Cada vez que a máquina extrativista dos interesses especiais entra em jogo no mercado político, a corda arrebenta do lado dos sem lobby. Fernando Schüler para a revista Veja:
“A
cachorra anda sempre comigo”, diz Everaldo. “Ela me esquenta nas noites
frias.” O nome, conta, o pai botou por causa do lateral da seleção, em
70. Everaldo anda na rua há coisa de um ano. Fez de tudo. Serviço de
limpeza, pintura, ambulante. Era “microempresário”, como gosta de dizer.
Nunca roubou, garante. “Só quero uma oportunidade”, diz, enquanto pega
um cobertor no abrigo da prefeitura, e toca pra rua de novo. “Ali não
fico, é muita gente, a rua é muito melhor.”
Nos
últimos dias li muita coisa sobre os novos moradores de rua. Há dois
anos eles eram 24 000, mas hoje passam de 60 000, segundo o Movimento
Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo. Há disputas por
espaços embaixo dos viadutos. “São mais seguros”, segundo uma
reportagem. Leio sobre dois irmãos que perderam o emprego na pandemia e
foram morar com a mãe, dona Maria Helena, 78 anos, no Viaduto Antônio de
Paiva Monteiro, Zona Leste de São Paulo. É meio sem sentido a pergunta,
mas o que fazem dois brasileiros com saúde para trabalhar e uma senhora
de 78 anos, há muito com direito ao Benefício de Prestação Continuada
(BPC), de um salário mínimo, embaixo de um viaduto? Se John Rawls tem
razão ao dizer que as sociedades são “empreendimentos cooperativos para
benefício recíproco”, o fato é que andamos falhando miseravelmente como
sociedade.
Leio
sobre essas coisas enquanto assisto à discussão infinita sobre como vai
se pagar o novo Auxílio Brasil, que o governo decidiu criar, para os
muito pobres. O limite do teto de gastos, para 2022, vai a 1,6 trilhão
de reais, mas não teve de onde tirar os 30 bilhões de reais necessários
para o novo programa. Foi aí que o teto de gastos dançou. Na verdade,
dançamos todos. Marcos Mendes, um dos arquitetos do teto, foi direto: “O
saldo vai ser mais volatilidade, menos geração de empregos e mais
inflação”.
Como
é que é essa história de um país com a maior carga tributária da
América Latina, fora Cuba, que tira muito do bolso do contribuinte, mas
não tem “espaço fiscal” para um programa destinado aos muito pobres?
Estou longe de achar que transferência de renda é solução para nosso
problema civilizatório. Mas a proteção da dignidade das pessoas é uma
das funções elementares do Estado, e sobre isso há poucas dúvidas, à
esquerda ou à direita. Minha tese é de que há muito dispomos do
diagnóstico sobre o que está mal no Estado brasileiro. Apenas não
fazemos o que deve ser feito. Tempos atrás o Banco Mundial fez um
relatório, “Um Ajuste Justo”, dizendo basicamente que “o Brasil gasta
mais do que pode e gasta mal”. A lógica é simples: o teto de gastos foi
uma boa medida. Espécie de operação bariátrica em um obeso crônico. Mas
não é sustentável sem uma sequência de reformas na máquina do Estado.
“Sua implementação”, diz o estudo, exigiria “a redução dos gastos em
cerca de 0,6% do PIB ao ano, na próxima década”. O documento detalha
“potenciais ganhos fiscais” em pelo menos 7% do PIB, ou catorze vezes o
que gastamos hoje com o Bolsa Família, até 2026, se tivermos coragem de
encarar algumas reformas.
Quando
observo a série de reformas recomendadas pelo estudo, na educação, na
revisão dos incentivos fiscais, na burocracia pública, me vem à mente o
argumento de um dos grandes economistas do século XX, Mancur Olson. Ele
mostrou como a ação predadora dos grupos de lobby e interesses especiais
pode levar à degradação econômica e social. Grupos bem organizados, com
interesses concentrados, tendem a dar de lavada nas maiorias
desorganizadas. Isso vale para a indústria calçadista, sugerindo “manter
a desoneração da folha para gerar empregos”, ou nossa corporação
jurídica, com seu auxílio-moradia de 4 300 reais por mês, “porque está
previsto em lei, não é mesmo?”.
Somos
o “país da meia-entrada”, na imagem criada por Marcos Lisboa. No fundo é
isso que nos ensina o drama do novo programa social que não cabe no
Orçamento. O teto de gastos foi feito para deixar claro que o cobertor
do dinheiro público é curto e que é preciso fazer escolhas. Para que os
muito pobres entrem no jogo, gente importante teria de abrir mão de ao
menos um pedaço de sua meia-entrada.
O
primeiro desafio é reconhecer que não há bala de prata para fazer o
ajuste estrutural. Ele exige um sem-número de escolhas sobre cortar
privilégios, extinguir órgãos sem sentido, revisar gastos e programas.
Cada escolha tem um custo político alto e é incapaz, isoladamente, de
resolver o problema. “Não vale o desgaste”, como nos acostumamos a
escutar em Brasília. Exemplos? Aprovamos o fundão eleitoral de 2 bilhões
ou 5 bilhões de reais para pagar santinhos, jingles e marqueteiros na
campanha. Qual é o problema? Alguém acha mesmo que 2 bilhões de reais
pesam no Orçamento? Por vezes são coisas triviais. Nossos ex-presidentes
têm direito pelo resto da vida a uma equipe de oito pessoas, passagens,
diárias, dois veículos, motoristas etc. Custam só 4 milhões de reais
todos os anos. Somos um país gentil. Alguém acha que uma mixaria dessas
faria alguma diferença nos cofres públicos?
Nossos
juízes receberam 2,4 bilhões de reais, nos últimos quatro anos, em
indenizações pela venda de suas férias de sessenta dias. Por que férias
de sessenta dias? Resposta fácil: porque está na lei. Pergunta difícil:
mas por que está na lei? Porque a reforma administrativa enrola o
assunto há dois anos; porque o Executivo diz que não pode fazer nada; o
Congresso não se mexe, pois tem “outras prioridades”, e o Judiciário diz
que está apenas “cumprindo a lei”. Mas o.k., é só um detalhe. Alguém
acha mesmo que 2,4 bilhões de reais pesam alguma coisa nos cofres da
União?
Trata-se
de um caso típico de “tirania das pequenas decisões”. O contexto em que
uma série de decisões isoladas e feitas por “boas razões” gera um
efeito cumulativo ruim para todos, ou quase todos. Sem bala de prata, o
que precisamos é de critérios, de uma visão de país e uma boa dose de
disciplina. Em resumo: valores. Olson, em seu último grande livro, disse
que o caminho para a prosperidade, nas sociedades abertas, passava pelo
respeito aos direitos individuais, à liberdade, à propriedade, à
expressão, e pela capacidade de protegermos o bem público da ação
predadora dos interesses especiais. Pela recusa do “capitalismo de
compadrio”, primo-irmão de nossa velha tradição patrimonialista.
O
sentido dos valores fica mais claro quando lidamos com a vida das
pessoas. Leio que, nas noites quentes de João Pessoa, um grupo de
voluntários, liderado pela Neide e pelo Ronald, distribui quentinhas
para os moradores de rua. Começou pequeno, mas eles hoje atenuam a fome
de perto de 1 000 pessoas. Uma indenização de férias, um naco do
auxílio-moradia ou do fundão eleitoral poderiam ter bancado centenas ou
milhares de noites sem fome para aqueles brasileiros.
É
só um toque. Nem de longe a ação do Estado deve substituir o
protagonismo das pessoas que agem voluntariamente, com empatia, pois é
disso que é feita uma grande sociedade. Mas tem alguma coisa muita
errada aí. Cada vez que a máquina extrativista dos interesses especiais
entra em jogo, no mercado político, a corda arrebenta do lado dos sem
lobby. Dos “invisíveis” que andam por aí, assombrando nosso dia a dia,
como a nos dizer que algo não vai bem, e não é de hoje, no pacto social
brasileiro.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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