Putin não se submete, Lukashenko não obedece, Pequim não se intimida. Vivemos angustiados no Ocidente entre a ilusão de devermos ser uma potência absoluta e acharmos que somos uma impotência total. Henrique Burnay para o Observador:
Ascensão
da China, agressividade indomesticável da Rússia, deserção no
Afeganistão, incapacidade de controlar a pandemia nas sociedades mais
desenvolvidas, culpa pelas alterações climáticas, racismo sistémico e
absoluto. Estamos em crise, estamos a ser derrotados, e merecemos o
destino que se abate sobre nós. Ultimamente, os artigos de jornal e
ensaios de especialistas sobre a situação política internacional parecem
um velório do Ocidente. Talvez seja tempo de reagir a este exagero
autodestrutivo e a esta falta de convicção nas virtudes do mundo que
construímos ao longo de séculos. Antes que outras opções bem mais
desagradáveis ganhem território e entusiastas.
O
mundo depois da Guerra Fria parecia um tempo de paz potencial, de
cooperação em vez de competição e de crescimento para todos. Durante
muito tempo, praticamente trinta anos, pareceu possível viver para
sempre assim. Mesmo os críticos das teses do fim da História parecem ter
acreditado que o Ocidente podia tudo, inclusive assegurar a paz no
mundo, os direitos humanos em toda a parte e submeter os desalinhados.
Só assim se explica o espanto, o derrotismo, com que olham para o
regresso da competição e das tensões internacionais. Como se não fosse
esse o estado normal das coisas. Mas é.
Quem
ler a última edição da Revista Foreign Affairs, como tantas outras
publicações, descobrirá, um atrás do outro, artigos a teorizar sobre os
erros e responsabilidades ocidentais no mal-estar do mundo. É por causa
da NATO se ter alargado tanto e para tão perto da Rússia que Moscovo
perdeu a paciência e desestabiliza à sua volta; como se o expansionismo
russo fosse uma novidade, ou um preço que alguns países mais próximos
deviam estar dispostos a pagar. Foi a nossa globalização que, fazendo
crescer a economia da China, que trouxe para a Organização Mundial do
Comércio, enriqueceu o adversário; como se a globalização não tivesse,
ao mesmo tempo, tirado milhões da pobreza, na Ásia, e dado a milhões da
classe média ocidental o acesso ao que era praticamente exclusivo dos
ricos, das máquinas à roupa. É o nosso consumismo que delapida os
recursos do planeta; como se o conforto que conseguimos não fosse o
sonho das gerações, aqui e noutros lugares do mundo, que há bem pouco
tempo comiam mal, passavam frio, não imaginavam viajar e não
desconfiavam o que fosse o lazer (sem falar dos milhões que ainda sonham
com isso).
A
este sentimento de culpa pelos males do mundo acresce uma sensação de
fraqueza global. Putin não se submete, Lukashenko não obedece, Pequim
não se intimida. Vivemos angustiados entre a ilusão de devermos ser uma
potência absoluta e acharmos que somos uma impotência total.
Trinta
e poucos anos depois do fim da Guerra Fria, parece que o Ocidente
perdeu, que tem culpa de ter perdido e que merece perder. Como se fosse
suposto a História, e a história dos conflitos, ter acabado; como se
fosse suposto ser possível fazer o resto do mundo submeter-se aos nossos
bons valores; e, mais grave que tudo, como se este lado do mundo não
fosse muito, mas mesmo muito melhor que todas as opções. E o único que
podemos melhorar.
Perante
a agressividade da Rússia, a rivalidade com a China, a ameaça
climática, as infinitas insuficiências do nosso modelo, podemos
fazer-lhe o obituário ou recordar que uma das razões porque (e para que)
o Ocidente ganhou a Guerra Fria foi ter um modelo preferível, e o único
que pode ser corrigido sem violência.
Sem
ilusões de perfeição, é melhor o Ocidente aceitar que não vai mudar nem
melhorar o mundo todo, reconhecer que a competição é a situação normal,
e voltar a acreditar nas suas virtudes, a começar pela liberdade, e na
sua capacidade única de regeneração. Ou isso, ou ser derrotado por si.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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