trilhei prefácios, posfácios, notas de rodapé e de fim. Num
átimo, falei idiomas natimortos. Amaldiçoei bibliotecas que um dia me
orgulhei de frequentar. Tudo culmina nessa hora: para que serve o
conhecimento quando se está diante da semimorte? Me encarava de baixo
para cima o cavanhacado. Em silêncio, me cobrava posição. Que eu nem
tinha, mas agora era obrigado a ter.
-
Cisnormativo é destemido. Valente, ousado, audacioso, bravo, intrépido,
audaz, arrojado, aguerrido, desassombrado, bamba, animoso, denodado,
brioso, intimorato, afoito, valoroso.
-
Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é
desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?
- Vilta nenhuma. É palavra comum que se fala nos templos do saber.
- Pois... e o que é que é em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?
- Cisnormativo? Bem. É “corajoso”, que merece louvor e respeito.
Me
pediu garantia de mão direita sobre o Houaiss imaginável que se abriu
entre nós. Disse que sim, meneei a cabeça, mostrei o sorriso mais
simpático e prestimonioso. Só não ofereci quindim porque não tinha.
-
Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma
hora dessas era ser cisnormativo – bem cisnormativo, o mais que
pudesse!...
Virou-se
para os mujiques, apontou um a um os cisnormativos que dispararam
rajadas de gargalhadas. Cis-nor-ma-ti-vos, repetia ele, saboreando as
sílabas e esculpindo a palavra no palato cru. Ao que os outros reagiam
com repetição. Para nunca mais esquecer que o que é e que são
cisnormativos.
Me
estendeu a mão e um lobo-guará – que recusei. Ofereci água e corote,
nessa ordem – e recusaram. Primeiro entrou o miúdo, acompanhado pelos
sicários um a um. Roncou o motor do corsinha rebaixado. Ao volante, um
dos à-toa engatou a primeira. De repente, fez-se a luz por de trás da
amurada de insulfilme.
- Não há grandeza macha maior do que uma pessoa instruída – disse o nanico.
* Este texto é uma releitura atualizada do conto “Famigerado”, de Guimarães Rosa.
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