Voltaire |
A imensa maioria julga a partir de sua predileção política. Não é assim que se faz uma democracia baseada em direitos. Fernando Schüler para a revista Veja:
Confesso
que nunca li uma linha sequer do Allan dos Santos e, antes da notícia
de sua prisão, tinha uma vaga ideia de sua pregação, alinhada a
Bolsonaro e a nossa estridente nova direita. Criei o hábito de não
perder tempo com radicais, à direita ou à esquerda. Se o sujeito quer
defender a ditadura de Stroessner ou Fidel, que o faça. Há muitos por
aí, não é mesmo? Se acha que o Brasil estaria melhor sob uma monarquia
absolutista, sob um partido único, como na China, ou pensa isto ou
aquilo sobre os costumes, vejo como um direito de cada um. O que me
incomoda é viver em um país em que alguém é preso, sem contraditório ou o
devido processo, porque uma autoridade pública, genial que seja, acha
que suas opiniões representam uma “ameaça à democracia”.
Posso
estar errado. Vejo muita gente por aí satisfeita com a “tutela de
opinião”, feita pelo Estado, ou a “curadoria”, na expressão utilizada
por um ministro de nossa Suprema Corte. Vejo muita gente dizendo que é
preciso separar o joio do trigo. Que mentira não é opinião, retórica
contra a democracia não é opinião, distorção de fatos não é opinião,
valendo o mesmo para preconceitos ou ofensas a certas autoridades. E que
tudo isso deveria ficar a cargo de um grande tribunal julgar, quem sabe
sob a chancela de algum segmento hegemônico na opinião pública.
Foi
o que se viu na recente desmonetização das contas de blogueiros que
defendiam o voto impresso e foram punidos por não dizerem a “verdade”,
como se lia em uma sentença do TSE. Viu-se o mesmo na cassação do
deputado Fernando Francischini, por uma live contendo “informações
falsas sobre a urna eletrônica”. Nesse caso, reinventamos a
Constituição. Parlamentares passam a ser imunes por suas “palavras e
opiniões”, como reza seu artigo 53, apenas para dizer aquilo que se
prove, ato seguinte, verdadeiro. Me pergunto se o desejo do
constituinte, quando criou o instituto da imunidade parlamentar, não era
precisamente que nossos representantes agissem por convicção e sem medo
do poder. Arriscando a errar, por vezes, para que pudessem acertar, em
tantas outras.
A
decisão sobre a prisão de Allan dos Santos será lida, algum dia, como
testemunho histórico de nosso “Estado tutor”. Entre os delitos
mencionados, lê-se a divulgação de notícias falsas ou “apresentadas de
forma parcial”; o incentivo à “polarização entre os poderes”; o
“discurso de ódio” e a “animosidade” na sociedade brasileira; a pregação
de “ideias antidemocráticas”; “ataques contra agentes políticos” e
mensagens “apelativas”, para ganhar dinheiro; o uso da “retórica
amigo-inimigo” (referência a Carl Schmitt?); e, por fim, a desfeita de
“apontar o dedo médio” para o edifício do STF.
Abundância
de grandes palavras e escassez de fatos com alguma “objetividade”,
palavrinha que parece irritar tanta gente. Na guerra de todos contra
todos em que se transformou nossa democracia digital, é curioso como
mesmo uma pergunta elementar como “por que o sujeito foi preso?” soa
inútil. A imensa maioria julga a partir de sua predileção política. Não é
assim que se faz uma democracia baseada em direitos.
Não
me surpreendo com essas coisas. Sempre achei a paixão política uma
força muito mais poderosa do que a lealdade aos princípios abstratos do
liberalismo democrático. O dito “discordo do que você diz, mas
defenderei até a morte seu direito de dizê-lo” não passa de uma quimera
aqui na selva. Liberdade de expressão se tornou um tema quase impossível
em meio às guerras culturais do nosso tempo. Não é simples aceitar que
devemos tolerar ideias “bárbaras”, que não merecem “proteção alguma”,
como li, dias atrás, em uma pitoresca interpretação do paradoxo da
tolerância, de Popper, segundo a qual não devemos aceitar as ideias que
nós, a partir do que nos der na telha, definimos como “intolerantes”.
A
democracia de tutela é uma variante do binômio “democracia e
relativização de direitos”, tão próprio dos atuais iliberalismos, à
esquerda ou à direita. No caso brasileiro, são tipos da “nova direita”
que vão indo para o xilindró. Mas os ventos podem mudar. Acho curioso
que as pessoas que hoje vibram com o estremecimento do direito dos
outros nunca imaginam que um dia o mesmo possa acontecer com seus
próprios direitos.
É
possível que a democracia de tutela seja nossa opção histórica. Nunca
alimentei muitas ilusões de que um liberalismo robusto, fundado em
direitos individuais, com algo parecido à Primeira Emenda americana,
fincaria raízes por aqui. Temo apenas pelo que aprendi com as lições da
história. Com John Milton aprendi que ninguém, nem os melhores juízes, é
infalível; com Madison, que não cabe ao Estado ditar a verdade, que
fatos e opiniões frequentemente andam misturados, e que é preciso
tolerância, pois “o excesso faz parte do uso de qualquer coisa”. Com
John Stuart Mill aprendi que o erro nos presta o favor de colocar a
verdade continuamente em teste, não permitindo que ela se transforme em
sua caricatura: o dogma.
E
diria que todos aprendemos com Voltaire. Acho graça quando escuto que a
Justiça pode se guiar pelo que “todo mundo sabe” ou em juízos de
ofício. Num tempo muito mais violento que o nosso, foi contra isso que
Voltaire se levantou ao escrever seu Tratado sobre a Tolerância, em
1762. O estopim veio com o martírio de Jean Calas, um pai de família de
Toulouse acusado de matar o próprio filho por motivos de religião.
Acusado pela multidão fanatizada, foi martirizado na roda. Sem provas,
sem contraditório, com base em um decreto ilegal, por um punhado de
juízes que tinham o hábito de “falar à cidade com arrebatamento”.
Seu
Tratado se tornou um libelo contra o fanatismo e a intolerância,
inspirando gerações de intelectuais a perseguir princípios de justiça,
em vez da paixão política. E a não silenciar diante de eventuais
maiorias. Em um mundo diverso, ele ensina, a tolerância é o caminho
possível para a pacificação da sociedade. “A Alemanha seria um deserto
de ossadas de católicos, evangélicos e anabatistas”, diz, “se a paz de
Vestfália não tivesse garantido a liberdade de consciência.”
Para
combater o sectarismo, ele sugere um caminho muito diferente do nosso:
em vez da coerção, a liberdade e a multiplicidade de ideias. “Quanto
mais seitas”, diz, “menos cada uma delas será perigosa. A multiplicidade
as enfraquece.” É a perseguição que mantém seu vigor, e é a força das
ideias que vai superar o fanatismo. “O melhor método de diminuir o
número dos maníacos”, ele diz, “é o de deixar essa doença do espírito
sob o controle da razão.” Voltaire diz algo caro à tradição moderna da
liberdade de expressão: a melhor forma de combater más ideias é com
ideias melhores. Ideias que são, boas ou más, prerrogativas dos
cidadãos, e não do Estado.
Eis
o espírito do iluminismo. Nossos tribunais, que hoje se dedicam a calar
as “más ideias” banindo ou mandando prender, entram em um jogo que
deveriam apenas arbitrar, com serenidade. Sua melhor contribuição seria
ajudar o país a consolidar uma democracia inclusiva, pautada pela
liberdade e pela tolerância. Estou longe de achar que seja um caminho
fácil ou mesmo provável. O horizonte que vejo à frente é o de uma
democracia de tutela. É por isso que tirei o pó de velhos livros e fui
reler Voltaire, por estes dias tristes.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário